Capítulo 3
"Palavras são, na minha não tão humilde opinião, nossa inesgotável
Fonte de Magia.
Capazes de ferir e de curar."
Harry Potter e as Relíquias da Morte -
J.K. Rowling.
No horário combinado eu saio descalça do meu quarto. Carrego uma mochila em minhas costas e levo a mala pelas alças, tomando todo o cuidado para não fazer barulho e acabar acordando mamadi. Desço as escadas, um degrau de cada vez, dando graças por ser uma casa moderna e os degraus serem de granito.
Olho a sala onde cresci, uma última vez, tomando a última dose de coragem para fazer o que estou prestes a fazer. Meus pais podem não querer olhar para mim nunca mais em minha vida, mas essa é a única solução que pode ter um final feliz.
Ando lentamente em direção a porta, segurando o molho de chaves firmemente entre meus dedos...
ㅡ Kali?
Meu corpo trava.
Sinto cada terminação nervosa em mim congelar ao ouvir a voz sonolenta de mamadi bem atrás de mim.
ㅡ Kali, o que pensas que estás fazendo? ㅡ sua voz é trêmula, e me obrigo a virar e encará-la de frente.
ㅡ Mamadi...
ㅡ Baguan Keliê, o que pensas que estás fazendo? ㅡ vejo seus olhos grandes estudarem cada parte do meu corpo, vendo a mala em minhas mãos e a mochila pendurada em meu antebraço ㅡ Você iria fugir?
ㅡ Mami, não é o que parece...
ㅡ Ingrata! Ulu! Você está fugindo de sua casa como um gato sorrateiro enquanto todos dormem? ㅡ ela se aproxima e posso ver a ira injetada em seus olhos ㅡ O que têm em sua cabeça, Kali?
O que me dá ainda mais medo é o fato de mamadi não estar gritando. Sua voz é comedida, usando um tom rude, porém baixo. O que deixa a situação mil vezes pior.
ㅡ Eu posso explicar. ㅡ sussurro e sinto a lágrima rolar por meu rosto.
ㅡ Não há explicação. ㅡ diz entre dentes ㅡ Não há motivos em toda Índia que faça uma moça fugir de seu lar, onde têm tudo que precisa, para viver sabe...
ㅡ Estou grávida! ㅡ assim que as palavras saem largo as bolsas no chão e uso minhas mãos para esconder a vergonha que me toma.
Os segundos viram minutos e o silêncio só traz mais lágrimas a mim, que choro copiosamente com medo do que está por vir.
ㅡ Olhe para mim. ㅡ sinto a voz de mamadi próxima a mim.
Levanto meu rosto, enxugando as lágrimas que teimam em continuar descendo. Olho no rosto da mulher a minha frente e vejo o nojo estampado nele.
ㅡ Você está grávida. ㅡ não é uma pergunta e permaneço em silêncio enquanto ela me olha ㅡ Você está grávida.
Eu só registro o que aconteceu quando já estou caída no chão e sinto a ardência se espalhar pelo meu rosto. O tapa foi tão forte que o gosto de sangue se espalha por minha boca.
ㅡ Maldita. ㅡ mamadi sussurra e eu choro alto com o tom de sua voz ㅡ Imunda!
O chute acerta em cheio a minha coxa, e arranca um grito de dor em mim. Em seguida vem outro, e outro, e outro. Mamadi grita mais alto cada vez que seu pé colide com uma parte de meu corpo.
ㅡ PARA, MAMI! POR FAVOR, PARA! ㅡ grito em meio ao choro, desesperada.
ㅡ EU VOU MATAR VOCÊ E JOGAR NO FUNDO DO GANGES! ㅡ ela grita ainda mais alto e me levanta pelos cabelos.
ㅡ SUNIEDY, MAMADI! ㅡ minha voz é pura angústia ㅡ ME OUÇA!
ㅡ Cale sua maldita boca! ㅡ ela diz com seu rosto praticamente encostado ao meu, seus olhos esbugalhados de ódio ㅡ Você vai embora de minha casa antes que eu te jogue na rua e peça para o primeiro que passar te apedrejar.
ㅡ Mami... ㅡ imploro quando ela começa a me arrastar para porta ㅡ Não faça isso, me deixe levar minhas coisas!
ㅡ São minhas coisas. Você não levará nada de minha casa, imunda!
Ela abre a porta e me arrasta até a escada da entrada, me jogando no chão com toda a força em seguida. Grito de dor ao sentir o impacto de meu quadril com o concreto, e a vejo de pé, no alto da escada, com a respiração irregular e com as mãos em punhos.
ㅡ Seja grata por eu não esperar seu baldi chegar, Kali, tenho certeza que ele te mataria com as próprias mãos. ㅡ sua voz é puro nojo e desdém.
ㅡ Mami, suniedy, me ajude! ㅡ imploro ficando de joelhos ㅡ Sem rupias eu vou morrer de fome, há uma criança em meu ventre, tenha misericórdia!
ㅡ Não lhe reconheço mais como filha. ㅡ diz e a vejo engolir com dificuldade ㅡ Se não é minha filha não tenho obrigação de ter misericórdia. Viva como pedinte, ou se atire no fundo do Ganges e queime no fogo ardente.
ㅡ Mami! ㅡ choro em desespero quando ela me dá as costas e fecha a porta ㅡ MAMI! MAMI!
Um grito de agonia sai das profundezas de meu ser, arranhando minhas cordas vocais e fazendo minhas veias cerebrais latejarem, tamanha força que faço ao gritar. O pior aconteceu, mesmo que eu tenha tentado evitar. O choro é constante, não consigo controlar. Meus olhos estão embaçados, devido às lágrimas, e tropeço no caminho para a rua.
As luzes das casas permanecem apagadas, indicando que nenhum vizinho acordou com todos os gritos. Ou acordaram e foram espertos o suficiente para deixarem as lâmpadas apagadas, para fofocarem pelas costas de minha família até que a notícia tenha se espalhado pela sociedade, feito pragas destruindo toda uma plantação.
Ando aos tropeços até o ponto de encontro com Suniya, mas ela não está lá. Sento-me no chão, sentindo o vento gelado do fim da madrugada e início da manhã arrepiar minha pele, atravessando a camada de roupa que me protege.
Ela já devia estar aqui há muito tempo, já que fui eu quem atrasou alguns minutos. Será que desistiu da loucura do seu próprio plano em cima da hora? Ou veio e, como não apareci, foi embora? Procuro meu celular no bolso do sobretudo, mas deve ter caído enquanto mamadi me agredia.
Massageio a lateral do meu rosto e meu couro cabeludo, que latejam devido a força da mão de Nivedita. Ela me bateu sem piedade. Bateu e chutou a própria filha. Grávida. As lágrimas caem, incessantemente, e sinto os músculos das minhas pernas doerem ao tentar dobrá-las para aquecer meu corpo do frio.
Os primeiros raios indicando o amanhecer aparecem no céu, e tenho a certeza que Saniya realmente não vem. Levantando com dificuldade vou caminhando pela rua, sem rumo. Não posso ir até a casa dela, seus pais não entenderiam o motivo de uma visita quando o dia mal nasceu.
Cada vez que lembro das palavras de mamadi uma onda de choro me toma, e tenho que me esconder em becos por várias vezes para que ninguém me veja desabar. Por mais que eu tenha imaginado a decepção que seria para ela, nunca passou pela minha cabeça que me bateria daquele jeito. Não esperava receber apoio, pelo contrário, eu sabia que seria expulsa de casa, mas me agredir enquanto estava no chão, indefesa...
Ela tem razão, se baldi estivesse em casa seria muito pior. E, quando ele descobrir, será capaz de me caçar por cada canto deste país para que eu veja a decepção e o ódio em seus olhos. Ele que sempre me tratou como uma Maharani, que sempre me deu carinho e fez todas as minhas vontades. Ah, baldi, eu sinto tanto!
Sento-me ao lado de uma lata de lixo e apoio minha cabeça na parede suja, deixando o choro me tomar mais uma vez.
Quando Kabir souber o que fiz, irá me odiar com todas as forças. Não por ter engravidado, mas por esconder algo tão grave dele. Sempre protetor, ele seria o primeiro a me ajudar a sair do país, com suas próprias rupias, só para não me ver cair em desgraça. E agora estou aqui, em um beco sujo, com ratos e baratas como companhia, e um choro amargo de arrependimento me rasgando de dentro para fora.
ㅡ Namastê, senhorita... ㅡ me assusto ao ouvir a voz de uma mulher.
Olho para o lado e vejo uma senhora, com um sari branco. Uma viúva.
ㅡ Precisa de ajuda? ㅡ sua voz é mansa e ela se aproxima.
A barra de seu sari está suja, e há alguns remendos pelo tecido. Carrega em suas mãos um saco grande, que parece pesado.
ㅡ Estava passando e ouvi seu choro.
ㅡ Chukriá, estou bem. ㅡ minto e enxugo meu rosto rapidamente.
ㅡ Atchá, mas não é o que parece. ㅡ a mulher sorri e para a minha frente ㅡ Perguntarei de novo... precisa de ajuda?
Com a respiração irregular e muito medo, decido ser sincera.
ㅡ Sim. ㅡ sussurro.
ㅡ Atchá! ㅡ ela sorri fracamente ㅡ Venha comigo, moro há alguns quilômetros daqui.
Levanto devagar, sentindo meu corpo reclamar a cada movimento, mas não saio do lugar. Desconfiada, olho a viúva meticulosamente da cabeça aos pés. Ela me devolve o olhar.
ㅡ Sua roupa é nova... ㅡ ela diz ao terminar de me examinar.
A sua não, penso. E me recrimino no mesmo instante.
ㅡ Parece bem criada, com roupas finas. ㅡ ela continua ㅡ Não irei perguntar o motivo de ser rechaçada por sua família.
Perco o fôlego por um instante ao ouvi-la.
ㅡ Como...
ㅡ Are Baba, sou vivida, ham. ㅡ ela balança a cabeça de um lado para o outro ㅡ Aprendi a ler as pessoas enquanto vivo pelas sombras, desprezada como toda viúva.
ㅡ E por que me ajudaria? ㅡ questiono intrigada.
ㅡ Porque uma viúva me estendeu a mão quando mais precisei. ㅡ ela diz e ajeita o sari sobre sua cabeça lentamente ㅡ Hoje é a minha vez de estender as minhas.
ㅡ Chukriá. ㅡ murmuro com a voz embargada.
ㅡ Venha, daqui a pouco a noite cai, é perigoso para nós, mulheres, andarmos sozinhas pela escuridão.
Olho em volta e percebo que realmente já vai anoitecer. Perambulei pelas ruas e becos durante o dia inteiro, sem água e sem alimento, e não vi o tempo passar.
Sigo a viúva para a rua movimentada. Andamos por alguns minutos, em um silêncio confortável, e logo entramos em uma ruela sem asfalto. Tenho que levantar a ponta de minha lehenga para não sujá-la nas poças de lama da estrada de barro. Estamos em uma das poucas favelas da cidade.
Mumbai é uma cidade muito rica, uma das mais ricas da Índia, mas não é livre das favelas. Engulo meu orgulho a seco e tento não olhar demais as casas em estado de miséria que vejo no caminho. Há crianças brincando nas valas e sorrindo, mulheres cozinhando em fogões improvisados de pedra e carvão, com um cântico de agradecimento na boca.
ㅡ Nunca esteve em um lugar assim, não é? ㅡ a viúva diz parando em frente a uma porta.
ㅡ Não. ㅡ murmuro.
ㅡ Logo você se acostuma. ㅡ ela abre a porta e indica com a mão para que eu entre também ㅡ Só não encare os homens casados, não queremos problemas com as suas mulheres, ham.
ㅡ Eu não vou...
ㅡ Atchá, não disse que vai, é só um aviso. ㅡ a viúva diz sorrindo.
Olho o interior da casa e vejo que é um lugar muito simples, porém muito limpo. Há um pequeno sofá com algumas almofadas remendadas, um vaso de flores artificiais, uma pequena mesa e uma cama. Tudo isso em apenas um cômodo.
ㅡ Não tenho geladeira e nem fogão, ㅡ ela diz abrindo a pequena janela ㅡ aqui cozinhamos ao ar livre, e bebemos água em temperatura ambiente.
ㅡ Tik...
ㅡ Você irá me ajudar a lavar as roupas. ㅡ diz apontando para o saco que estava carregando ㅡ Eu buscarei, lavaremos juntas e você entregará.
ㅡ Eu nunca...
ㅡ Tik tik, já sei que você nunca fez isso, criança. ㅡ sua voz é risonha ㅡ Mas aprenderá. Concorda?
ㅡ Tik. ㅡ confirmo com a cabeça veementemente ㅡ Farei o meu melhor.
ㅡ Eu sei que fará. ㅡ a viúva diz dando leves batidinhas em meu ombro ㅡ Poderá dividir a cama comigo, mas se roncar terá que dormir no sofá.
Solto uma risada fraca e olho agradecida para a mulher a minha frente. Se fosse em outra situação eu teria trocado de calçada para não passar do seu lado na rua, pois viúvas eram tidas como um sinal de mau agouro.
ㅡ Eu não ronco.
ㅡ Atchá, maravilha! ㅡ exclama juntando as mãos ㅡ Vou preparar nosso jantar, mas terá que trocar de roupa para não chamar a atenção.
Ela puxa um baú velho e tira um sari amarelo, desbotado pelo uso.
ㅡ Use isto, amanhã pergunto as vizinhas se têm saris velhos para doar. O banheiro é no puxado atrás da casa, terá que dar a volta se quiser usá-lo.
Minha mente leva um tempo para registrar as palavras e fico parada, no meio do cômodo, olhando para o tecido desgastado e remendado sobre minhas mãos. Terei que usar saris doados. Eu que, ontem mesmo, usava um sari bordado com fios de ouro, viverei com roupas que mulheres pobres não querem mais.
As lágrimas caem sem parar ao trocar minhas roupas. Prendo meus cabelos em um coque, e dou a volta na casa para usar o banheiro. É uma cabine de madeira, com apenas um vaso sanitário sem tampa, quatro baldes cheios de água e um cano preso na parede, que suspeito ser usado como chuveiro. Com um pote pego um pouco de água e lavo minhas mãos e rosto, que se misturam as lágrimas incessantes.
Quando volto para o pequeno quintal a viúva já está com o fogo aceso, e um mini caldeirão, pendurado por dois pedaços de madeira, balança levemente sobre o fogo enquanto ela mexe uma colher de pau.
ㅡ Sente-se neste banquinho. ㅡ ela indica com o queixo sem tirar os olhos do preparo ㅡ E pode começar a contar sua história.
Me acomodo no pequeno banco de plástico e, em meio às lágrimas, abro meu coração para uma viúva desconhecida. Falo por tanto tempo que minha garganta seca, e tenho de beber um pouco de água. Minha salvadora não diz absolutamente nada, apenas balança a cabeça vez ou outra, para demonstrar que está prestando atenção.
Quando conto as duras palavras que ouvi de minha mamadi ela me olha com pena. Anda em minha direção e se abaixa na minha frente, segurando uma de minhas mãos.
ㅡ Não se preocupe, minha jovem, sua mami lhe ama! Ela apenas não soube lidar com algo que é tão temível em nossa sociedade.
ㅡ Ela não me ama, nunca amou. ㅡ digo com raiva.
ㅡ Are Baba, não diga tolices! ㅡ ralha fazendo uma careta engraçada ㅡ Venha, vamos nos alimentar e dormir. Amanhã temos um longo dia.
Comemos em silêncio dentro da pequena casa, ambas tão cansadas que nossos olhos pesam e se fecham enquanto mastigamos.
Sinto meu corpo agradecer ao me deitar na cama, rapidamente meus músculos relaxam e sinto o sono me tomando em cada respiração.
Agora essa é minha vida. E se, vivendo assim, eu conseguir dar uma vida digna a essa criança, que seja.
Darei o meu melhor.
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