Capítulo 6
Capítulo 6
Dormi demais e levantei no susto.
Com o organismo habituado, eu sempre acordava antes das seis da manhã. Mas, pela claridade que irradiava através da pequena janela, deveria estar por volta das oito horas.
Droga!
Dei um jeito de me arrumar rápido. Infelizmente não havia mais tempo de averiguar tudo no barco (da forma que eu gostava de fazer) antes do dia começar.
Saí da minha cabine, enlaçando um rabo-de-cavalo e seguindo direto para a cozinha.
Encontrei Mauro e Leonardo, os funcionários que ficavam nos motores, em pé fazendo seus desjejuns. Ambos nunca usavam a mesa para realizar as refeições. Havia um tempo que isso me incomodava, mas depois de insistir e até mesmo brigar para que eles sentassem como os demais, acabei por desistir daqueles dois.
– Bom dia. – Fiz um meneio de cabeça.
– Bom dia, patroa. – Falou Leonardo mordendo um pão.
– Bom dia, capitã. – Mauro também me devolveu o cumprimento. – A senhora parece descansada.
– Dormi mais que a cama, isso sim! – sentei à mesa já pegando a garrafa de café.
– Não faz mal. Está tudo em ordem, patroa. – Leo disse de boca cheia.
– A equipe dos médicos saiu faz meia hora. Eles perguntaram pela senhora. – Mauro começou a falar. Ele tinha trinta e três anos, um ano a menos que eu, e mesmo assim me tratava com formalidade. – Acho que é a turma mais animada que recebemos nos últimos tempos. Só perdem praqueles missionários tatuados que entregavam bíblias nas ribeirinhas.
– Ah, é? – levantei a sobrancelha achando graça de seu comentário.
– Sim. Eles não têm frescuras, comem qualquer coisa e faz social com nós sem fazer distinção de pessoas. Agora a pouco estavam todos aqui rindo, comentando sobre a festa de ontem e dando apelidos pra todo mundo.
Nessa hora, ele e Leonardo se entreolharam com vontade de rir. Então resolvi perguntar:
– Por acaso eu ganhei um apelido?
– Não, capitã. – Leo negou rápido demais.
– Ganhei sim e vocês não querem me contar. – Peguei um pãozinho fingindo indiferença. – Já até imagino quem foi o engraçadinho...
– Não vá brigar com eles, patroa. Não foi por maldade.
– Não brigarei com ninguém, Leonardo. Só quero saber qual é meu apelido. Que mal tem em querer isso? Vamos lá! Me contem quem foi a mente criativa e qual apelido ganhei!
Mauro suspirou e começou a falar:
– Um dos técnicos em laboratório, o seu Roberto, disse que a senhora é uma matadora de cobra profissional.
– Aí o doutor Gustavo te chamou de A Exterminadora de Cobras. – Completou Leo.
– Hum, pelo visto o Indiana Jones dos Pampas não tem medo de morrer. – Comentei com vontade de rir enquanto passava manteiga no pão.
*****
Após o café da manhã, desci do barco para averiguar o casco. Mais tarde, seu Jorge, nosso oficial de comunicação, verificaria comigo a parte elétrica do barco. Eu tinha o costume de realizar manutenções preventivas para evitar problemas maiores no futuro. Esse tipo de procedimento, além de nos proporcionar mais segurança, evitava as famosas manutenções corretivas, nas quais chegavam ficar até quinze vezes mais cara do que a primeira manutenção.
Foi debaixo do sol escaldante às margens do rio Juruá que meu telefone apitou o recebimento de uma mensagem. Esse era o problema de parar numa comunidade ribeirinha um pouco mais "urbana". Eles tinham um sinal de internet satisfatório devido ao luxuoso resort que ficava nas redondezas.
Bom para os moradores da comunidade e ruim para mim. Eu queria trabalhar em paz sem que certas pessoas de Cruzeiro do Sul me importunassem.
Contrariada, abri a tela do aparelho e era ninguém menos que meu ex-marido. Uma mensagem simples e curta, sem saudação ou qualquer afeto. Apenas o nome completo da sua esposa ninfetinha, as informações bancárias e o valor a ser depositado.
Filho da mãe!
Infelizmente as chateações não pararam por aí. Logo o telefone começou a tocar. Na tela apareceu o nome de outro homem que me dava nos nervos: Teófilo Liberato. Engoli seco antes de aceitar àquela chamada.
– Alô.
– Bom dia, minha indiazinha! – a voz rouca pelo excesso de nicotina me enojou.
– Bom dia, seu Liberato. A que devo a honra de sua ligação?
– Eu gosto do seu deboche, Ísis Luara.
– O que você quer? – suspirei impaciente. – Não enrola, estou trabalhando.
O desgraçado riu e falou:
– A vantagem de ter que lidar com mulheres como você é que não preciso de fazer firulas. Sempre posso ir direto ao ponto.
– Então fala logo.
– Estou sabendo que estes médicos altruístas são funcionários de uma ONG. E que esta ONG tem como presidente a filha de um dos homens mais ricos da América Latina.
– O que isso tem a ver com o seu telefonema?
– Sei que você já recebeu por este trabalho e não deve ter sido em pouca quantia. Estou esperando a minha parte.
– Sim. Eu recebi, mas como o senhor sabe, apesar de meu barco estar num bom estado, não é novo. Eu não gasto um centavo que seja enquanto meu compromisso com esta equipe não acabar. Tudo pode acontecer nesta viagem. O barco pode quebrar, piratas podem nos assaltar, alguém pode se ferir... enfim. Assim como ficou o nosso acordo, os seus vinte porcento estará na sua conta quando o último médico altruísta sair do meu barco em Manaus.
– Ísis, Ísis... – ele pronunciou meu nome de modo arrastado. - Não é tu quem dita as regras. Você e seus funcionários precisam da minha proteção e tudo que quero é nada mais que minha parte.
– Eu já disse que sua parte será transferida no final da viagem! – comecei a andar de um lado para o outro às margens do rio.
– Isso não será possível, indiazinha. Sei que neste exato momento a senhorita se encontra na comunidade de Murumuru. Aí tem banco, caixa eletrônico e boa internet. Faça isso hoje antes que fique os próximos dias incomunicável no meio da selva. Preciso do dinheiro.
– Sinto muito, seu Liberato. Estou firme em minha posição. Voltamos a nos falar quando eu fizer a transferência no porto de Manaus.
– Não pense que se livrará de mim. – A ironia em sua voz evaporou, e embora continuasse a falar baixo, senti o tom frio e ameaçador. – Tenho conhecidos em cada canto do Juruá. Para evitar dores de cabeça, me pague agora. Tenha um bom dia, indiazinha.
*****
Assim que Liberato desligou, recebi uma nova mensagem do meu ex-marido. Se eu já estava borbulhando de raiva, fiquei a ponto de explodir quando li apenas três pontos de interrogação. Que merda era aquela? Zé não tinha o costume de mandar recados assim! Na verdade, ele era um homem bastante bronco, um zero à esquerda em tudo que envolvia internet e tecnologias.
Enraivecida, resolvi mandar uma mensagem de voz.
– Bom dia, Claudete. Não precisa se passar pelo Zé pra falar comigo. Sou uma mulher direta, gosto das coisas com transparência e dou minha cara a tapa, entendeu? Por isso prezo que as pessoas ajam comigo da mesma maneira que faço com elas. Odeio gente se escondendo atrás de outros. Então, se quiser falar comigo, não use o seu marido como escudo. Pagarei as contas de luz que estão atrasadas, mas não transferirei um centavo sequer para sua conta, garota! Se quiser ter luz em casa, me envie os códigos de barras. Passar bem.
Terminei de falar e guardei o telefone no vão do meu sutiã. Minhas mãos tremiam. Desde o divórcio, volta e meia eu pensava em vender o barco e recomeçar a vida em outro canto. Talvez ir para a capital, Rio Branco, ou quem sabe procurar um emprego no Sudeste.
Deixei minha visão se perder nas águas barrentas do Juruá. Ainda nervosa, comecei a pensar no meu diploma de engenheira agrônoma guardado no gaveteiro em minha cabine.
Será que ainda dava tempo de exercer a carreira que um dia foi tão sonhada? O mercado de trabalho aceitaria uma balzaquiana inexperiente como eu?
– Está tudo bem, capitã?
Olhei para trás e vi Gustavo há poucos metros. Virei-me completamente na sua direção pensando em como respondê-lo. Com as mãos nos bolsos, ele deu alguns passos até ficarmos frente a frente.
– Nada demais. Só estava dando um recado a amante grávida do meu ex-marido. – Quando me dei conta, já tinha falado demais. Não fazia parte do meu caráter jogar meus lixos emocionais nos outros. Aconteceu que ali eu me encontrava inconformada com os infortúnios da minha vida. – Com licença, doutor. Preciso voltar pro trabalho.
Sem perder a seriedade, fiz menção de me afastar, contudo, ele segurou meus braços e mirando em meus olhos, disse com brandura:
– Quer conversar sobre isso? – neguei com a cabeça, mas ele continuou: – Pode parecer esquisito falar sobre coisas pessoais com quem tu mal conheces. Mas não me sinto mais um completo estranho e tu me interessas muito.
Eu não consegui acreditar naquilo que tinha acabado de ouvir. Rapidamente algo entrou em alerta dentro de mim. Estreitei os olhos nem um pouco satisfeita e disse:
– Sei muito bem qual é o seu interesse, doutor. Sou mulher feita, conheço as maldades da vida. Não me venha com esse papinho de querer ouvir os meus problemas. Não caio nessa. – Minha voz saía baixa e firme. – Provavelmente você ouviu a mensagem que mandei para a amante do meu ex. Então me escuta, o que eu disse a ela servirá para o senhor também: seja direto e verdadeiro com as palavras. Se quer me levar pra cama, é só dizer. Posso tanto recusar, quanto aceitar.
O cretino riu de lado.
Lindo de morrer!
No instante seguinte tudo foi muito rápido. Ele grudou nossos lábios e enfiou a língua na minha boca. Não tive como afastá-lo ou dissimular o que senti instantaneamente.
Como eu poderia negá-lo se algumas horas atrás estávamos em situação semelhante? A brecha já estava aberta!
Além disso, o meu corpo, um tremendo traiçoeiro, se entregou de modo desavergonhado. Me agarrei ao seu pescoço seguindo o ritmo frenético daquele beijo extasiante. Eu me ardia de excitação, de raiva, de vingança, de calor, de frio e de adrenalina.
Tantos sentimentos em mim! Tanta vontade reprimida! Nunca pensei que o desabafo da minha alma viesse através de algo tão erótico!
A bem da verdade era que tudo aquilo estava delicioso.
Gustavo tinha uma pegada voluptuosa, pegada de homem experiente. Sua pele era quente e aconchegante. Um alento para meus dias escuros de outrora.
Deus, eu estava lascada!
Ofegante, ele interrompeu o beijo, colou as nossas testas e falou baixo:
– Eu não estou te prometendo casamento ou qualquer outro compromisso. Não é isso. Mas desde o primeiro dia que te vi, lá no porto de Cruzeiro do Sul, gostei do teu jeito, capitã. Estou atraído por tu! Se vamos ter que conviver no teu barco por um mês, te ofereço a minha amizade e noites inesquecíveis de muito sexo.
Ele voltou a me beijar, mas dessa veja com mais calma e ternura. Quando afastou o rosto, também me soltou de seus braços. Eu não sabia como deveria agir. Verdade seja dita: eu me encontrava num estado de entorpecimento, totalmente abobalhada.
– Pense bem no que estou te propondo, capitã Ísis. Minha cama, quer dizer, minha rede está a sua disposição.
Ele me deu as costas e entrou no barco.
*****
Nos Labirintos da Selva é uma novela literária escrita em parceria com Daiane_Gomes97
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