Parte Um: II
O som deleitável de Sonata No. 16 [1] ressoa ao me despertar, me motivando a preparar uma refeição matutina adocicada de frutas com mel, e para completar o bom humor, saio um pouco mais cedo que o habitual a fim de aproveitar uma caminhada plácida.
«Bom dia», disse ao senhor sentado na mesa ao lado direito da porta do bar. Cumprimentei-o com o sorriso mais lépido que já lhe apresentei até agora, este retribui à mesma altura, oferecendo um olhar sereno.
«Bom dia, qual a causa desta animação?»
«Nada em particular. O tempo hoje parece brando e agradável.»
De fato, o céu apresentava um azul tênue com cômodos e abundantes raios de sol. «Que tens a dizer hoje?» perguntei.
Ele desvia a atenção por um breve momento para o jornal que tinha em mãos, este trazia a manchete "Duas mil vidas relatadas como perdidas - O Grande Vapor Que Caiu - 17 de Abril de 1912". «"A aparência das coisas muda de acordo com as emoções, e assim vemos magia e beleza nelas, enquanto a magia e a beleza estão realmente em nós mesmos" [2], falando em voz alta percebo que soa subjetivo, de qualquer forma, desejo-lhe um ótimo dia.»
«S-sim, o senhor também.»
Assim continuei minha caminhada, tendo o dia decorrido imperturbavelmente até o seu findar, e neste mesmo passo, percorro o caminho de volta até ser interrompido por uma figura combalida debruçada na porta do meu apartamento.
A figura excessivamente curvada carregava fios tênues sobre a cabeça que recordavam os primeiros flocos de neve de um rigoroso inverno, um manto bordado de cor esmeralda sobre os ombros, uma bengala na mão esquerda e um pequeno recipiente de vidro na direita. A figura não podia ser outra senão a moradora que reside acima de mim, no último andar, Cordelia Laverne, a senhoria deste edifício.
«Boa noite, senhora Laverne, a que devo o prazer da sua presença?» saudei enquanto abria a porta.
«Oras, não me venha com palavras mansas, trouxe um pouco de uma geleia que preparei, gostei do resultado a ponto de querer compartilhá-la com o rapaz.»
«Não precisava se dar ao trabalho de descer, sei como é penoso para a senhora; em vez disso, podia simplesmente me chamar, estou sempre de prontidão para te atender.»
«Rapaz tolo, não tire desta velha a única desculpa que tem para caminhar um pouco, mesmo que seja para descer um andar». Senhora Laverne é provavelmente a única pessoa capaz de me tratar como um rapaz tenro, além de possuir uma ferocidade que discrepa da aparência. Apenas há poucos meses antes de eu começar a residir aqui, seu marido havia falecido, pego pelas decadências consequentes da idade. Pelas histórias que ouço da senhora Laverne, tinha sido um grande homem, professor de música e um naturalista autodidata que deixou nada além de uma viúva desolada antes de partir.
Senhora Laverne nunca recebeu visitas, não interage com mais ninguém neste edifício além de mim, não tem condições físicas adequadas para sair... só lhe resta esperar.
«Está bem, mas não se esforce demais, por favor. Entremos, venha! Vou preparar um chá e...»
«Não é preciso, Kay está esperando», disse isto com um sorriso fraco antes de se virar e caminhar tão lentamente quanto uma anêmona. Já não me surpreendo com esta despedida repentina, o apreço dela pelo Kay se tornou imensurável desde que o acolheu. Kay é um gato preto com heterocromia que resgatei de uma tempestade, a minha falta de tempo não permitiu adotar o felino, então senhora Laverne se dispôs a isto.
Depois de me aprontar, retomo a leitura do livro da noite anterior relendo a última frase:
"Si caeci essetis, non haberetis peccatum. Nunc vero dicitis:
'Quia videmus!', peccatum vestrum manet." [2]
[1] Sonata composta por Wolfgang Amadeus Mozart descrita como "para principiantes".
[2] (João 9: 41) "Disse-lhes Jesus: Se fôsseis cegos, não teríeis pecado; mas como agora dizeis: Vemos, por isso, o vosso pecado permanece."
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