Capitulo VI
O Partido trabalhava assim: demonizava ou problematizava um grupo de pessoas, classes ou coisas e depois desenvolvia resoluções para os problemas impostos por ele mesmo. Dessa maneira, a criação de inimigos externos se tornava uma estratégia constante, onde a oposição era retratada como a raiz de todos os problemas sociais. Essa técnica buscava desviar a atenção das verdadeiras questões e consolidar o poder através da divisão. O Partido promovia uma imagem de caridade e equidade, uma fachada cuidadosamente construída para esconder suas verdadeiras intenções. Por trás dessa aparência de justiça e progresso, havia um sistema que usava a retórica para criar uma falsa sensação de ordem e bem-estar.
Enquanto os grupos que o Partido perseguia eram apresentados como obstáculos ao avanço social, na verdade, essas ações serviam para manter um ciclo contínuo de conflito e controle. Ao apontar constantemente novos inimigos, o Partido evitava questionamentos sobre suas próprias falhas e direcionava a frustração popular para alvos externos. Dessa forma, o regime se apoiava na construção de uma identidade pública que contrastava fortemente com suas práticas internas.
— A Liberdade é o Partido — sussurrou Friedrich por fim, sem perder um milésimo do foco em seu alvo, já que estavam praticando o manuseio das metralhadoras. Ivanov gostava da Vityaz-SN, ela lembrava a destreza de seu pai. — A igualdade — o conceito mais destrutivo e utópico que a sociedade busca encontrar — está inserida desde o início no Partido. Não sejam tolos e foquem na atividade. — Atirou e acertou em cheio no alvo com quatro tiros consecutivos. — E talvez assim vocês possam retribuir tudo o que o Monitor da Ordem faz por vocês. — Ficou de pé e, com um charme inato, colocou a metralhadora nas costas e, com um olhar paisagista, esperou os outros atirarem.
Todos ficavam um pouco irritados, mas o medo e o possível respeito ou interesse faziam com que ninguém jamais questionasse o que Friedrich pensava. Após alguns minutos, todos já tinham atirado e efetuado a mesma atividade duas vezes. Todos os amigos de Friedrich eram excelentes alunos. Talvez a relação deles não fosse amizade e nunca seria; afinal, esse sentimento — laços afetivos, carinho e amor — eram coisas que o Partido não admitia, e a propaganda contra isso era tão poderosa que realmente fazia com que a amizade fosse vista como um sinal de fraqueza. Para o Partido, a amizade tornaria os indivíduos "proletários mentais", e isso era inadmissível. Sendo assim, eles tinham uma relação líquida, onde a relação era fortificada ou enfraquecida com base no que cada um podia fornecer ao outro. Por isso, Friedrich era o centro do grupo, porque, conscientemente ou inconscientemente, todos sabiam que ele era quem poderia fornecer mais recursos. Ele era o recurso e jamais o ônus.
Os dias iam passando: o inverno os deixou por alguns meses, a primavera foi animada, o outono cansativo, e o verão era frustrante devido às atividades de intenso exercício físico e ao calor, que para Friedrich era insuportável. Mesmo que o Partido tentasse, com aulas extensas e seminários corriqueiros, mostrar como amizades, amores e sexo eram coisas totalmente retrógradas e que estavam ali simplesmente para atrapalhar o crescimento social, a intimidade era mais forte do que todas essas palavras cheias de mentira e doutrina. Com o tempo, os quatro meninos acabaram desenvolvendo um laço. Aquela extremamente líquida relação começou a se solidificar um pouco; ainda não era uma relação de iceberg, mas também não era uma relação superficial. Até mesmo Karl fazia parte do grupo, mesmo que as afrontas fossem constantes. Friedrich, inconscientemente, não conseguia ver a Academia sem a companhia dos meninos, tanto de Luca com seu jeito barulhento e extravagante quanto de James e Karl, que eram quietos, mas extremamente estrategistas e astutos.
Era uma terça-feira. Se é que naquela altura se podia afirmar com exatidão que era tal dia da semana, afinal, se o Partido quisesse mudar os dias do calendário, mudaria e as pessoas nem perceberiam. Se quisesse colocar um dia a mais no calendário também poderiam, e as pessoas nem perceberiam. Afinal, dias da semana são construções sociais, e construções sociais são manipuladas por quem controla o passado; e quem controla o passado controla o pensamento social. Portanto, o que é um calendário? O que são cinco dias úteis e dois dias de final de semana quando você pode alterar os pensamentos individuais de uma pessoa? Por isso o Estado tinha poder: ele conseguia entrar na mente humana.
Mas, para todos os fins, no calendário da mesa de madeira escurecida e velha do professor Herman, afirmava-se que era terça-feira e, devido a isso, eles teriam aula de História do Partido. A aula era essa que despertava uma certa animação em Luca, que era apaixonado por História e, obviamente, pelo Partido. Todos estavam em silêncio, como deveriam estar, sentados perfeitamente sobre suas cadeiras desconfortáveis de metal e com os olhos fixos no instrutor, como deveriam estar. Nunca foram verdadeiramente crianças, mas robôs doutrinados pelo Partido para obedecer sem questionar, matar sem duvidar, e repetir o lema do Partido com a convicção de que aquilo era o certo a se fazer por toda a vida. Por isso, os olhares estavam fixos no instrutor, pois o instrutor simbolizava o Partido e o Partido era o lugar que todos de Tarsis deveriam estar, era mais que um patriotismo ou um nacionalismo extremo; era um ideal de vida, um propósito, uma veneração. E isso Friedrich fazia sem nem precisar pensar. O tema de hoje era a importância da revolução, a importância de pegar em armas pelo ideal, a importância da lealdade aos princípios partidários, e a importância de ser ortodoxo ao Partido.
— Após a negação parlamentar da tentativa do Monitor da Ordem de peticionar ao Primeiro-Ministro da época para rever, junto com os parlamentares, a Constituição e adicionar as ideias do Partido para uma manutenção da ordem social, foi necessária a revolução. Visto que o Monitor da Ordem não podia mais, junto com seus aliados, ver as desigualdades sociais, a opressão, o pouco caso com as vidas e a destruição que as classes sociais estavam causando ao bem comum, ele viu ser necessário e urgente a Revolução de 2000. Vocês entendem agora o porquê de ser importante pegar em armas? O necessário foi a morte de inocentes para que hoje vocês tivessem liberdade? — moralizava com ímpeto o devoto instrutor Herman, e os alunos, como cães, dilatavam os olhos impressionados com o benévolo impacto do Monitor da Ordem. Mas, como cães que não entendem a língua humana, não tinham ideia de que aquilo era só um compilado de dogmas e mentiras.
— Instrutor! Eu não consigo compreender — disse uma menina com traços indianos, olhos profundos, castanhos e curiosos. — Por que pessoas inocentes morreram então? Se a revolução tinha o intuito de livrar as pessoas comuns da opressão?
— Como você ousa? Você não consegue perceber a essência da revolução? Não consegue notar os sacrifícios, os mártires desse sonho de liberdade? É por pessoas como você que a revolução demorou tanto para acontecer, pessoas que focam em pequenos agrupamentos e não conseguem ter uma visão ampla da sociedade. Pessoas que dizem entender o efeito da globalização, mas ainda focam em localismos banais. Você não entende o conceito da morte de inocentes. Foram pessoas que, se estivessem aqui agora, não fariam essas perguntas e seriam idiotas questionando o Partido, questionando todo sacrifício que nossos antepassados fizeram para que você estivesse sentada nesta mesa confortável, sem ter que trabalhar horas a fio em indústrias precárias. Então, antes de questionar o Partido, entenda o conceito de liberdade. Entenda que sempre haverá pessoas que morrerão pelo bem comum, para que haja justiça e igualdade. O sangue gera paz, e a paz é irmã da liberdade, e a liberdade é o Partido. Se não fosse pelo Partido, você não teria liberdade de expressão, você não teria liberdade de ir e vir, você estaria presa a dogmas sociais controlados por capitalistas cheios de dinheiro sujo do sangue de milhares e milhares de inocentes que, aí sim, estariam morrendo em vão. — Friedrich gritou, levantando-se com uma mistura de irritação e indignação, não dando tempo nem mesmo para o instrutor pensar em uma resposta. Aquele questionamento mexeu com todo o interior e ideologia do jovem. Como alguém poderia questionar a revolução, algo tão nobre, tão sagrado? Ele olhava com tanto ódio que todos conseguiam ver que, se tivesse uma arma, não hesitaria em exterminá-la da face da Terra, e isso assustava até mesmo o instrutor, que agora o olhava com uma mistura de realização, orgulho e espanto.
— Escutem bem! Quem pode ajudar a todos nós? O Partido, que dia a dia disponibiliza homens e mulheres, que dão o seu suor e sua intelectualidade por pessoas desconhecidas para que a sociedade cresça, não pelo dinheiro ou pelo capital, mas pelo desenvolvimento científico e intelectual das pessoas. Escutem bem! Onde as pessoas podem encontrar segurança? No Partido, que não olha a raça ou etnia, mas se preocupa na proteção e na reprodução da espécie humana! Ah, então houve erro na revolução? Não! Não há erro onde há liberdade, pois o Partido não foca em mentiras em prol do crescimento econômico de minorias, mas na igualdade que é direito da espécie humana! Portanto, escutem bem! O Partido é igual, o sangue gera paz, e a liberdade é o Partido! — A oralidade era tão semelhante à do Monitor da Ordem que, se você fechasse os olhos, seria transportado para qualquer discurso do Monitor da Ordem na Praça Central. Porque Friedrich não só imitava, mas tinha a mesma essência; ele acreditava nos mesmos ideais. Ele era a personificação de todas as palavras outrora proferidas pelo Monitor da Ordem. Então, não era apenas um fã, um admirador, mas um discípulo, uma cópia, um clone, e isso assustou a todos naquele momento ao ponto de a sala carregar um silêncio mórbido e sombrio. Não que fosse diferente do corriqueiro, mas agora eles não tinham medo de algo presente em todos os lugares, mas invisível. Agora, eles tinham medo do Partido e de Friedrich, que era o Partido.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro