Capítulo 1 - Saifne
Enquanto o mantinha em seus braços, Saifne relembrava os acontecimentos dos últimos dias. Em um curto espaço de tempo, trilhara o caminho do inferno, mas também encontrara algo mais que a trazia exatamente àquele instante, ao momento em que seus dedos se entrelaçavam. Nada mais existia ao redor, nada mais importava. Um sorriso triste acompanhou suas lágrimas.
Xariar, então Rei da Pérsia, anos antes havia descoberto que sua esposa o traía com um escravo. Em um momento de ira, ele ordenara a execução dos amantes e jurou a si mesmo que, a partir de então, dormiria a cada noite com uma donzela diferente, matando-a na manhã seguinte. Assim, acreditava o Rei, não correria mais o risco de ser traído. A partir daí, instalou-se um verdadeiro reinado de terror entre as donzelas da Pérsia. A cada dia no período de dois anos, o Vizir, braço direito de Xariar, saía pelo reino em busca de uma nova esposa para seu rei o que provocou um êxodo em massa das famílias mais abastadas na tentativa de proteger suas filhas. Não fora diferente com a família de Saifne quando a menina chegou à puberdade: no meio de uma madrugada fria, o pai, um importante perfumista, a acordou para que fugissem. Esconderam-se em uma pequena cidade no interior do reino, mas em menos de seis meses, o Vizir os encontrou e, juntamente com seus guardas, arrastara Saifne até ali.
A moça, entretanto, não se deixara levar facilmente. Dera, em verdade, muito trabalho aos soldados que a escoltaram, tendo sido amarrada e amordaçada na maior parte do tempo para que não mordesse, arranhasse ou chutasse mais ninguém. Nem mesmo a presença de seu futuro esposo (e assassino) fora o suficiente para intimidá-la: no momento em que tiraram sua mordaça, Saifne fizera questão de cuspir na cara de Xariar. Ele, embora muito elegante e bonito, trazia no semblante um olhar lascivo à sua futura esposa, mirando de alto a baixo sua bela constituição: magra, porém com curvas que se acentuavam com a calça bufante, presa aos seus tornozelos. O busto, bem definido pelo corpete ajustado que se abria por cima da calça, na altura da cintura. O que era branco, agora estava imundo, com manchas de sangue seco salpicados pelo cetim da vestimenta. O rosto da moça permanecia um mistério por trás do véu que lhe envolvia, deixando à mostra um par de olhos negros e amendoados, com cílios longos a lhe encarar com raiva. O Vizir estava pronto para esbofeteá-la quando o próprio Xariar o impediu, sorrindo divertido. Dizia que gostava das rebeldes. Eram mais fogosas na cama e com uma risada de escárnio, mandou que a trancafiassem no aposento mais alto do palácio.
Um dos soldados fora destacado para escoltá-la, o mesmo que a capturara enquanto tentava fugir do Vizir. Saifne corria pelas estreitas vielas da cidade em que estava escondida despistando alguns guardas que a perseguiam entre a multidão. Ela conhecia o lugar muito melhor do que os soldados, mas um deles revelara-se esperto demais. Parecia conhecer as ruas tão bem quanto ela e não saiu de seu encalço até chegarem em um imenso descampado. Ali, Saifne sentiu as pernas arderem ante o esforço da corrida e num minuto de distração, o corpo foi jogado ao chão. Com agilidade, o soldado a prendeu sob o peso do próprio corpo, não sem antes ter o rosto arranhado pela jovem que ainda se debatia. Ele retornou o rosto lentamente até que seus olhos se encontraram pela primeira vez desde que a perseguição começara e por instantes, Saifne deixou de lutar. O soldado era muito maior que ela; sua pele, negra como a noite assim como seus olhos que pareciam querer enxergar sua alma; lábios grossos em um rosto de feições fortes e belas fizeram acelerar o pulso e o coração. Ele estava ofegante e ainda assim, tão imóvel como ela. No momento em que ambos se miravam, o tempo pareceu parar; os pensamentos de Saifne se embaralharam e a única coisa que ela pensava era em como deseja provar aqueles lábios. Ele também parecia mesmerizado e chegou a direcionar a mão para o véu que ocultava parte do rosto da moça, mas foi interrompido pelos companheiros que chegaram.
Saifne sentiu um choque percorrer o corpo no momento em que a mão do soldado a pegou pelo braço para conduzi-la. Ainda que fosse um aperto firme, não era bruto como o de seus companheiros. Ele permanecia em silêncio e olhava para frente enquanto caminhavam pelos corredores e a jovem se pegou desejando que o aposento jamais chegasse, que aquela proximidade pudesse durar. Quando finalmente ele abriu uma massiva porta de madeira pesada e escura, Saifne sentiu que era chegada a hora de ficar sozinha, mas para sua surpresa, o soldado entrou com ela, fechou a porta atrás de si e plantou-se ali, soltando seu braço.
A moça o encarou, elevando o rosto em desafio e tentou passar pelo homem. Tolice. Era como se um passarinho tentasse encontrar a liberdade através de um paredão de rocha bruta. Tentou forçar a passagem mais algumas vezes até que, irritada, começou a esmurrar o peito do rapaz que havia permanecido impassível até aquele momento.
— Deixe-me sair! – gritou, trincando os dentes.
— Sinto muito, senhora. Isto não é possível sem a autorização do rei. – respondeu o soldado, segurando-a pelos pulsos como se estivesse detendo uma criança.
— Quer dizer que sou uma prisioneira, então? – Ele apenas a olhou consternado, como se aquilo fosse óbvio demais. — Então, o que você ainda faz aqui?
— Permanecerei em seus aposentos até o dia de suas bodas. – retornou ele. Agora, ambos estavam cara-a-cara e aquilo perturbava os pensamentos de Seifna ainda mais.
— Como se fosse humanamente possível fugir daqui! – gritou ela, caminhando até o meio do quarto e apontando para a única janela ampla do quarto, através da qual se podia ver a cidade diminuta abaixo e a estender-se para o horizonte.
— Não estou aqui para impedir sua fuga. – disse o rapaz com seu tom de voz calmo e controlado, atraindo a atenção da jovem. — Estou aqui para impedir que se mate antes das bodas.
Saifne levou a mão aos lábios; belos olhos escuros arregalando-se. Não havia pensado naquilo. O desânimo se abateu sobre ela que se sentou na cama, os ombros curvados.
— Aconteceu outras vezes? – perguntou.
— Sim.
A resposta monossilábica atraiu a atenção da jovem que o examinou novamente. Parecia haver pesar em sua voz o que se confirmou quando o soldado desviou o olhar.
— Qual é o seu nome?
— Saiyd.
— Você apenas fica de guarda ou também as executa após a noite de núpcias?
O soldado voltou seus olhos para Saifne e quando finalmente se encontraram, a moça obteve a resposta que os lábios bem delineados não ousaram dizer.
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