Capítulo 19
Capítulo 19
Jandira enviuvou muito cedo, mas nunca quis se casar de novo. Dizia que tinha amado demais Marcelino e que isso lhe era o suficiente. Dessa união veio duas filhas; Marcela e Almerinda. Ambas já estavam casadas e tinham filhos, ou melhor, cinco netas que eram a alegria da minha fiel cozinheira e sanfoneira (e quando precisava, atiradora também). Apesar de morar sozinha, em cada canto de sua casa havia fotos de sua família, provando que o lugar era o típico lar de uma vovó coruja e mãe orgulhosa.
Eu estava há dois dias com ela. Nesse tempo, consegui descansar e até mesmo me divertir com o jeito maluco de Jandira. Todas as manhãs ela colocava dois copos d'água em frente ao rádio da cozinha, depois ouvia a oração fervorosa de um pastor, dava "Aleluia" e bebia a água ungida.
Logo descobri que o segundo copo era para mim.
— Bebe, minha filha. Essa água é para te curar.
— Mas eu não estou doente, Jandira. — falei, me sentando na mesa da cozinha.
— Tá doente das emoções. — Ela deu as costas para passar o café na pia, mas continuou a falar. — Bebe, Ísis. Aqui nesta casa a capitã sou eu! Tem que fazer o que eu mando. Beba logo essa água, Jesus vai te curar!
Como uma boa hóspede, obedeci a minha anfitriã. No outro dia, nem ousei questioná-la. Assim que entrei na cozinha, tomei a água numa única golada e ainda falei "amém" no final.
Já era noite quando estávamos sentadas no sofá da sala. Com a televisão ligada, assistíamos a reprise de Riacho Doce. Jandira assinava um pacote de streaming onde tinha todas as grandes novelas e minisséries brasileiras.
— Quero comprar o Vitória Régia. — Soltou enquanto fazia crochê. Eu a encarei em silêncio, então ela levantou a cabeça com as sobrancelhas arqueadas e falou: — O que foi? Eu tenho dinheiro pra isso!
— Eu não falei nada.
— Mas está me olhando com cara de desacreditada.
— Na verdade, estou surpresa.
— Saiba que guardo boa parte do salário que você mesma me paga. — Ela voltou a dar atenção ao crochê e a tevê. — Vou comprar o seu barco e a senhorita vai se mandar para o sul.
— Não sou mais senhorita há um bom tempo, Jandi. — Sorri. — Ser chamada de senhorita me faz parecer virgem.
— Você vai aceitar o emprego, vai se mudar pro sul, vai criar a filha do doutor gatão e terá outros filhos com ele. — Ela suspirou sonhadora diante da imagem do ator Carlos Alberto Riccelli, o mocinho da minissérie.
— Pelo visto, você tem tudo planejado.
— Já ligou para o tal fazendeiro? — ela me lançou uma olhadela e fiz que sim com a cabeça. — E então?
— Ele quer comprar a minha passagem. Falou que preciso passar alguns dias em suas fazendas, conhecer como funciona as coisas por lá. Parece que serei guiada por ele e por outro engenheiro.
— Ui, o negócio parece chique.
— Pois é, o negócio tão chique que até me dá um frio no estômago.
— Qual é a graça se não der um frio no estômago? Olhe para a tevê. Vamos, olhe! — fiz o que ela mandou. Vera Fischer estampava a tela com sua gloriosa beleza. Ela interpretava Eduarda, uma mocinha não tão mocinha assim, pois traía o marido com um pescador de uma cidadezinha praiana. Ela e Nô, o amante, estavam no maior amasso quando meus olhos focaram a tela. — Se Eduarda não arriscasse, ela jamais viveria essa paixão com o Nô. Ela ainda seria a mesma mulher, deprimida e chata. Logo não faria sentido contar uma história assim. As histórias que valem a pena serem contadas são aquelas onde o protagonista sai da sua zona de conforto!
— Jandi, você sabe que em Riacho Doce as coisas são meio macabras, não sabe? — manifestei com vontade de rir.
— Eu sei! É a quinta vez que assisto essa minissérie, minha filha! — ela colou o crochê sobre o colo e me encarou. — Mas o que eu quis dizer é que você precisar agir! Ir embora de Cruzeiro do Sul, agarrar essa proposta de emprego com unhas e dentes, e transar com o doutor até a exaustão! Já percebi que você vira outra pessoa depois que trepa!
Comecei a ter uma crise de riso. Não consegui parar. Jandira era incrível!
Um pouco mais controlada, limpei as lágrimas de alegria, que escorreram pelo meu rosto, e falei:
— Aconselhou a crente que me obriga a beber água ungida pelo pastor da rádio! — voltei a rir e minha anfitriã me acompanhou.
*****
Por volta das onze horas da noite, eu me encontrava no quarto de hóspedes pronta para dormir. Tinha acabado de encerrar uma chamada com Gustavo quando telefone tocou novamente. Atendi no impulso, sem olhar no verificador.
— Boa noite, indiazinha.
— O que foi agora, Liberato? — apesar da voz do outro lado da linha ter me causado calafrios, mantive a postura firme.
— Precisamos ter uma conversa.
— Então diga.
— Hoje não. Amanhã.
— Amanhã não posso. — Me sentei na cama.
— Estou perdendo a paciência com você. — Bufou e pigarreou. — Amanhã temos um encontro as três da tarde. Apareça sozinha no endereço que receberá por mensagem.
— Não irei.
— Você vai porque se importa demais com seus funcionários, com sua reputação e principalmente com um certo doutor. Soube que ele tem uma filha.
— Seu desgraçado. — falei entredentes.
— Amanhã, Ísis. Te espero amanhã. Tenha uma boa noite. — Liberato encerrou a ligação, me fazendo perder o sono e a paz.
*****
Eu não queria preocupar Jandira, por isso, falei que daria uma volta pelo centro da cidade. As únicas pessoas que ficaram de sobreaviso foram Mauro e Miguel. Combinamos que se caso eu não voltasse ao bairro até no início da noite, eles acionariam a polícia.
Liberato havia escolhido um lugar próximo a Catedral Nossa Senhora da Glória. Era uma casa comum, com fachada chapiscada e portão marrom. Seu carro estava na rua, assim como um de seus capangas escorado na lataria a tragar um cigarro. Quando o moço me viu, segurou a ponta do chapéu para me saudar. Não devolvi o cumprimento, eu queria distância daquele tipo de gente. Então, ele abriu o portão e eu entrei no local. O pátio tomava metade do lote e logo na porta de entrada da casa havia um homem e uma mulher. Ambos armados. Antes de adentrar na área interna, fui revistada e meu celular foi confiscado. Eu esperava por isso, afinal, aquela não era a primeira vez que Liberato queria afirmar o seu controle para comigo.
— Minha cliente favorita chegou. — Ele estava de pé, bem ao lado de um aparador com bebidas.
— Favorita eu não sei, mas a mais rentável eu tenho certeza.
O infeliz riu da minha fala e aproximou. Cheiro de cigarro, perfume amadeirado e conhaque invadiram as minhas narinas. Teófilo Liberato gostava de intimidar em tudo, me levando a crer que até o seu odor era proposital. Não dava para negar que o homem era bem cuidado, sua qualidade de vida havia lhe conservado.
— Indiazinha, — ele sorriu. — poderíamos nos dar bem de tantas maneiras. Por que não facilita o nosso convívio? — quando tentou acariciar uma mecha do meu cabelo, dei um passo para trás com uma feição nada amigável. — Sempre arredia. Uma pena.
— Diga logo o que quer conversar.
— Sente-se.
— Estou muito bem em pé. — Cruzei os braços.
Ele suspirou, deu as costas e sentou numa poltrona. Rapidamente reparei na decoração da sala. Paredes brancas, móveis em pé palito e sem muito adornos. Entendi que ali era mais um dos espaços de trabalho de Liberato.
— Duas semanas atrás, enquanto a capitã e sua tripulação retornavam a Cruzeiro do Sul, nossa cidade recebeu uma ilustre visita. Era um dos médicos daquela ONG do Sul. Mas ele não estava sozinho, veio acompanhado de um homem. Logo fui informado que era um delegado de Rio Branco. Está sabendo disso? — neguei com a cabeça. — Sabe o que é mais engraçado? Eu acredito em você. — Ele riu. — A Ísis Luara Matos que eu conheço jamais deixaria que alguém se arriscasse assim por ela. Mas o alemão parece apaixonado, está tão encantado pela índia que veio aqui em busca de justiça. — Inspirou o ar com arrogância e concluiu: — Acontece que aqui eu sou a justiça.
Desde a minha saída de Manaus até Cruzeiro do Sul eu conversava com Gustavo quase diariamente. Em todo esse tempo pensei que ele estivesse em São Leopoldo, pois fizemos constantes chamadas de vídeo onde Alexa aparecia. Quando foi que ele voltou para o Norte? Provavelmente foi uma viagem rápida, do contrário, nada faria sentido.
— Está pensando, não é mesmo, indiazinha? — ele levantou da poltrona. — Me acompanhe.
Ele tomou a frente e caminhou para um corredor que levava a outros cômodos. Um de seus capangas se pôs às minhas costas para me fazer andar. Quando a porta do último quarto se abriu, o cenário mudou drasticamente. Não havia móveis, e as paredes pintadas de verde escuro estavam descascadas.
— Tranque a porta e feche a janela, Paulo. — Liberato ordenou.
Assim que o homem terminou de fazer o que lhe foi mandado, senti o cano do revólver tocar as minhas costas. Ao segurar o meu braço, Paulo me guiou até o centro do cômodo. Quando fiquei frente a frente com o coronel, o funcionário retrocedeu os passos e parou ao lado da porta.
Então fui surpreendida com o peso de uma mão em meu rosto. Ardeu e embaçou a minha visão.
— Vagabunda. Não consegue ficar sem homem? — ganhei outro tapa. — Acabou de divorciar e já está querendo se juntar com outro! — quando ele levantou a mão para me bater outra vez, me esquivei. Só não revidei por causa do seu capanga armado. — Pensei que você fosse diferente, mas mulher é tudo igual! Mereceu ser deixada pelo inútil do seu ex-marido!
O impacto do soco em meu nariz foi tão grande que caí no chão. Mas Liberato me segurou pelos ombros e me colocou de pé.
— Olha nos meus olhos, sua puta! — vociferou face a face. — Eu sei tudo que preciso saber sobre Gustavo Schmidt! Ele trabalha nessa maldita ONG e no Hospital das Clínicas de São Leopoldo! Sei também que é filho de Andréia e Gamaliel Schmidt, é viúvo e tem uma filha de quatro anos que se chama Alexa. — Sua voz e seu olhar de ódio me fizeram estremecer de pavor. — Se eu tiver que lidar com mais alguma de suas malcriações, eu juro que dou cabo dessa família alemã!
— Não faça nada a eles. Seu Liberato, eu já tenho um comprador para o Vitória Régia. Isso não interferirá nos seus negócios. — Assim que falei, ele me jogou no chão e chutou a minha barriga. Protegi meu estômago sentindo falta de ar.
— Vagabunda simplória! Não entende o prejuízo que me causou? Seu amante foi até a polícia, logo virão atrás de mim! Terei que subornar algumas autoridades e quem vai pagar será você, Ísis! Nada de vender o barco! Trabalhará para mim, caso contrário, eu te mato!
Eu não poderia colocar em risco a família Schmidt; temi muito por eles naquele instante. Mas, só de pensar em ficar debaixo do jugo de Liberato por tempo indeterminado, ferveu-me um ódio descomunal.
— Pode me matar, pois não te darei mais nem um centavo, seu desgraçado! — gritei com o fôlego recuperado.
— Então vamos ver se você quer realmente morrer. — Ele tirou uma arma do cós da calça, na qual estava muito bem escondida pelo paletó, e quando agachou, a apontou na direção da minha testa. — Se não quiser trabalhar para pagar o prejuízo que me causou, dou fim na sua vida medíocre agora mesmo. Escolha, minha indiazinha, quer viver ou morrer?
— Já disse que não te dou mais nem um centavo. — Falei entredentes, sentindo o sangue escorrer do meu nariz.
Ele sorriu com maldade. Em seguida, se levantou e deu um passo para trás, sem desviar o cano do revólver da minha direção.
— Nossa história poderia ser diferente, indiazinha.
Fechei os olhos esperando o tiro que ceifaria a minha vida. O disparo aconteceu, por um momento pensei que aquele era o meu fim. Mas não senti dor ou qualquer outra coisa que imaginei que viesse após ser baleada. Abri os olhos e vi Liberato no chão. Não estava morto, mas os lábios estavam pálidos. Sua arma foi chutada para algum canto. Levantei a cabeça e vi o capanga falar numa espécie de fone.
— Invadam a casa. Tive que lançar fogo contra o alvo. Chamem uma ambulância.
Paulo, o capanga, era um policial disfarçado.
Eu me sentei muito atordoada, porém encarei o coronel e o seu sangue, que escorria pelo chão. Ele tentou se mexer, tentou chamar por alguém, mas a dor parecia ser maior.
— Você não merece morrer. Merece sofrer em vida, Teófilo Liberato. — falei baixo.
— Eles não são muitos. Quatro no total. — Paulo voltou a falar no pequenino fone enquanto pegava a arma do coronel. — Um motorista no portão, um homem e uma mulher na porta de entrada e um menor de idade na sala. Ísis, — ele se aproximou, agachou e começou a falar baixo. — Vá para o banheiro, se esconda dentro da banheira, sempre protegendo a cabeça. Não saia de lá até eu mandar, ok?
Respondi com um sim e imediatamente fiz o que me foi ordenado.
*****
Houve troca de tiros. Não foram muitos. Deu-me a entender que os bandidos foram rendidos com facilidade. Mesmo assim permaneci imóvel, esperando alguma ordem para me levantar. Então escutei passos e uma voz conhecida pronunciou o meu nome.
Levantei a cabeça.
— Ísis! — Gustavo chamou-me novamente. — Cristo! Eu fiquei com tanto medo de te perder. — Ele me puxou para os seus braços e começou a distribuir beijos por todo o meu rosto.
— Como você está aqui? — perguntei atordoada. — Nós nos falamos ontem, você disse que estava em São Leopoldo.
— Uma longa história, meu amor. Primeiro vamos sair deste lugar, depois contarei tudo.
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História escrita em parceira com Daiane_Gomes97
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