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Capítulo 3

Um cântico gregoriano era entoado na pequena capela. Quem estaria lá, além do padre, àquela hora? Sem refletir, Julie e Ross entraram de mãos dadas.

Uma dezena de pessoas formava uma meia lua de frente para o altar. Todas com seus rostos cobertos, segurando uma vela. De frente à pequena multidão, repousava um imponente piano, casto, com a luz do teto a reluzir na superfície. O objeto parecia deslocado dos adornos escuros e gastos daquele local sagrado.

— Vocês quase se atrasaram, filhos! — disse o padre com o olhar vidrado nos recém-chegados. Sua postura quase estática, no centro do altar, camuflava-se com o painel nas suas costas.

Eles avançaram, sem protestar ou exigir explicações, nem mesmo reconheceram a senhora sorridente do lado do padre.

A larga lua negra separou-se em duas metades perfeitas, com uma pequena frestra no meio. O estreito corredor improvisado recebeu os passos inseguros dos desmemoriados.

Os olhos dos jovens detiveram-se nas teclas calcadas por dedos que não se viam, criando os sons fortes que amparavam as vozes do coro. O pequeno banco negro de veludo reservava-se à comodidade do vazio. No chão, um círculo com alguns símbolos contornava todo o piano. Os dois reconheceram o elemento que também constava no tabuleiro que Ross herdara do avô. As expressões neutras moldaram-se ao receio trazido com as memórias.

— O que nos vão fazer? — A voz de Julie tremeluziu junto com as velas. — Vão ajudar-nos? — Seu olhar pedia clemência ao padre.

— Já fizemos tudo o que podíamos. Agora, é com vocês — comunicou a mulher de cabelos brancos, encarando Ross como se o desafiasse.

O rapaz levantou a mão fechada. Julie arregalou os olhos ao vislumbrar o papel amachucado a surgir por debaixo dos dedos longos do amigo.

Ross desdubrou o papel e leu as palavras em voz alta:

— "Alimentem-me até que a música cesse".

Julie sentiu um peso inesperado na mão esquerda, aquela que, até há momentos, buscava conforto na mão calorosa do amigo. Um arrepio percurreu-lhe o corpo ao levantar o braço e encarar a adaga afiada que segurava. Pelo canto do olho, ela conseguiu ver Ross agir em espelho. As duas adagas continham a mesma combinação de símbolos na lâmina.

— O que devemos fazer com isto? —Julie berrou histérica.

— Alimentá-lo — concluiu Ross, sem qualquer entoação na voz.

O rapaz voltou-se para a meia lua que lhes obstruía a saida. Ele estava decidido a salvar a sua vida e a da amiga.

Num movimento precipitado, Ross correu para a figura coberta de vestes negras à sua frente. O tecido não deixava antever nem um único milimetro de pele.

Com uma facilidade surpreendente, ele afundou a lâmina da adaga no peito do estranho. O sangue espirrou antes do grito seco sobrepor-se à canção. O corpo tombou no chão em agonia, enquanto o resto do coro continuava a harmonizar com o piano.

— O que você fez?! — A garota olhava horrorizada para o corpo sem vida.

O fluxo de sangue espesso começou a deslizar pelo chão, como um riacho. Uma linha vívida desenhou-se entre os dois amigos e, atraida pelo magnetismo do piano, espalhou-se pelos veios do círculo desenhado no chão. O instrumento pareceu pulsar, todas as teclas foram calcadas em simultâneo, para, logo depois, o ritmo ser retomado. O rio escarlate continuou até ao altar e dividiu-se em dois cursos. O sangue subiu, só desaparecendo ao ser sugado pelas narinas e olhos dos dois humanos. As pupilas alastraram-se até preencher toda a cavidade. Aqueles dois seres eram a boca do demônio e o piano, o coração que o mantinha vivo e forte naquele plano terrestre.

— É isto que ele quer — declarou Ross ao ver a expressão enjoada da amiga. — Se o alimentarmos, não precisamos morrer.

— Mas e estas pessoas? — Julie apontou para o coro que se mantinha firme na sua posição. — Não podemos matá-las!

— Olha para eles! Nem rosto têm. Talvez nem sejam humanos.

E como era fácil matar algo sem lhe olhar nos olhos! Ross levou a adaga à vítima seguinte, tragando-lhe a vida. A lâmina rasgava brutalmente a carne, o movimento era rápido e preciso, mas os órgãos entravam em falência numa cadência lenta, morosa. Os corpos iam caindo, esvaindo-se em sangue. Alguns convulsionavam no chão, tentativas inúteis de se agarrar à vida.

A música preenchia a capela, não se notando as sucessivas perdas.

— Julie, se você não o fizer também, não vai resultar!

— Não adianta — defendeu Julie com a voz embargada pelas lágrimas. — Ele quer o nosso sangue!

— Que seja!

O rapaz lançou-se sobre o corpo da amiga e empunhou a adaga ensanguentada no ar. Julie tentou fugir, mas o amigo puxou-lhe o braço e desferiu-lhe um corte profundo na carne.

— Usa tua adaga em mim!

Ainda que reticente, Julie torcia para que aquele sacrifício fosse o suficiente. De olhos fechados, ela baixou a adaga sobre a mão do amigo. O gesto pouco preciso e com força desmedida, custara, a Ross, um polegar.

— Está tudo bem — garantiu o amigo ao ver o estado aflitivo da jovem. Ele calava a sua própria dor para não a alarmar ainda mais.

Não estava tudo bem. A música continuava. O DNA dos dois amigos não saciara o demônio. Um verdadeiro sacríficio nunca se fazia voltando as armas para os outros. E Julie percebeu isso. Ela havia pensado que aquele local sagrado seria a sua salvação. Um pensamento implantado convenientemente pelo dono de sua alma. Mas todos os locais de luz contêm um pouco de trevas. Nada, nem ninguém, está a salvo delas.

Num acesso de fúria, Julie correu para o círculo sangrento e subiu no piano. Com a adaga, cortou os pulsos até chegar ao osso.

— Nos vemos no Inferno! — bramou para o teto sagrado, contendo o gincho de dor.

A jovem puxou a língua para fora e arrancou-a com um corte da lâmina. Os sons que emitia passaram a ser mais guturais. Os dedos das mãos foram amputados, um a um. O sangue caía em casacata sobre o branco imaculado do instrumento, juntamente com os pedaços de carne morta. Os focos de dor espalharam-se por todo o corpo. A cada nova investida ela ficava mais fraca, mais inebriada.

Ross assistia a tudo, atordido. Seus músculos completamente paralisados pela aparente insanidade da amiga. Quando ela perforou o estômago de cima a baixo, as entranhas ensaguentadas fizeram-no regurgitar.

Julie tombou sobre o piano, sem vida, mas ainda vertendo o sangue que era doado ao demônio que o reclamara.

A música cessou, por fim, e Ross desfaleceu sobre o sangue dos inocentes. Poderia escapar com vida, mas nunca ileso. E sua alma? Essa, ainda não lhe pertencia.



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