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Parte Um: V

Como todas as manhãs, a Sonata No. 16 anuncia o raiar do dia, mas hoje não soa tão aprazível. Dou por mim debruçado sobre o braço da poltrona com dores de cãibra intensas nas minhas pernas e costas rígidas. Mesmo assim, me apronto e me arrasto pelas escadas.

Chegando do lado de fora, cumprimento ligeiramente o senhor sentado no bar sem o humor para ouvir seus delírios, e caminho rapidamente. Porém, um vislumbre me fez perceber que algo estava diferente, então volto para confirmar minhas suspeitas, e de fato, hoje o senhor não estava usando um chapéu, e em vez de ler um jornal, estava segurando uma xícara de chá.

Ele, percebendo minha suspeita, indagou com um sorriso fraco: «Estás um pouco atrasado, senhor Aldane.»

«Bom, foi um fim de semana agitado, não pude evitar. O senhor parece diferente.»

«Pensei que precisava de uma mudança de ares». Dito isto, ele pousa a xícara sobre a mesa, direcionando meu olhar para o jornal que ali estava: 'Sufragistas confrontam polícia de Londres – 01 de Julho de 1908'. «Quer ouvir meus provérbios hoje? Ou receia que não passem de delírios?»

Senti um calafrio percorrer minha espinha e o peso da culpa de alguém que cometeu um crime grave. Permaneci em silêncio devido à tensão, não me lembro da última vez que me senti assim, como uma estátua. Não sabia o que deveria responder.

«"Há frases assim felizes. Nascem modestamente, como a gente pobre; quando menos pensam, estão governando o mundo, à semelhança das ideias." [1]», e disse mais, «não leve minhas palavras tão a sério. Você ainda tem um longo Caminho pela frente.»

Apenas dei de ombros e saí embaraçado, entretanto logo que me virei ouvi-o murmurar: «Quem dera eu se nunca tivesses me visto, as coisas seriam mais pacíficas», não entendi o que queria dizer com isto, mas preferi não questionar.

Caminho de volta para casa com passos compridos e ligeiros pois recebera uma chamada de senhora Laverne, aos berros, a pedir ajuda com uma barata que apareceu de repente em seus aposentos. Sentia os raios frescos do fim da tarde anunciando o início da primavera, mas não parei para apreciá-los tal como almejava.

Chego no apartamento de senhora Laverne e, já carregado com o inseticida, sou direcionado até a localização do inseto indesejado. Para manter minha dignidade, não citarei a duração da perseguição frenética que sucedeu, via-me agora a descansar no sofá da sala à espera do cappuccino que senhora Laverne prometeu preparar enquanto eu lia uma revista sobre tricô que me foi oferecida no intuito de me distrair. Surpreendentemente, a leitura estava interessante e tinha lido já algumas páginas sem me aperceber quando noto a ausência da senhora Laverne, tento permear qualquer ruído de algum lugar, e me perturbo com o silêncio absoluto que pairava; levanto-me apenas para despencar novamente no sofá atingido por um estonteamento repentino, meus sentidos se dispersavam aos poucos.

«Já era hora, demorou bastante, mas estás finalmente perto, Aldane.»

«Q-quem? O quê?», procurei pelo dono da voz grave aveludada que parecia brotar dentro da minha cabeça.

«Quem?! Boa pergunta, Aldane. Quem és tu?»

Ainda atordoado, encontro a única coisa presente no meu campo de visão que poderia ser o possessor desta voz: Kay, o gato preto com heterocromia, estava sentado no batente da janela me encarando, e quando nossos olhares se encontraram, seus olhos verde e azul se entrelaçaram e formaram uma mistura de céu e terra abstrata que devorou por completo minha noção de espaço e tempo que já se encontrava degenerada.

«Eu sou Aldane...Só Ald...Não.»

«Exato! Não podes ser apenas Aldane, certo? Quem és tu então, Aldane? Quem é Anna? Johann? Laverne? Onde estás? Não sabes nada, estúpido», indagou num frenesi de risadas histéricas. Os insultos continuaram enquanto meu corpo permanecia imóvel até meu resto de consciência se extinguir completamente e eu não conseguir mais ver ou sentir nada.


[1] Machado de Assis (1839 – 1908).

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