Conto oco ou brevíssimo ensaio sobre o vazio
O elemento pobre nessa sociedade contemporânea, capitalista, é o perpétuo escravo então com a fantasia do direito.
Acaso o leitor já andou num bairro pobre em dia de chuvarada? Claro que não, que não se tem ruas para andar. O que se tem é sistema aberto de esgoto e escoamento periférico.
Era Édson quem assim também pensava, de guarda-chuva fechado, a passos serenos sob um sereno último e persistente. Foi ele também quem o disse a mãe, pouco entendida, coitada, que desconversou:
Que que nós vai fazer? Cortar o pescoço porque é pobre? Isso é assim mesmo...
Ele à frente, a mãe atrás, fila indiana, voltando para casa pelas beiradas enlameadas para molhar o menos possível o tênis novo daquelas águas que não se tinham por onde dimanar. Ele havia ido longe de casa para não perder o ônibus, mas, merda, não havia onde atravessar a rua. A rua que estava mais para rio. O ônibus passou e ele ficou com estas moscas zumbindo na ideia.
Hem, Édin! Vi um lugar ali que acho que dava pra tu passar, chorou a mãe sobre o leite derramado, tomando a frente.
O rapaz, mudo, mantinha os olhos colados no mudo céu.
E ainda são conformados...
Quê?
Mas ele não repetiu.
Ara! Que que vamo fazer, guri? Cortar o pescoço é que não vou...
Logo que a mãe alcançou a esquina:
Ali, apontou ela, frustrada, pensei que dava, mas não dava não...
Ele passou reto, retomou a frente. Ela, atrás, reclamou:
Ei! Espera eu! Não quer andar comigo só porque sou pobre?
Ele acelerou por resposta, envergonhado.
Se tivesse pego o ônibus, sentaria tranquilo na sua costumeira poltrona, alguma lá do fundo, e entupiria os ouvidos de Cássia Eller a viagem toda. Iandra, decerto, junto às amigas, lhe miraria um soslaio em qualquer hora, fazendo-o sorrir, o ego lembrado, de leve, discretamente. Veria a todas as caras habituais, quotidianas, e gastaria a sua fantasia solitária imaginando no que as pessoas pensavam quando para ele olhavam...
No campus, perderia a aula de matemática para ir direto à biblioteca seguir com as pesquisas sobre Marx. O trabalho de economia já devia ser entregue dali a dias. Novamente, pelo visto, voltaria a carregar os demais membros do seu grupo sobre as costas, fazendo tudo sozinho, como nobre besta cargueira, função para os seus ombros que se arrastava desde o primeiro semestre. E então comparou-se e ao seu conformismo ao da mãe.
Pensou como seria grande a aula de economia desse dia! Perdera-a com o ônibus... Mas um dia gostaria de ser Léa Flores.
Foi a mente que vasculhou a biografia de Marx, que havia lido naquela mesma tarde, sob os rumores de uma chuva preguiçosa, para confrontar a sua pobreza à dele: lembrou-se da fome e das filhas mortas; do dinheiro que Engels lhe enviava, para que se pudesse subsistir; reviveu a ótica do tal detetive, que descrevera minuciosamente a sua casa em Inglaterra como possível de suportar apenas sob a conversa inteligente e cativante de seu proprietário. E comparou-se e à sua pobreza àquela pobreza de Marx.
A pobreza dele era financeira, concluiu.
Chegou em casa, o carro estacionado do pai sorria sob aquele resto de sereno.
O pai não o levaria à faculdade de jeito nenhum. Estava desempregado e a gasolina andava cara... Se ele ou a mãe dirigissem, talvez não precisassem depender da bonomia e economia paterna. Mas dependiam. Fazer o quê?
O carro, deixou-o a rir. A mãe logo chegou atrás. Entraram ambos, foram secar-se.
Édin, tira essa roupa molhada pra tu me ajudar a arrastar aquele guarda-roupa pro canto, tá?
Papo de sempre, sobrevida que seguia. Édin. Odiava. Sobretudo quando estava com raiva de tudo e da existência, odiava em dobro. Mas a mãe, que galgava ao topo daquela cota sua de ódio, insistia em lhe chamar Édin. Achava carinhoso.
Ele foi arrastar o guarda-roupa com ela e deixou Marx descansar em paz. Conformados, ambos mortos.
No silêncio daquela madrugada, já sob os lençóis, duas lágrimas quiseram descer pelo flanco do seu rosto, mas não havia tristezas reais para chorar. E lembrou-se de Istéfani, uma amiga. Que será que estava fazendo àquela mesma hora? Estaria na cama, com o namorado? Festaria? E Brendo? Transaria? Beberia? Dormiria? Que será que fazia? Viveria?
E rolou, de bruços.
Na faculdade, o seu conformismo lhe garantia, se não amigos, ao menos colegas. E se menos, ao menos oportunistas. Era uma prevenção ao vazio absoluto, um dos reais temores do ser.
Nessa noite Édson dormiu com o grito preso na garganta.
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