Parte Dois: V
Estava já no meio da semana, extremamente fatigado devido à minha mente estar sobrecarregada com pensamentos surreais que envolvem gatos falantes; porém, hoje seria ainda mais penoso. Havia marcado um jantar com minha ex-esposa para concluirmos a papelada do divórcio.
Chego no restaurante com meia hora de atraso e a encontro a ler o menu, cumprimento-a naturalmente, me desculpando. Ela não mudou nada. Ainda tinha um ar inabalável e elegante, sempre disposta a crescer cada vez mais, com uma carreira de sucesso aguardando pela frente, justamente o oposto de mim. Não possuía, e ainda não possuo, o ânimo necessário para acompanhá-la, deste modo, nossa relação iria apenas impedi-la de voar. Concordamos com a separação reciprocamente quando ela propôs uma mudança para o centro da capital e eu opus-me.
«Então isto termina aqui, ao que parece já está tudo ajustado», eu disse enquanto ajeitava os papéis que tinha em mãos.
«Andrew, provavelmente vamos nos despedir aqui. Mas não é um adeus, apesar de tudo, fomos, e continuaremos a ser bons amigos.»
«Sim, realmente espero que sejas bem-sucedida na capital, e tomes cuidado, lá é um lugar perigoso em vários sentidos», olho para ela com um sorriso, «mas acho que não terás problemas com isto, a capital é que deveria se preparar para te receber.»
Ela ri envergonhada, como sempre fez. Já estava habituado a este comportamento, sabia exatamente o que a fazia sorrir, afinal éramos amigos desde o colegial, e eu sempre soube que em algum momento ela iria voar para bem longe, não estava marcado no nosso destino trilhar o mesmo caminho... Caminho...
«Andrew? Andrew, estás a me ouvir?»
«Sim, sim, estou.»
«O que pretendes fazer agora? Vais mesmo passar o resto da tua vida preso aqui, como um pássaro numa gaiola? Estou dizendo que sempre terás oportunidades, e eu mesma estaria disposta a oferecer ajuda se um dia precisares. Sei das tuas capacidades, não desperdices teus dons. Tu também tens sonhos, não tem?»
«Já conversamos sobre isto, não insistas. Eu estou bem.»
Ela adquire um semblante mais resoluto e permanece em silêncio até terminarmos o jantar, logo se levanta e me encara com um olhar que exalava algo entre piedade e repulsa.
«Estou indo. Foi bom te ver, espero que mudes tua forma de pensar e que aceites os prazeres que a vida tem para oferecer.»
E assim saiu da mesma forma sorrateira que entrou, e desta vez não iria mais voltar. Ao chegar em casa, preparei um chá e me debrucei no sofá, absorto em pensamentos que refletiam memórias prazerosas e inquietantes, lembranças de pequenas situações que construíam uma vida inteira, como se tivessem criado um oceano com copos d'água, só não fui capaz de perceber a tempo que esta água era ilusória, e o oceano enxuto se transformou em culpa. Começava a adormecer quando despertei por uma voz grave tenebrosa e familiar.
«Acorda, Ludwig. Como tens passado?»
Levanto-me rapidamente desprevenido, apesar de ter esperado sua visita atentamente nos últimos dias. Lá estava o gato em cima da mesa central da sala, tão impassível como sempre.
«Não finjas surpresa! Espero que tenhas respostas, ou perguntas. Pensaste em algo?»
«Se eu não quiser alguma coisa? Que tudo apenas continue como está?»
«Querer que nada mude ainda é um desejo, um absurdamente estúpido», essa fala foi seguida de um suspiro e um olhar piedoso, me deixando levemente embaraçado. «Me compadeço com a miséria de tuas paixões, tuas chamas não ardem com o calor da vida, então te direi algo que decerto poderá acendê-las», ele caminha até mim para se aconchegar ao meu lado, «não és um espectador, Ludwig, este trabalho não te pertence. Não estás na margem do rio, mas no penhasco duma cachoeira, donde todos despencam e se ferem, isto é a Vida. Não é mais possível esbanjar vitalidade e momentos felizes nos tempos atuais; é uma questão de sobrevivência onde criar utopias lépidas é um refúgio encorajador. Apenas controlas o destino da realidade dentro de ti, não da que te rodeia.»
A presença da personificação duma lei do Universo em forma de gato preto falante com heterocromia ao meu lado não me incomodava mais, e toda a agitação frívola que senti nos últimos dias se dissipou com aquelas palavras. O gato boceja e repousa ao meu lado, desejei-lhe uma boa noite de sono e também adormeci.
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