Sobre o penhasco
Reza a lenda que em uma cidade no norte do Brasil existe uma certa casa no alto de um penhasco onde mora uma velha ranzinza e carrancuda.
As poucas pessoas que conseguiram chegar lá e voltar viva passaram a sofrer alucinações que as deixaram beirando a loucura ou entrando completamente nela. Não conseguiam discernir um "alô" de uma ameaça de morte. Passavam o dia inteiro delirando e com um ar assustado.
Certa vez, um grupo de pessoas que moravam em um vilarejo nessa cidade resolveram se juntar com os armamentos que dispunham e verificar o que havia no alto daquele morro.
O vilarejo ao qual pertenciam ficava a apenas um quilômetro de distância do pé do penhasco, assim sendo, caso algo acontecesse com algum dos seis presentes, alguém poderia lançar qualquer sinal de perigo, já que o dito trajeto era apenas um campo de mata baixa com um gado à solta. Pelo menos, era isso que eles achavam.
Quando por fim chegaram ao pé do penhasco, o grupo chegou a uma conclusão: para que o plano realmente desse certo, um dos homens deveriam ficar sob o penhasco e esperar qualquer sinal de retirada. Assim sendo, Augusto Ramos, um pai de duas jovens garotinhas e marido de uma mulher que se encontrava em estado terminal por uma doença até então desconhecida, resolveu ficar, não por medo, mas para caso algo de ruim acontecesse aos seus companheiros ele pudesse levar qualquer informação necessária ao restante da população e talvez ainda, descobrir se a doença da sua esposa poderia ser de fato uma maldição jogada por algo ou alguém de cima daquela terra, coisa que até então ele acreditava veementemente.
Caro leitor, já basta dizer aqui que todos os cinco morreram. Sim, não pasme-se, afinal, isso é um terror.
Suando e agitado, ouvindo os gritos de assombros e a gargalhada asmática de alguém em júbilo, Augusto notou, lá embaixo, que aquilo era o sinal que ele mais temia. Sabia, mesmo amedrontado, que era a hora de partir, isto é, se ele fosse capaz, já que duvidava que o fosse, tamanho o medo e a angústia.
Pé ante pé, foi dando curtas passadas e se distanciando da encosta. Realmente, depois de todos aqueles gritos seguidos de uma fria satisfação, ele não sabia se estava com as forças necessárias para seguir em frente.
Mas, como um clarão, Augusto lembra das suas filhinhas tão miúdas e sua esposa, prostrada sobre uma cama, quase beirando a morte. Se é que ainda poderia existir, surgiu uma esperança quase como um gatilho para todo o seu esforço no segundo seguinte.
As mãos cerradas sobre a cunha da foice, rugas brotando sobre a ponte das sobrancelhas, ele começa passadas maiores, decidido, por fim, que deveria ter forças para ir adiante, sem hesitar. Haveria uma família o esperando, e que mesmo sem conseguir as informações suficientes para tomar alguma atitude quanto a doença de sua esposa, ainda poderia acompanhar junto a ela, sua morte e ver suas filhas crescerem.
Nada mais importava naquele momento.
Com um impulso, começou a correr como se sua vida dependesse disso - e de fato dependia. Viu suas filhinhas sorrindo para ele, alegres, contentes. Estavam em um campo formando um círculo e girando, girando. Felizes como nunca.
Com um repentino baque abafado às suas costas, parou. Ficou gélido, imóvel. Não queria olhar para trás, ver o que achava que era, mas que não queria aceitar.
- Vire-se - ordenou uma voz distante que ressoava no ar.
Ele realmente não desejava isso, mas algo o forçou, algo dentro dele o obrigava a virar.
A contragosto sua cabeça foi virando vagarosamente; o estômago pesando, o medo transbordando todo o corpo. Quando menos esperou, estava olhando para um corpo mutilado quase aos seus pés. O choque foi único. Nunca havia sentido tanta aflição em toda a sua vida, tão árdua. Ele lutava para não continuar olhando, mas contra a sua vontade, quase como birra, seu olhar estava passando pelos pontos críticos daquele corpo.
O corpo ensanguentado a alguns centímetros estava estatelado no chão, de bruços, os braços e pernas abertos, o queixo contra a terra, deixando aquela face lúgubre demasiadamente assustadora; um cadáver, pálido, estarrecido, como se a última coisa que visse quando vivo fosse algo que lhe desse desespero tremendo, tal e qual o sentimento em que Augusto se achava.
Ainda sem desgrudar os olhos, viu, entre o L do ombro e pescoço, um sangue jorrando a intervalos curtos, de lá pendia uma cratera, em que era possível ver traços brancos que remetiam a ossos, e sobre a pele de sua borda, um líquido transparente, quase como uma baba de bebê. Uma mordida. Estava, observou Augusto, por várias partes daquele corpo.
Na dobra da perna esquerda havia um corte horizontal. Observando melhor a face, era possível encontrar um outro corte sobre cada pálpebra, como se cada uma fosse dividida em duas.
Se é que era possível, o medo encheu mais ainda o corpo e a mente de Augusto. O corpo de Júlio Teixeira jazia à sua frente, morto, torturado. Seria eu o próximo?, pensou. De esguelha, percebeu um vulto que parecia vir do penhasco. Quando os seus olhos foram se encaminhando para o alto, a figura de uma velha de cabelos espessos e molhados tocando o ombro foi se formando. Um sorriso foi aparecendo e com ele um sangue que cobria uma boca sem dentes e que escorria para o queixo.
Como? Por que? Aquilo foi responsável por aquele massacre? Todas essas dúvidas percorriam a mente de Augusto. Mas o medo era maior, a sensação de solidão e desespero foram se ampliando como nunca.
Os olhos fundos de um verde profundo daquele vulto penetravam com grande intensidade os olhos de Augusto. Ele ficou aturdido, queria desviar seu olhar, queria sair dali, mas não era possível.
De súbito, ele começou a ser sugado por um túnel que ia em direção àqueles olhos.
Então ele viu. Viu a morte, viu o medo, o desespero. Estava dentro de um casebre velho e tudo parecia estar distorcido e trêmulo. Traços prateados percorriam todo o ambiente junto com um vulto, e ao entrar em contato com as pessoas que estavam ali, faziam linhas de sangue jorrar no ambiente. Pernas truncadas caindo de joelho. O vulto que se movia rapidamente, agora estava atracado ao pescoço de alguém assombrado. Houve um estalo.
O vulto ergueu a cabeça e ficou parado, ainda de costas para o campo de visão de Augusto. Então, de súbito, virou o rosto. Da boca era possível ver fendas que estavam lentamente se fechando sobre as gengivas. Com um estrépito, a velha correu rapidamente para Augusto e tudo ficou preto, enquanto novamente ele passava por um túnel, dessa ver como se ele estivesse sendo expelido de onde estava.
Agora, estava novamente no local de antes, ainda olhando para aqueles profundos olhos verdes, atônito.
- Vá - outra vez o som ressoou no ar. A velha, ainda com o sorriso no rosto, foi dando as costas, saindo do campo de visão da ponta do penhasco.
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