32 • Lembranças guardadas em uma garrafa de Coca-Cola
Dia da colação de grau.
Defronte para o espelho que cobre metade da porta do meu guarda-roupa, contemplo o que vejo no reflexo. Um garoto de beca azulada com mangas compridas e largas, além do capelo, também azul, com o típico tassel em cor amarela.
Meu sorriso está de orelha a orelha. Nunca tive fé o suficiente em mim mesmo, de que eu poderia, um dia, terminar o Ensino Médio. E, cá estou eu. Minha beca está entreaberta, exibindo por debaixo, minha camisa social em azul claro, e minha calça social em cinza escuro. Fiz questão de apenas hoje, usar os sapatos sociais de papai que passei um bom tempo passando graxa neles para deixá-los no ponto. Até passei gel no meu cabelo, mas depois de perceber que dá a impressão de que um boi lambeu o meu cabelo, acabei por despenteá-los com meus dedos, e gostei do resultado. Nem tão bagunçado e nem muito arrumado.
Estou me sentindo o máximo com a minha beca. Depois de um ano escolar tão árduo, repleto de altos e baixos (mais baixos que altos), finalmente, receberei a minha recompensa.
Ah, queria tanto que mamãe estivesse aqui para testemunhar a minha formatura. Tentei ligar para a nossa casa em Los Angeles, mas ela não atendeu. Acho que não está em casa. Deve ter ganhado mais algum sorteio de viagens para lugares aleatórios. Talvez, eu envie algumas fotos para ela do dia de hoje.
Lucy fica parada na porta do meu quarto, observando-me. Estou com a maior cara de bobão e ela flagrou-me alucinando na frente do espelho, girando o capelo na ponta do dedo indicador como se fosse uma bola de basquete. Está vestida a rigor para a cerimônia, um vestido lilás com babados em renda branca, além do laço na cabeça, também lilás, sobre os cabelos escuros, que agora já estão passando dos ombros. Calçou meia calça branca e suas sapatilhas estão brilhando do tanto que ela as lustrou. Demorei para perceber que a Lucy está crescendo. O tempo está passando.
Mesmo que o verão esteja se aproximando, Paradise não dá quaisquer sinais de mudança de clima. As velhas nuvens cinzentas estão sobre nós. Mas não hoje, porque estou radiante.
— Você está parecendo um feiticeiro, John.
— John, o feiticeiro... — exclamo, levantando os braços, mexendo os meus dedos de forma estranha, dando ainda mais jus a nomenclatura da Lucy. — Gostei.
Robert e Susan também aparecem na porta do meu quarto, muito admirados, ambos como um sorriso estampado no rosto. Papai veste um terno marrom que nada combina com a sua gravata verde com gravuras de pipas amarelas (escolha da Lucy da qual ele não discordou). Susan está muitíssimo elegante em seu vestido preto de seda e com seu colar e brincos de pérolas. Ambos parecem mais felizes com a minha colação do que eu mesmo.
— Está muito bonito, filho. Lembrou-se de colocar a gravata?
— Nunca aprendi a dar o nó. E não sei onde foi parar a minha gravata de zíper — o que é realmente uma pena, porque aquela gravata salvava a minha vida.
— Não faz mal. Meninas, vão para o carro enquanto ajudo o John com a gravata.
Susan e Lucy fazem o que o Robert disse, enquanto ele ajuda-me a encontrar uma gravata.
— Só não arranje para mim, nenhuma gravata roxa com coraçõezinhos vermelhos — falo.
— A minha gravata ficou tão ruim assim?
— Combina com você, pai.
— Que bom, porque esse aqui é o meu estilo. Encontre um para você. — Robert diz, risonho.
Robert, então, arranja uma gravata preta para mim. Ela é bem leve e bastante brilhosa. Enquanto dá o nó para mim, Robert começa a recitar.
— Sabe, John, eu terminei o Ensino Médio um pouco tarde. Retomei os estudos durante a noite, enquanto trabalhava de dia. Batalhei muito, também, para terminar a faculdade e encontrar a minha verdadeira vocação. É tão estranho olhar para trás e não nos darmos conta de todas as lutas que passamos, e não as valorizarmos.
Ele apoia firmemente as mãos em meus ombros, olhando-me no fundo de meus olhos. No passado, eu era muito menor que o meu pai, e o via como se fosse o meu herói. Com o tempo, passei a alimentar rancor por ele e somente via os seus defeitos. Hoje, temos a mesma altura, e ele já não é mais o meu herói ou o meu algoz. É o meu amigo.
— Estou feliz por você ser diferente de mim. Você, John, é muito mais responsável do que pensa. Estou orgulhoso por você.
Abraça-me e sinto que posso derreter no calor de seus braços. Ah, Robert, não me faça chorar aqui e agora.
— Vamos, filho — Robert diz, limpando a garganta. — Senão, vamos perder a cerimônia.
• • •
Fomos para a L. M. Alcott High School no Cadillac do Robert. Preciso pontuar que chegamos para a colação em grande estilo. Durante o percurso, Lucy ficou cantarolando bem baixinho "When you wish upon a star, makes no difference who you are⁴⁸". É quase como se fosse um presságio. Estacionamos e somos convidados a adentrar o ginásio (ou o prédio D para os mais íntimos). Seria a última vez que adentraria esse prédio. Está tudo enfeitado com flores brancas e laços azuis. Uma cerimônia tão simples, mas que sei que guardarei na minha memória. Susan, Robert e Lucy sentam-se nas arquibancadas, enquanto eu tento encontrar uma cadeira vaga para sentar-me. Vejo uma mão balançando na multidão de capelos azulados.
— Aqui, John, aqui!
Reconheço de longe a voz da Lara. Esgueiro-me entre algumas pessoas que estão sentadas, incomodando-as um pouco, e alcanço o meu lugar ao lado dela. Ela abre um sorriso brilhante. Não, o sorriso dela está realmente brilhante. Lara pôs aparelho dentário.
— Depois de tanto tomar bomba em Espanhol, eu podia jurar de pés juntos que eu ficaria reprovada! Coloquei aparelho nos dentes, John. Não acha que ficou um pouco feio? Mamãe quis que eu "alinhasse" meu sorriso no último segundo. Estou me sentindo com um pouco de vergonha.
— Não está feio, vai por mim — conforto-a. — E onde está o Jake?
— Jacob Benson está ali — ela aponta para o palanque da qual todos subiremos em breve. — Perto da professora Edith. Ele conseguiu terminar de escrever o discurso a tempo. Ainda não consigo acreditar esse é o nosso último dia aqui na L. M. Alcott High...
Vejo o diretor da escola, e desejo acima de tudo, conversar com ele. Saber se ele leu a minha carta a respeito da Mary e se irá averiguar a situação dela.
— No final da cerimônia, eles nos entregarão nosso anuário. Era para ter acontecido antes, mas parece que teve um problemão na gráfica — Lara diz para mim. — Tomara que nossas fotos não tenham ficado borradas, porque seria um desastre.
Volto os meus olhos para a arquibancada e para o meu enorme assombro, vejo uma pessoa conhecida. Reconheceria os cabelos loiros, os olhos azuis, e o casaco de estampa de zebra em qualquer lugar. É a minha mãe! Ela veio ver a minha colação. Regina acena para mim como se fosse uma fã empolgada. Ao seu lado, está o Alfred, o meu padrasto. Está de terno que o faz parecer ainda mais robusto e veio com um chapéu Fedora sobre a cabeça. Aceno de volta para eles, de jeito muito tímido.
— Quem são? — Lara sussurra.
— Minha mãe e o meu padrasto — sussurro de volta.
— Ela é muito bonita.
O diretor abre a cerimônia, falando um monte e quase pegando alguns de sono. Os professores também tem, cada um, os seus momentos em falarem algumas palavras. Jake discursa em seguida, e surpreendo-me por ele não ter usado nenhuma frase de música em sua oratória.
— Não pare de acreditar. Se agarre nesse sentimento⁴⁹.
Acho que falei cedo demais.
Não demora muito para recebamos os nossos certificados enrolados e selados com uma fita azul. Logo é a minha vez em subir no palanque e erguer bem alto o meu diploma. Quando todos estão com seus diplomas em mãos, o diretor anuncia.
— Parabéns, formandos da turma de 1985.
Jogamos nossos capelos para o alto, embora tenha sido um pouco frustrante não tê-los visto ganhar mais altura, pois bateram no teto do ginásio, retornando a nós.
Encontro-me com Robert e Susan que, pasmem, estão conversando com Regina e Alfred. O mundo é cheio de surpresas.
— Ah, meu filho, você está tão bonito nessa roupa — Regina aperta as minhas bochechas, mas eu não a afasto.
— Também senti saudades suas, mamãe — falo com dificuldade porque ela está distorcendo o meu rosto.
— Regina, querida, assim vai deixar o John envergonhado na frente de seus colegas — Alfred avisa-a, para que ela maneirasse nos apertos de minhas bochechas. Valeu, Alfred!
— Dê-me aqui o seu diploma, John — Robert diz, enquanto pega o certificado de minhas mãos. — Ah, vai ficar uma beleza em uma moldura.
— E pendurado na parede da sala de estar, de preferência em cima da lareira, para que as visitas vejam — Alfred diz.
— Não poderia concordar mais — Robert sorri.
Parece que o meu padrasto e o meu pai falam a mesma língua. É só um certificado de que concluí o Ensino Médio, e não que me formei em Física Nuclear. Lara toca em meu ombro, entregando-me o meu anuário. Regina, assim que me vê com o livro azul com bordas douradas em minhas mãos, não se detém em tomá-lo de mim, para bisbilhotá-lo com Susan.
— John é igualzinho ao pai dele quando era adolescente — Regina diz, passando as páginas do anuário. — Bob nunca gostou de sorrir em fotos.
— Acredita que até hoje Robert não sorri em fotos? — Susan informa-a e ambas sorriem.
— Inacreditável — Regina gargalha.
Afasto-me um pouco dos quatro adultos que parecem amigos de longa data, e vou conversar com a Lara e o Jake.
— Adivinha, John? — Lara tem um sorriso enorme. — Mary está AQUI na escola! Ela veio com os tios!
— Sério? — pergunto.
— É... — Jake responde. — Até peguei um anuário para ela.
— E onde a Mary está? — indago, ainda mais ansioso. — Aqui? No ginásio? — estico o pescoço, tentando encontrá-la no meio de rostos desconhecidos.
— Acho que estavam indo para a diretoria — Lara diz, com o olhar distante. — Será se o diretor vai dizer pessoalmente para os tios dela, que a Mary ficou reprovada?
Corremos, saindo do ginásio, rumo à diretoria da escola que fica em outro prédio.
Nós três paramos de repente, quando nos deparamos com os tios da Mary, e a própria, que veio em sua cadeira de rodas. Estão conversando com o diretor que está diante deles, segurando um pedaço de papel em mãos.
Fico vislumbrado com a garota sentada na cadeira de rodas. Mary está muito bonita em seu vestido amarelo. O cabelo dela leva algumas presilhas de borboletas vermelhas. As maçãs do rosto com blush moderado. Os lábios suavemente róseos com brilho labial. Mary está arrumada como se estivesse indo para um grande baile. Nada pode apagar o esplendor dela.
— Sua sobrinha tem amigos que realmente querem o bem dela — o diretor diz. — Fiquei em uma posição realmente difícil, e admito, não consegui dormir mediante a tamanha decisão. Mas eu sabia que isto era o correto a se fazer. Aqui, minha querida.
— Isso... é... é... — Mary põe a mão sobre a boca, como se estivesse impedindo a si mesma de chorar.
— Para você, minha jovem. Só para você.
Entrega para ela o seu tão esperado diploma. Jake, Lara e eu, não conseguimos nos manter por muito tempo em silêncio, e nós três vamos em direção à Mary, saltitantes e muito barulhentos. Estamos comemorando como se fosse a final da Copa do Mundo. Nos achegamos a Mary, rodeando-a. O pastor Carl e a Sra. Ellie mal conseguem esboçar qualquer reação. Porém, logo nos silenciamos quando percebemos a feição do diretor.
— Foi muito perspicaz e inteligente da parte de vocês, escrever aquela apelação para mim — o diretor diz. — A carta estava muito bem redigida e não consegui ignorá-la — pisca para nós.
— Então, foram vocês que tornaram isso possível? — a Sra. Ellie pergunta, emocionada.
— Ideia do John, tia — Lara responde de imediato. — Eu apenas datilografei a carta para ele.
— Eu não tive muita participação... — Jake fala, envergonhado.
— Parabéns. A amiga de vocês, graduou-se. Agora, dê-me licença. Tenho de resolver como será a festa dos formandos e verificar se não farão nenhuma travessura — o diretor retira-se.
Saímos do prédio, e os tios de Mary permitem que conversemos um pouco com ela. Lara conduz a cadeira de rodas da Mary até o lado de fora, e parece não fazer nenhum esforço. O entardecer cinzento nos acolhe. O ginásio transborda iluminação.
— Não precisava fazer isso, John — Mary ainda tem os olhos marejados. — Mas, admito que eu fiquei tão feliz. Puxa, vida! Finalmente me formei. A Becca e a Cynthia vão ficar tão felizes quando souberem das novidades.
— E esse vestido tão lindo, Mary? — Lara questiona. — Onde comprou?
— A tia Ellie fez para mim, acredita? Fez especialmente para esta ocasião. Ela é uma costureira magnífica.
— Está tudo bem você ficar longe do hospital? — Lara pergunta outra vez, muito preocupada.
— O médico permitiu, mas não deu-me alta. O diretor ligou para o tio Carl, e ontem quando meu tio foi ao hospital para me visitar, tinha me falado a respeito dessa ligação. Ele queria me ver. Implorei ao médico para que eu viesse à escola.
— Ao que vejo, conseguiu mesmo convencer o seu médico. Você é muito persuasiva — Jake diz. — Uma pena que não ouviu o meu discurso.
— Colocou letras de música no seu discurso, Jake, fala sério! — digo, embora não falo de modo sério, não conseguindo deixar de sorrir.
Ao longe, escutamos uma música conhecida. Ela ecoa do ginásio achegando-se aos nossos ouvidos.
— Parece que já começaram a festejar sem a gente — Jake diz.
— Ah, essa música... — Mary balança o dedo indicador direito no ar. — Eu gosto dessa música. When there's no one else in sight, in the crowded lonely night. Well, I wait so long... — cantarolava baixinho. — And I'm dancing with myself, oh, oh⁵⁰.
Bato a sola do meu sapato no chão, no ritmo da música. Ao longe, vemos nossos (agora) antigos colegas de classe tirando fotos, esbanjando poses e sorrisos.
— Vamos tirar fotos? — Lara questiona.
— Lógico — digo.
— Já ia me esquecendo, Mary — Jake entrega para ela o anuário que segurava esse tempo todo.
— Obrigada, Jake. Não vou poder assinar o anuário de vocês, galera — Mary diz, desconsolada.
— Isso é o de menos, o que importa é que você está aqui — falo, colocando meu capelo sobre a cabeça dela.
Lara chama o fotógrafo, quase arrastando-o, puxando-o pela camisa, para que tire uma foto nossa.
*Click*
*Flash*
Mais uma foto nossa tirada. Mais um momento para sempre resguardado.
O pastor Carl e a Sra. Ellie aproximam-se, e sabemos que está na hora da Mary retornar ao hospital.
— Vamos, minha querida? — A Sra. Ellie toma o controle da cadeira de rodas.
— Eu gostaria tanto de ficar mais um pouquinho... — Mary diz, olhando para cada um de nós.
— Eu sei — estou sentindo um bolor em minha garganta. Se eu chorar, será o meu fim.
— A gente vai te visitar no hospital, Mary — Lara apressa-se em dizer, antes que um de nós desabe em lágrimas. — Juramento de dedinho.
— Até logo, crianças — o pastor Carl diz. — E obrigado.
• • •
Não demoramos para retornamos para casa. Decidi que não iria ao baile de formatura. Estava um pouco cansado demais. Deito em minha cama, olhando para a minha beca pendurada no cabide. Deixei o meu capelo com a Mary. Eu poderia guardar cada momento que vivi hoje dentro de uma garrafa. Reflito muito no que presenciei, ainda mais no retorno de Regina. Mamãe disse-me que ficará em uma pensão com Alfred, aqui mesmo em Paradise.
Quer falar comigo amanhã pela manhã. E eu nem preciso saber do que se trata o assunto que ela tocará.
Meu ano escolar, terminou. Está mais do que óbvio que minha mãe quer levar-me com ela para Los Angeles.
A questão é que... eu não quero ir.
˚ . ˚ . * ✧🌌🌠✧˚ . ˚ . *
💫Nota 48: "When You Wish Upon a Star" é uma canção muito conhecida que foi escrita por Leigh Harline e Ned Washington para o filme da Disney de 1940, "Pinóquio". A versão mais famosa da música foi interpretada por Cliff Edwards, que dublou o personagem Jiminy Cricket no filme. A música ganhou um Oscar de Melhor Canção Original em 1940 e desde então se tornou um dos temas mais icônicos da Disney.
💫 Nota 49: Referência a música Don't Stop Believin' do grupo Journey, lançada em 1981.
💫Nota 50: Referência a música Dancing With Myself do grupo Generation X, lançada em 1980, e relançada por Billy Idol, no ano de 1981.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro