Capítulo 1
As nuvens acinzentadas adensavam-se no céu de Spaced Hill. Não se ouvia risos, não havia conversa, todo som que era possível escutar provinha do cortejo fúnebre que percorria as ruas estreitas da pequena cidade. No centro do aglomerado, um caixão deslocava-se lentamente no ar, quase como uma ocorrência sobrenatural. Não o era. Pelo menos, não o que fazia mover a madeira inofensiva que protegia o corpo. Os quatro homens robustos e altos suportavam o peso sem reclamar. Atrás do receptáculo, um casal de meia idade chorava em prantos, enquanto os pés, apertados nos sapatos de cerimônia, eram forçados a avançar.
Um sereno fino começara a cair e misturava-se às lágrimas de alguns dos indivíduos que, pé ante pé, despejavam suas lamentações no asfalto gasto. As cores pareciam ter desvanecido com a água. A enorme mancha negra dos tecidos, outrora esquecidos no fundo do armário, contagiava cada pequeno recanto imaculado.
Ao passarem em frente à igreja, todos fizeram o sinal da cruz e retornaram o arrastar dos próprios corpos em direção ao cemitério local. Exceto três jovens, que preferiram parar antes de o cortejo atravessar a rua central. Observavam ao longe, com olhares vagos e temerosos.
Uma lágrima transcorreu a bochecha pálida de Julie antes de cair sobre a camiseta preta, onde seus cabelos baços se perdiam.
— Ele disse que isto iria acontecer — falou a que estava do lado oposto, com os cabelos vermelhos presos no topo da cabeça.
— Foi só uma coincidência, Kate — respondeu o do meio.
— Ela tem razão.
— Ele estava maluco! — bradou Ross, sem paciência. — E vocês duas também vão ficar se continuarem pensando nessa estupidez.
— É amanhã — lembrou Julie, encarando as pessoas que desapareciam na última curva. — Sexta-feira treze é amanhã.
— Para com isso! Você não...
— Presta atenção, Ross! — A morena segurou o braço do rapaz e o virou de frente para ela. — Ele disse que aquela coisa viria buscá-lo dois dias antes do verdadeiro sacrifício na sexta treze. Não é coincidência ter sido atropelado ontem.
— Quer dizer que agora você acredita em toda aquela baboseira de jogo da alma? — perguntou o amigo e foi possível ver os seus tecidos da garganta tensionarem enquanto engolia saliva.
— Não deveríamos ter feito aquilo. Nós prometemos nossa alma a um demônio e agora ele vai vir nos buscar – concluiu Kate temerosa, ignorando a animosidade entre os dois amigos ao seu lado.
— Foi uma brincadeira, e o que aconteceu com ele foi uma fatalidade — insistiu Ross, se soltando de Julie.
Enquanto os três discutiam, devagar como quem está perdido, uma senhora de estatura baixa e cabelos brancos, cobertos em parte por um véu escuro, apareceu. Seu semblante era doce e aprazível. Ela estacou bem próxima a eles.
Julie secou as bochechas e os outros dois recuperaram a postura. Kate foi a mais rápida a disfarçar o que acontecera e deu um passo.
— Posso ajudar? — questionou.
A mulher abriu a mão direita, expondo um papel amassado à humidade do ar. Num movimento fluído, quase estudado, a idosa entregou-o à ruiva e puxou-a para si, com cuidado, até que a orelha da moça ficasse próxima de sua boca.
— É a sua vez agora — sussurrou.
Kate arregalou os olhos e encarou a mulher que sorria de uma maneira tão perfeita que lhe parecera assustadora. Os três, paralisados, contemplaram sua face marcada pelo tempo.
— Espera! — Julie gritou à senhora que se afastava impávida.
A misteriosa mulher não lhe deu ouvidos e desapareceu na esquina seguinte, por entre uma súbita nebulosidade que descaíu sobre o asfalto.
— O que tem aí? — inquiriu o rapaz afoito.
— Se-sexta-feira... — Ela estendeu o papel enrugado, deixando-o visível aos amigos. — Treze.
Assim que pronunciou a última palavra, a feição de Kate tornou-se branca como uma vela e os três escutaram o crocitar de um corvo, ao longe. Os dois amigos, que, vez ou outra, confrontavam-se, firmes de suas crenças antagónicas, ergueram o rosto para o horizonte, na direção exata do som. Um movimento síncrono que os uniu em um mesmo Destino. Num estranho contraste, a jovem de cabelos de fogo curvou o corpo, levando as mãos ao estômago. Suas vísceras reviravam como se um animal se contorcesse dentro dela. O gosto metálico invadiu suas papilas gustativas e ela tombou de joelhos, escorando os braços no chão. O líquido escarlate e espesso, que expelia aos montes, banhava a calçada e suas gotas manchavam a parede do comércio ao lado.
Julie e Ross, visivelmente apavorados, tentaram se aproximar e ajudar a garota que não sustentava o próprio corpo. Já jogada no solo, apenas fazia os movimentos convulsivos automáticos do vômito ensanguentado.
Um grito agudo rompeu da boca escancarada de Julie, chamando a atenção de um dos donos de armazém daquela parte da cidade. As ruas estavam vazias, escoadas pelo enterro do jovem falecido.
O homem calvo de pele clara apareceu correndo e não se importou em pisar na poça de sangue. Ross afagava Julie em seu abraço. O arfar frenético do peito da jovem não a deixava dizer uma só palavra.
— Ela morreu. — Foi só o que disse o comerciante, com os dedos no pescoço da moribunda.
Kate era, agora, apenas um pedaço de carne morta jogado no chão.
855 palavras
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