Capítulo 17
Capítulo 17
Como estava emocionalmente mexida com a despedida do Gustavo, Miguel foi resolver os assuntos pendentes com os fornecedores. A entrega estava atrasada e ainda teríamos que ajudar a embarcar uma quantidade considerável das mais variadas rações para aves, peixes e mamíferos. Eram encomendas para pequenos e médios produtores.
Seu Jorge e eu fizemos uma vistoria preventiva no Vitória Régia. Listamos tudo o que deveria ser comprado para a manutenção geral do barco; desde peças novas, que deixamos de comprar no mês anterior, até reabastecimento de graxa para o motor. Se sobrasse algum dinheiro, aproveitaria e compraria tinta para repintar a embarcação quando chegássemos a Cruzeiro do Sul. Apesar de já ser um senhor com mais de sessenta anos (e ser o pai da Claudete), seu Jorge insistia em continuar trabalhando comigo. Ele era de muita valia, uma vez que estava no Vitória há mais de quinze anos e sabia onde comprar as peças, além de ter velhas amizades em cada canto, o que facilitava nosso trabalho. Mas eu sabia que teria de abrir mão de seus serviços dentro de alguns anos, a idade já estava pesando em suas costas e ele merecia um descanso.
Jandira e Valdete se encarregaram de abastecer a dispensa para a viagem de volta, que seria mais rápida, pois não pararíamos ou pernoitaríamos em vilas ribeirinhas.
Por volta das onze horas da manhã, quando todos voltaram ao barco, paguei meus funcionários e dispensei a maioria para almoçar na cidade. Com um empregado temporário, tive que desembolsar da parte que seria meu lucro para pagá-lo. E então, após somar o que sobrou do dinheiro, fiz a transferência bancária para o usurpador do Liberato, mas sem os juros que ele insistia em receber. Já que ele queria cobrar juros por eu ter danificado seus capangas, que os abatessem nos gastos extras que tive com meus vidros quebrados e com a contratação de Natan.
Não demorou muito para o infeliz me ligar.
— Seja breve, tenho mais o que fazer. — Me curvei sobre o guarda corpo da proa inferior e observei o movimento do porto enquanto esperava por sua chateação matinal.
— Indiazinha, não seja rancorosa. — A voz rouca pelo excesso de nicotina saiu lenta e peçonhenta. Respirei fundo e propositalmente para demonstrar minha irritação. — Recebi a notificação da sua transferência. Mas tem algo errado, o valor está muito pequeno. Seria um problema de cálculo errado? Desaprendeu a fazer contas?
— Não. Não há problema algum. O valor está correto. São os seus vinte porcento do lucro líquido de cada viagem do Vitória Régia. — Esclareci. Uma ova que cederia aos caprichos mesquinhos de um coronel ladrão e chantagista!
— E quanto aos juros pelas minhas baixas? Você e seu pessoal mandou dois dos meus empregados para o hospital.
— Se for ver por este ângulo, também tive custos adicionais. Sua exibição de poder deixou um dos meus funcionários incapacitado, me obrigando a fazer uma contratação temporária. Sendo assim, ficamos quites.
— Minha perda foi maior...
— É o seu ponto de vista.
— Faça o que eu mandei, Indiazinha. Não se esqueça que posso lhe causar maiores danos. — Embora mantivesse a voz serena, sua raiva velada foi percebida por mim.
— Não vou pagar juros indevidos! Mesmo sendo quem é, você tem uma certa reputação a zelar. Ou quer que todos saibam que você usurpa seus "protegidos"?
— Está me ameaçando, Ísis Luara?
— Não sou dessa laia, coronel. Agora, o senhor me dê licença que eu tenho trabalho honesto a fazer. — Deixei minha ironia no ar e desliguei sem ouvir sua resposta.
Eu estava cutucando a onça com a vara curta, porém já havia passado da hora de mostrar que também sabia rosnar. Confrontar Liberato era sempre um risco a correr, pois o homem era capaz de tudo para deixar a população submissa a ele. Mas, nos próximos doze dias, enquanto estivéssemos no rio Amazonas, estaríamos tranquilos, pois ele não tinha domínio naquela parte do território hidroviário. Todavia, teria que enfrentar o problema ao chegar em Cruzeiro do Sul. Fiz uma rápida prece em pensamento para que não tivéssemos contrariedades assim que entrássemos no rio Juruá.
Retomei aos meus afazeres. Com o seu Jorge na cidade a comprar tudo o que precisávamos, tive que ficar a bordo para receber o que ele mandava entregar, inclusive os rapazes que iriam repor o vidro da cabine do leme. Esse era um dos itens no topo da lista, mas eles só viriam a partir das treze horas.
*****
Eu estava dentro de um táxi a caminho do Farol da Praia de Ponta Negra. Obviamente estávamos à quilômetros dos oceanos, mas a longa faixa de areia e a imensidão do rio Negro dava um clima praiano àquela região da capital amazonense.
Mais cedo Gustavo tinha me enviado uma mensagem com o endereço do hotel. Ele estava hospedado no bairro Adrianópolis, uma região um pouco afastada do atual meu destino. Aconteceu que tive uma ideia: por que não aproveitar o entardecer de um dos pontos turísticos mais belos daquela cidade?
Pedi ao taxista para terminar a corrida a uma certa altura da avenida Coronel Teixeira, exatamente no local onde combinei de encontrar Gustavo. Assim que saí do carro, ajustei meu vestido no corpo e corri o olhar a minha volta. Era um horário em que a orla começava a ficar mais movimentada. Muitos corriam, outros andavam de bicicleta, mães e babas empurravam carrinhos de bebê e uma partida de futebol acontecia mais a frente, numa quadra de areia. Foi então que eu o vi próximo a um quiosque. Usava tênis, bermuda cáqui, camiseta branca e, com as mãos no bolso, sorria abertamente para mim.
Deus, como ele estava lindo!
Fui caminhando na sua direção, um pouco sem jeito e muito ansiosa. Ele também deu alguns passos para apressar o nosso encontro. Diante um do outro, fui acolhida com um extasiante beijo. Uma de suas mãos se fixou em minha nuca, e a outra se firmou em minha região lombar. Retribuí ao seu gesto buscando a sua língua, adorando a sua textura macia, completamente colocada ao seu corpo.
Só parei porque a qualquer momento um ciclista poderia nos atropelar.
— Vem comigo para o píer. — Fiz menção em me afastar, mas ele foi mais rápido e segurou a minha mão, entrelaçando os nossos dedos.
— Colar bonito, capitã. — Falou enquanto caminhávamos sem pressa.
— Achou bonito? — elevei minha mão livre até a biojoia. — Ganhei de um cliente safado, metido a Indiana Jones e lindo de morrer. — Concluí a fala e lhe lancei uma piscadela.
Ele riu alto e eu o acompanhei.
Quando chegamos ao píer, apoiei os antebraços sobre a grade, fechei os olhos e respirei fundo. Todas as vezes eu atracava em Manaus, fazia questão de ir àquele lugar.
Senti Gustavo se posicionar às minhas costas. Seus braços abraçaram a minha cintura e seu corpo se grudou ao meu em um encaixe perfeito.
— Conseguiu ligar para o Franco? — perguntou baixo, um pouco receoso.
— Sim.
— E aí?
Engoli em seco e respondi:
— Ele me pareceu ser um senhor gentil.
— Mas quanto ao trabalho? O que foi conversado?
— Parece que ele está precisando de alguém com urgência.
— A vaga é tua, Ísis. Não fique insegura. — Ele beijou meu ombro. — Vem comigo amanhã mesmo para o Rio Grande do Sul. Fique na minha casa e faça uma entrevista pessoalmente...
— Não é tão simples assim. — Interrompi sem querer entrar numa discussão.
— O Vitória Régia chegará em Cruzeiro do Sul em boas mãos. A capitã tem bons funcionários. É só ir comigo.
— Ainda não, Gustavo, ainda não. — Suspirei, sentindo minhas mãos suadas umedecerem a grade. — Mas continuarei mantendo contato com Franco. Tenho muito o que resolver antes de tomar uma decisão tão radical. Se tudo ocorrer bem durante a viagem de regresso, em menos de um mês estarei de volta a Cruzeiro. Lá, poderei tomar as devidas providências em relação a essa viagem ao sul.
— Confesso que tenho medo da tua rotina dispersar tudo o que vivemos. — Me apertou em seus braços e beijou o meu cangote. — Não quero ser apenas uma lembrança para ti.
— Isso está longe de acontecer, Gustavo. — Virei de frente para ele. — Eu só preciso de um tempo para deixar a coisas ajeitadas em minha cidade natal.
— Tudo bem. Tome o seu tempo. — Ele falhou ao tentar sorrir.
— Vamos aproveitar o momento, pode ser? — segurei sua mão. — Vamos para o quiosque. Vou te pagar uma água de coco, doutor.
Enfim ele sorriu, eu comecei a puxá-lo para o calçadão.
— Ela é dona do próprio negócio, mata cobra com facão e dá tiro em bandido. É óbvio que vai pagar a minha comida.
— Sou fêmea alfa, querido.
Minha fala o fez rir alto e sua espontaneidade alegrou o meu coração.
*****
Eu não sabia qual era a hora exata, mas tinha certeza que era o fim da madrugada.
Após nossa ida ao quiosque, no qual Gustavo não permitiu que eu pagasse a conta, fomos para o hotel.
O quarto da hospedagem era funcional, ideal àqueles que visitam a cidade para fazer negócios. Contudo, era muito mais confortável do que a minha simples cabine no Vitória Régia. Havia tanto tempo que eu não me deitava numa cama com um colchão decente que fiquei ridiculamente emocionada.
A noite seguia dentro do esperado; havíamos feito sexo assim que chegamos no local. Como sempre foi intenso, bonito, porém, angustiante também. Digo isso porque havia um sentimento de despedida em mim. Por mais que eu tivesse dado esperança a Gustavo de que nos reencontraríamos, eu conhecia a vida e seus desencontros.
Eram muitos "se". Tudo poderia acontecer.
Se eu acreditava ser possível cair nas graças do Franco e ser empregada com a facilidade que Gustavo pregava? Em parte, sim. Não seria difícil vender meu barco, me mudar para São Leopoldo e recomeçar do zero. Mas, e se eu não me saísse bem em meu novo trabalho? E se eu não me adaptasse com o clima do sul? E se Alexa e o restante da família Schmidt não gostassem de mim? E se meu relacionamento com Gustavo não vingasse?
O que eu faria no Sul sem família?
Por outro lado, eu também não tinha família no Norte. Eu tinha amigos, obviamente. Mas a verdade é que em qualquer canto do mundo não havia mais ninguém.
Pensar nessas coisas, no meio da madrugada, me deu taquicardia. Fiquei tão inquieta que acabei acordando Gustavo. Ele perguntou se estava tudo bem e eu não o respondi. Apenas o puxei para mim. Mesmo sonolento, deixou que seu corpo pairasse sobre o meu. Tomei sua boca num beijo vagaroso e não demorou para seu membro escorregasse pelo meu caminho. As estocadas lentas combinavam com o meu estado de espírito. Era tudo que eu queria, aproveitar cada instante, cada detalhe, gravar na memória todas as sensações, pois havia a possibilidade (ainda que pequena) de nunca mais nos encontrarmos.
No último mês eu me senti desejada como nunca tinha sentido durante toda a vida. Tal detalhe me fez sentir viva, bonita e segura como mulher. E o causador dessas coisas foi um homem no qual eu mal conhecia.
Eu não queria me despedir, eu não queria voltar para o barco, ou para minha antiga vida!
Então meus olhos se encheram e agradeci aos céus pela escuridão daquele quarto.
Enquanto o prazer explodia por todo o meu corpo, gemi e deixei as lágrimas escorrem. Meu parceiro gozou em seguida, mas, por um descuido meu, ele percebeu que eu chorava ao repousar as mãos em meu rosto.
— Ísis, meu amor. — Disse assustado. — Está chorando?
Gustavo acariciou minha cabeça e secou as lágrimas com tanto carinho, que passei a chorar ainda mais. Compreensivo, ele saiu de dentro de mim para deitar com as costas na cama e me acomodar em seus braços.
— Era pra ser só sexo. Era pra ser simples, sem apegos. Não pensei que seria tão doloroso. — Falei em meio a minha crise de choro. — Cada minuto que passa fica mais difícil, principalmente agora que você me chamou de "meu amor".
Escutei uma risada leve.
Chorei ainda mais agarrada ao seu peitoral.
— Isso não é uma despedida. Nós nos encontraremos. — Seus dedos percorriam a minha pele. — Se não apareceres em São Leopoldo, dou um jeito de encontrar a ti em Cruzeiro do Sul, minha capitã.
Havia tanta segurança na sua fala, que meu pranto foi cessando até se tornar meros soluços. Então, um pouco mais segura, adormeci.
*****
Na manhã seguinte, o Vitória Régia já estava carregado de ração e pronto para zarpar. Por estar melancólica, deixei que Miguel tomasse a frente dos meus afazeres.
Gustavo tinha se oferecido para me levar ao porto, achei melhor não. Isso só prolongaria o meu sofrimento. Preferi voltar sozinha e encarar a minha realidade. Mas pouco adiantou, pois, ao entrar no barco, senti-me vazia. De repente, estar ali não havia mais propósito. Se antes eu fazia do meu trabalho uma missão de vida, agora eu queria outras coisas. E isso já andava acontecendo antes mesmo da equipe humanitária do Sul embarcar no Vitória Régia. Volta e meia eu me pegava pensando em ter um novo emprego, ter um patrão, um salário fixo, conhecer pessoas, fazer aulas de dança de salão, comprar mais vestidos e sandálias, enfim, recomeçar.
Suspirei com essa ideia que estava cada vez mais viva em minha mente.
Assim que começamos a desatracar do cais, entrei em minha cabine.
Senti o cheiro de Gustavo nos lençóis ao me deitar na cama.
Desejei que a viagem de volta acabasse logo.
Infelizmente, ela só começava.
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História escrita em co-autoria com Daiane_Gomes97
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