Prólogo
Nolan caminhava entre ruas de paralelepípedos bem alinhados e cinzentos. Os caminhos estavam sempre úmidos e com um cheiro pútrido de sal. O garoto estava bem acompanhado naquele lugar infame, de céu tão escuro quanto o limbo. Uma lua cheia por trás de um forte brilho esverdeado pincelava as altas ruínas de catedrais desbotadas, centenas delas. Segurava a mão do Sr. Leto com força, preocupado se em algum momento iria ser surpreendido por algum mal a espreita, mas Sr. Leto jamais permitiria tal ultraje.
Sr. Leto estava mais agitado naquele dia. Os feixes da lua desciam em diagonal e iluminavam suas vestes negras e os cabelos curtos e lisos de Nolan. O garoto possuía pernas pequenas demais para acompanhar seu enorme companheiro de dois metros. Hora ou outra, Nolan se distraía olhando para construções tão antigas quanto o tempo. Lugares tomados por visgos cumpridos e viscosos, que enrolavam nos pilares e paredes como parasitas. Ao fundo, torres de tijolinhos com telhados pontudos, carruagens despedaçadas, com rodas espalhadas pela longa rua, arvores secas, negras com galhos extensos que encurvavam para o céu e pilhas de crânios rachados nas calçadas esburacadas.
— Está quieto hoje, moleque — arriscou Sr. Leto, apertando sua mão.
— Estou pensando. — respondeu Nolan, intrigado.
— É Mesmo?
— Seus chifres são curvados para trás. Isso não pesa na sua cabeça? — questionou com seriedade.
— Não. E por que esses cabelos cumpridos? Qualquer hora vai ser morto sem saber por quem. — revidou.
— Não vou! Você nem tem cabelos para ficar falando dos meus. É só um crânio feio e vazio.
— É, realmente.
— Me desculpe — disse Nolan em seguida, ao notar que seus pensamentos altos poderiam magoar a criatura.
— Não existe desculpas quando o argumento são fatos, moleque — concluiu Sr. Leto ao se aproximarem de uma pequena casa de madeira, ao fim da grande rua, com dois andares íngremes, decorada por um catalogo diversificado de flores mortas em um jardim cinzento. Atrás dela, uma arvore muito grande, com folhas secas, que caíam devagar. A porta tinha um vidro quebrado no centro que dava para a vista interna. Haviam cinco degraus com corrimões que Sr. Leto fazia questão de segura-los enquanto subia.
O regador das plantas estava em uma estante pregada na parede perto da porta, junto com uma pá e alicates de jardinagem. Antes que pudesse tocar a maçaneta, ouviu-se grunhidos em algures. Olhando para as flores, via-se uma criatura rosada, cumprida e cheia de veias roxas pelo corpo. Era como um feto sem cabeça, cheio de pequenas tripas que se mexiam involuntariamente. Emitia sons grotescos enquanto rastejava pelas instalações, deixando para trás um rastro de gosma branca.
— Não precisa me tratar como se eu fosse uma criança! Sei subir as escadas sozinho. — dizia abrindo a porta e entrando de mãos dadas com Sr. Leto, que só foi solta-lo quando ambos já estavam dentro do local.
— Você é uma criança. E estando aqui, as regras são minhas. Quer mexilhão ou caramujo? — perguntou abrindo um armário em cima de seu fogão velho. Lá dentro continha alimentos desconhecidos e frutas com formatos estranhos de aparência duvidosa e gelatinosa. Larvas verdes passeavam por ali, como se estivessem a mais tempo que os próprios alimentos.
— Rosquinhas — disse, sentando na cadeira que fazia parte do conjunto da mesa. A cozinha de Sr. Leto era iluminada pelo véu esverdeado da lua que passava pela grande janela de centro. No balcão, coberto por um pano de prato florido, repousava um coador feito de trapos bejes sustentado por um arame enferrujado e uma cesta com maças manchadas de mofo. Sr. Leto pegou do armário um pote marrom e o abriu. Pescou uma concha lá dentro que continha diversas ervas trituradas.
— Você trouxe o que pedi? — dizia enquanto despejava as misturas na parte superior do coador.
— Sim. É a última etapa, não é? — respondeu Nolan, encarando-o.
— Não só a última, mas a mais importante.
— Só de imaginar você na cidade, conversando com as pessoas, seria engraçado. Uma visita na minha escola seria legal. Imagina o que os moleques da minha sala falariam — dizia com a boca entupida, cuspindo algumas migalhas.
— Não imagino — respondeu Sr. Leto, indo para a pia e recolhendo uma água amarronzada que escorria da torneira para uma tigela — Seria no minimo curioso.
— Você é meu único amigo, sabia?
— Que coisa triste de se dizer — o líquido caía devagar, exalando um cheiro forte de chá. Nolan fez cara feia, pois não gostava nenhum pouco daquele odor, muito menos do liquido que saía do coador. Sr. Leto curvou, abaixando e abrindo as portas do balcão. Sacou dali uma caixa com varias cascas de caramujo, e distribuiu para ambos na mesa — A rosquinha acabou.
— Tudo bem, logo eu trago mais — respondeu Nolan, de sorriso tímido — O que vai fazer quando isso tudo acabar? — questionou.
— Viver um pouco. Ir no enlaço do mar, afundar os pés na areia, deixar todo o ar possível penetrar minha carne, saborear alimentos e andar e andar até minhas pernas cessarem e não houver mais como avançar — Sr. Leto, entregou uma caneca metálica com a substancia quente para Nolan, que pegara com desprezo e matara num gole. A criatura ficou parada, observando-o até notar que não havia retirado seu manto. Sr. Leto sentia-se desconfortável quando entrava em sua residencia com suas vestes de peregrino. Caminhou até o cabide no canto da porta de entrada e retirou o manto.
Por debaixo daquele trapo escuro, estava um corpo humanoide, que vestia uma polo cinza por baixo de uma camiseta branca. Sua calça era preta, social, amassada e com rasgos no joelho. Seu braço direito possuía uma espécie de tentáculo pouco acima de seu punho e era visível por de trás de sua vestimenta de manga cumprida grandes calombos e um ombro desproporcional na parte direita.
Sr. Leto suspirou aliviado e voltara para o coador, onde seu precioso liquido da cor de lodo estava pronto. Da vasilha, colocou em uma xícara de porcelana marrom com estampas douradas. Ele era o único a usa-la. Não perdoou Nolan, no dia em que quase a quebrou acidentalmente. Foi advertido e teve de cortar a grama por horas em seu jardim, sem que pisasse em uma só orquídea morta. Desde então, Nolan nunca mais se aproximou da xícara.
— E se por acaso eu tivesse planejando matá-lo esse tempo todo? Não teria medo? — perguntou ao remexer o chá na xícara, voltando para o local onde estava.
— Sr. Leto, você pode ser muito feio, mas não é mentiroso. Acho que o senhor jamais me mataria.
— E porque acha isso? — perguntou em tom sereno, tomando um gole do chá por baixo de seu crânio e sentando-se de frente para Nolan.
— Porque somos amigos e amigos não se matam — concluiu Nolan ao engolir o ultimo caramujo da mesa.
— É um bom argumento para um moleque de dez anos — dizia ao repousar a xícara na pia — Pois bem. Antes da última etapa, quero que me prometa uma coisa.
— O que?
— Não procure mais pelo seu pai.
Sr. Leto terminou de lavar a xícara, a enxugou com um pano esfiapado que estava em cima da tampa de seu fogão e a deixou de boca para baixo, do lado do coador. Ele se virou para Nolan e lentamente colocou sua mão na cabeça. Parecia que ia arranca-la. Nolan ficou estupefato com a atitude da criatura. Mal piscava os olhos para não perder a próxima ação de Sr. Leto e quando ele fez, ambos ficaram em silencio, pois aquele crânio de bode não fazia parte de seu corpo. Era como um grande capacete que saía lentamente.
Sem piscar os olhos, Nolan pode ver com clareza enfim, quem era por trás daquela monstruosidade.
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