— Eu tenho uma denúncia a fazer — por fim, exclamou, depois de uma luta interna temida como se fossem os espartanos e os atenienses. Sentia que ele próprio estava trazendo o cavalo de Troia para si mesmo. Sentiu-se imundo por, por poucos minutos, se questionar se deveria ser leal ou não ao Partido, por coisas tão triviais e anti revolucionárias como aquele relacionamento imundo e carnal. Então, em impulso, como se fosse Leônidas ou até mesmo Alexandre, o Grande, decidiu ser leal porque era o que ele tinha aprendido a vida inteira. O que seu pai pensaria dele se fizesse diferente? O que ele pensaria de si próprio se poupasse a vida de traidores? Obviamente, seria um traidor, e isso estava fora de questão. O Partido, o bem social, estava acima de camaradagem ou até mesmo amizade.

— Entre, diga-me o que houve. — Os dois adentraram a sala. Friedrich sentiu-se importante, sentiu aquela satisfação de dever cumprido, de vitória numa batalha silenciosa, mas a pior de todas, aquela que você trava contra a sua própria consciência. Mas estava feliz porque havia vencido.
— Diga. — O instrutor se acomodou em sua poltrona, atrás de uma mesa de madeira de acácia bem organizada e na mesma paleta de cores de todo o resto da sala, que ao mesmo tempo que parecia acolhedora e segura, carregava nas entrelinhas e em cada canto um ar opressor e indiferente. Talvez porque era dali que saíam os gritos durante a madrugada ou devido às manchas esquisitas nas paredes, muitas vezes estampadas com quadros ou dizeres do Partido. Mas isso não importava, porque as crianças não precisavam olhar para o resto da sala, somente para o instrutor, sempre para o instrutor.

— Apanhei Luca Marino, cadete 064, e Maria Martins, cadete 102, com trocas de afeto às escondidas — denunciava com uma voz robótica, fria, indiferente, como era de costume do filho do ministro.

— E o que você acha que deveria ser a pena para esse ato tão grotesco e retrógrado? — O instrutor fez do limão uma limonada. Queria ver o quanto dos princípios do Sanguinismus estavam vivos e presentes na memória a longo prazo do rapaz. Mesmo que o menino fosse misericordioso e desse uma vaga e indiferente condenação, o instrutor já sabia o que iria fazer: removê-los da academia e arruinar a vida de seus pais e a deles ao ponto de a vergonha e a desgraça os consumirem de geração em geração, para que nunca mais nem eles nem seus parentes ou gerações vindouras realizassem o mesmo ato sujo e imundo de amar.

— Expulse-os primeiramente como pede o Sanguinismus, depois anuncie ao Partido inteiro, como deve ser feito, ao ponto que seus pais sejam envergonhados. Eu não ousaria acrescentar nenhum ponto nas leis e princípios do Partido, porém, recomendaria 20 chibatadas para que jamais se esquecessem do que aconteceu hoje. Afinal de contas, a dor é importantíssima para a ordem, como o M.O. ressaltou em seu discurso em 2005. — Essa resposta deixou o instrutor em êxtase. Nunca tinha tido um aluno tão exemplar, tão dedicado e tão envolvido com a doutrina e ideologia do partido. Hermann olhava agora com admiração e esperança, porque em jovens assim estava o mundo que o partido tanto desejava: um mundo de paz e igualdade.

-Perfeito! Devido à sua lealdade, como recompensa, você mesmo executará. A lei do Partido, ou melhor, a disciplina.- Havia uma grande tensão e uma mistura de sentimentos no ar enquanto o instrutor sentia-se orgulhoso e realizado com o quão doutrinado era o jovem. Friedrich sentia-se realizado e contente, mas ao mesmo tempo carregava tensão e medo, uma certa incapacidade. Sentiu-se poderoso, mas também fraco.

-Não farei mais que minha obrigação, instrutor. -Disse Friedrich, realizando o gesto do Partido com as mãos.

-Não vamos esperar! -Ele se levantou com ímpeto em direção à porta. - Agente! Agente Santiago!-Havia uma divisão étnica dentro do Partido: europeus, principalmente germânicos e russos, ocupavam os cargos de maior relevância e poder (Partido Interno), enquanto latinos, árabes e asiáticos residiam em posições inferiores (Partido Externo). Entretanto, o Partido nunca demonstrava explicitamente seus preconceitos étnicos, visto que exercia um discurso de igualdade e diversidade. -Localize os cadetes 064 e 102 e leve-os para a parte central do pátio, agora mesmo!
-Sim, camarada!- O agente virou-se e foi cumprir a ordem.

-Vamos, Friedrich. -Não se pronunciava o nome dos alunos, pois isso ressaltava suas individualidades, algo que não era contra o Partido propriamente, mas não era recomendado. Contudo, Hermann sentiu a necessidade de exaltar a unicidade de Ivanov, visto que não existiria alguém tão leal quanto ele.

Agora, os dois já estavam perfeitamente eretos no centro do pátio, onde era possível perceber o murmúrio de vozes e olhares curiosos, todos divididos entre Friedrich, Luca e Maria, que ocupavam o centro da roda, lembrando as arenas romanas, onde o Instrutor e Ivanov assumiram o papel de leões. O Instrutor lançou um olhar apreensivo sobre Friedrich, aguardando que o jovem iniciasse o espetáculo, ou a "condenação" dos cadetes apaixonados, como poderia ser adequado sinônimo. No entanto, houve um momento de resignação, uma pausa silenciosa, mas fervente e conflituosa dentro de Ivanov. Ao ver seu amigo ali, cabisbaixo e com um olhar mórbido — o pior de todos os olhares, de desilusão — ele sentiu um desconforto genuíno, algo novo para ele: a empatia. Por um instante, Ivanov fixou seu olhar nos réus, ponderando sobre como poderia ter oferecido a eles uma saída, mas logo cortou esses pensamentos, considerando-os como ervas daninhas que tentavam minar sua lealdade ao Partido. Seu olhar empático e arrependido transformou-se rapidamente em um olhar impiedoso e raivoso.

-De joelhos! -Disse o menino, agora carregando um tremendo ódio, insatisfação e revolta. Devido a essa mistura de sentimentos, ele seria mais cruel do que o necessário com os amigos, que se tornaram o objeto de sua revolta. Por causa deles, ele questionou sua fidelidade ao partido, algo que nunca havia acontecido antes. Portanto, ele poderia ser mau, mas seria ainda pior. Ervas daninhas e raposinhas precisavam ser cortadas pela raiz. Laranjas podres não deveriam nem existir, para que não houvesse a mínima possibilidade de contaminarem as boas.
-Aqui estão dois exemplos de ingratidão, algo que vocês devem sentir repulsa. Vocês devem sentir repulsa deles! Mesmo o Partido sendo tão benevolente e misericordioso, eles tiveram a imoralidade de trair o Partido por coisas banais, como o amor, que para nós sempre foi ensinado com admirável qualidade de ensino, que esse sentimento só nos destrói e atrapalha o coletivo. Então, eles não serão mártires porque eles estão errados. Eles não devem ser considerados vítimas porque eles estão causando dano, dano para os seus pais, dano para a nossa sociedade, e dano para mim e para você.

Então, eles são inimigos da liberdade, sabotadores, e principalmente desleais. Se eles não conseguem ser fiéis ao próprio Partido, como vocês imaginam que eles serão fiéis a vocês? — disse Friedrich, carregando nos olhos raiva e ressentimento.
Ele não queria sentir pena, mas no mais íntimo de sua alma, sentia. Ele não queria se importar, mas no mais íntimo de seu ser, sua pequena faísca de humanidade gritava, porque ele não queria não ver mais Luca. "Foram amigos, mas agora desejava que Luca sumisse da face da terra," pensou enquanto pegava uma grande vara. Era o que ia usar para dar as chibatadas aos seus próprios colegas. Ergueu-a ao alto e disse:

— Observem, isso não é punição, isso é liberdade. Isso é devido, visto que eles mesmos reconhecem seus erros.