E no piscar de olhos
A noite já brilhava no céu, o sino da igreja reboava no ar, os vários prédios quadriculados e compridos se estendiam pela rua, ainda bastante movimentada. Um desses prédios era o condomínio em que Brenon morava: segundo andar, varanda com grade de vidro, vista para a rua que ficava à frente do estacionamento do local.
De lá, um fio de fumaça beijava o ar e vibrava com a música que vinha da igreja; se estendia ao céu em forma de espiral e então ia se dissipando aos poucos enquanto ganhava todo o ambiente. Brenon era o precursor daquela dança ritmada da fumaça. Apoiado com os braços na redoma de metal que ficava sobre o vidro, ele soprava à sua frente na tentativa de expelir o conteúdo do cigarro. Em mais alguns segundos, a guimba amarelada ia ganhando um brilho alaranjado, que marcava o fim daquela diversão.
Ele inclinou a cabeça um pouco para baixo erguendo sua mão direita com o cigarro acima da cabeça, o peito nu a alguns centímetros do metal gelado. Logo sua visão foi para uma passarela com ladrilhos e postes que iluminavam o espaço que era dividido em duas mãos para o tráfego de carros. Mais a frente, observou o movimento no mercadinho que se achava ao atravessar a passarela. Uma mulher à entrada. Uma bela mulher. Cabelos negros com uma trança que ficava solta à frente do ombro direito, pele clara, camisa rosa de alças finas, shorts preto que ia até um pouco acima dos joelhos. Brenon notou que aquela mulher tinha algo atraente, mas não se prendia a uma beleza extravagante ou fora de série. Era algo sutil, algo leve, algo meigo. Não, não, talvez algo além… algo além disso. Não sabia explicar.
Ela olhava de um lado a outro na frente da grade de entrada, as mãos no bolso do shorts. Alguém se aproximou dela e ambos entraram: ela trabalhava lá.
Como um raio, Brenon lembrou de algo. Lembrou que faltava algo em casa. Isso poderia ser apenas uma desculpa para ir até lá, mas sua mente não queria admitir isso. Ele realmente precisava comprar algo para comer, deveria. Tinha se mudado para aquele prédio há apenas dois dias, e todo esse tempo ele dedicou às últimas páginas de seu livro. Não saiu para nada, tinha comida estocada, afinal. Mas é claro, agora, ele precisava sair, e foi isso que fez.
Vestiu uma camisa, desceu os degraus, atravessou o estacionamento e foi até a portaria, esta que era composta por uma cabine encimada de uma despensa, com uma escada que a ligava ao chão. De uma janela de correr era possível ver o porteiro que guardava o local. Brenon fez um gesto com a cabeça para ele, que retribuiu, logo depois soou um barulho metálico e a trava da portinhola branca foi aberta, esta ficava ao lado de um portão maior que, ao som de um outro tipo de barulho, abria uma passagem pelo trilho.
Brenon passou pela portinhola, foi até a borda da calçada, olhou de um lado a outro, esperou um certo movimento de carros passar e então seguiu, a passos largos, até a passarela; repetiu os mesmos movimentos e em seguida seguiu correndo até a outra calçada, parando, depois de um salto, à frente de uma garota que apareceu de supetão da entrada do mercadinho. Ela inflou o peito, estirou os dedos, arregalou os olhos e mostrou uma cara assustada, da qual Brenon riu.
- Desculpe, não queria assustar - falou.
- Ah, não, eu - começou a garota - Eu não me assustei, não se preocupe - ela aproximou a mão direita no ombro, apalpando a trança de cabelo, desviando seu olhar para baixo.
- É claro que não - riu Brenon - Sou novo aqui mas não devo ter cara de mal, não? - Ele alargou os olhos e riu enquanto soltava a frase.
- Com certeza não - ela riu, balançando levemente a cabeça e as mãos negativamente, ainda com o olhar desviado.
O homem que há poucos segundos entrara com a garota se aproximava do caixa, Brenon, em um gesto sutil com a mão, apontou para lá através de uma brecha na grade lateral. A garota olhou para trás e para o lado, viu que o homem a esperava e, com um sutil movimento de cabeça, foi até lá. Brenon aproveitou a deixa para entrar no estabelecimento: à sua frente havia as laterais de quatro prateleiras de ferro que se estendiam até os fundos. No espaço entre as prateleiras haviam bolas do tamanho de bolas de tênis penduradas em nylon que pendiam a poucos centímetros da cabeça de Brenon. No vão da esquerda era possível ver uma sequência impecável das bolas: começando a partir do fundo, vinham uma verde, laranja, vermelha e roxa, todas do mesmo tamanho. No corredor da direita a sequência se repetia, mas era quebrada apenas por um detalhe: a bola roxa estava faltando.
Era disso que Brenon precisava: outra desculpa. Logo quando chegou no condomínio, em um salão de festas à noite, o zelador do prédio tirava alguns enfeites que pendiam das paredes e do teto.
Apoiado em uma cadeira, o homem ia retirando algumas bolas de várias cores do teto, eram idênticas às daquele mercadinho. O zelador, depois de arrastar a cadeira pelo salão inteiro, jogou todos os acessórios em uma sacola verde. Aquele saco teria o mesmo destino que todos os outros utensílios que não são mais úteis tem, uma vez que seria depositado no lixão do local.
Era segunda, o carro que recolhe o lixo passaria na terça. Brenon observou o homem no sábado. Os enfeites ainda estão lá.
- Esse daí quebrou - começou a garota após despachar o cliente. Ela notava que Brenon estava observando o nylon solto, quebrando a sequência dos enfeites da loja - Sabe, rua movimentada. Os caminhoneiros não pensam duas vezes em soltar o pé em uma avenida longa como essa. Treme tudo e BOOM!, alguma coisa cai. Até que temos sorte - ela apontou com a cabeça para a prateleira que era grudada à parede: havia várias garrafas de bebidas, de vários tamanhos, de todos os tipos. Brenon soltou um riso sutil.
- Sei, entendo - falou Brenon - Mas, concordo na parte da sorte. Sabe, eu tenho uma coleção dessa no meu apartamento.
Não foi bem uma mentira, pensou, afinal, ele não poderia falar que jogou no lixo ou coisa do tipo, talvez ela pegasse mal a ideia. De qualquer forma, foi a melhor opção.
A garota fez uma expressão surpresa, remexendo os pés e pondo as mãos nos bolsos traseiros do shorts.
- Sério?
- Sim, sim. Quem sabe poderia passar lá amanhã ou depois, ainda tá uma bagunça lá no meu apartamento, vou ter que desempacotar umas coisas, mas acho que encontro.
Perfeito!
A garota soltou um murmúrio na tentativa de responder. E por fim:
- Hã, o.k, claro. Não vai precisar mesmo?
- Ah, não. Minha mãe me deu de presente no último natal. Mas, hum, sou minimalista.
- Ah, entendo - ela deu um sorriso desviando seu olhar para baixo com um movimento da cabeça.
- Bem, combinado. Quando quiser, só aparecer. Moro no 202 - ele apontou para o condomínio que ficava depois da passarela - Agora, vou pegar umas batatinhas, preciso ficar vivo pra amanhã - ele sorriu.
Brenon pegou o que queria, pagou e fez o mesmo trajeto de antes para voltar ao seu apartamento.
O céu ainda estava bem iluminado, tal e qual as ruas ao redor.
No dia seguinte, Brenon fez sua rotina de sempre. À noite, porém, a campainha tocou no 202.
Brenon abriu a porta e, parada com as mãos nos bolsos traseiros de um shorts, estava a garota. Só naquele momento, olhando nos olhos dela e reparando melhor nos cabelos com tranças que caíam sobre o ombro, ele pensou que ainda não sabia o nome dela, e nem ela o dele. Ele se afastou um pouco da porta em um gesto convidativo para que a garota entrasse. Ela entrou. O grito saiu ao mesmo tempo que a porta foi fechada. Ela estava atônita, paralisada. Os olhos e a boca tremiam levemente enquanto o seu campo de visão estava à direita, em um espaço que se parecia com a cozinha, e lá, uma cabeça pálida, decapitada, com bolinhas de várias cores ladrilhando ao seu redor.
A garota estremeceu, um grunhido saiu oscilante, mas não passou disso, a pancada foi uma só e ela caiu sobre o chão.
Quando acordou, estava amarrada sobre uma cadeira, a boca com um pano a impedindo de gritar, era isso que faria, afinal, pois o rosto sem cor à sua frente a aterrorizava. E o horror foi ainda maior quando olhou em volta. Todo o ambiente parecia escuro exceto pelas velas acesas iluminando cantos específicos no local. Essas velas eram cobertas por uma espécie de recipiente que possuía várias brechas ao redor da borda que entrava em contato com o chão, cada um tinha uma cor diferente, que irradiava cada porção do ambiente. Em cada um desses locais com velas, um rosto era visível; tinha vários ao redor, e eram de todos os tipos: pele clara e escura, grandes e pequenas, algumas até deformadas, outras infantis. Era uma visão horrenda, tudo era assustador; com certeza, os olhos arregalados daquelas cabeças intensificaram ainda mais essa sensação. Um cheiro pútrido cobria o ar.
- E então, mamãe, gostou? - Brenon falou, por trás da garota, aparentemente se dirigindo para a cabeça sobre a mesa - É, eu sei. Ela é linda - ele riu, dessa vez um riso descontrolado, forçado - Mas, está morta, precisa acordar e viver como você, não acha? Você também estava morta, hã, e agora está aqui, feliz, livre. E, o melhor de tudo, ao meu lado.
A garota fechou os olhos em um ato de desespero, um grunhido saiu junto e ela parecia desabar. A última coisa que ouviu, foi:
- Desculpe, as batatinhas acabaram.
Uma sombra prateada cruzou o ar e o sangue ganhou vida.
Na mesa, ao lado de um rosto salpicado de sangue e rodeado de bolinhas coloridas, outra cabeça pairava, esta que jorrava sangue intensamente. Outro barulho ecoou no ambiente. Era um som de vidro sendo quebrado: no chão, cacos roxos estavam espalhados, porém, não eram de vidro, mas de metal.
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