4 - Uma pequena história
Os olhos verdes captaram o amarelo ao meu lado e o rapaz notou o vaso com as lindas flores sobre o móvel.
— Narcisos. Interessante. — falou.
— São do John. Ele trouxe quando veio me visitar. É um amigo muito atencioso.
— Um... amigo? — senti o peso da amargura e do desdém na voz dele.
— Sim. — respondi. — Ele as escolheu especificamente pelo seu significado. Cavalheirismo e respeito, assim como renascimento e recomeço.
— Muito perspicaz o seu... amigo. Deixe-me adivinhar, uma flor que sozinha represente igualmente a vocês dois. — o seu riso de deboche e desprezo me irritou. — Acertei? — além disso, arrogância e petulância.
— Sim. — disparei. — Acertou.
— Pois muito bem. — ele forçou a base de uma flor e a arrancou, degradando o meu presente. Que atrevido! Eu arfei. Ele não ligou. — Creio que ele tenha se esquecido de um dos significados. — declarou rodando o caule da flor colhida entre os dedos. — O principal deles, na verdade. O mais intenso e verdadeiro. O original.
Se esperava cobiçar a minha curiosidade não conseguiu. Em vez disso, peguei o meu vaso de flores no colo, caso alguém pensasse em arrancar mais alguma flor.
— Reza a lenda que há muito, muito tempo atrás, nascera um belo menino. Filho da ninfa azul Liríope e do deus Rio Cefiso. Um menino belo, tão belo, mas tão belo, que era mais belo até mesmo do que os próprios imortais. — a narrativa dele era envolvente, com aquela voz macia de veludo, e eu acabei caindo nela, mesmo sem querer. — Um menino chamado... Narciso.
Os olhos verdes admiravam a bela flor solitária que possuía na mão.
— O menino cresceu e se tornou um jovem arrogante e perverso, sem compaixão pelos que por ele se apaixonavam. — um olhar lampejou quente de acusação na minha direção. — Um dia, após uma longa caçada, tal jovem chegou a um lago claro e límpido cujas águas jamais haviam sido tocadas antes. Seduzido pela beleza do lugar, o mais belo dentre todos os viventes foi ali repousar. Exausto e fatigado do calor, debruçou-se sobre a margem para matar sua sede. Perplexo, ficou paralisado, deslumbrado pela imagem que via pela primeira vez: o seu próprio reflexo. Que angustia! Apaixonou-se por si mesmo. Um amor eternamente intangível e impossível. Atraído por sua paixão, desejando tocar o seu amor, o jovem mergulha no lago e desaparece sob as águas.
O rapaz contava a história com uma voz profunda e sedosa, como se estivesse relembrando algo a que tivesse pessoalmente testemunhado.
— No lugar onde ele mergulhou, brotou uma linda flor que inclina suas delicadas pétalas para contemplar-se no espelho d'água. Creio que deduza o nome de tal espécie.
— Narciso. — falei e observei os três que restavam plantados no vaso que eu segurava.
— Desde então, os narcisos são o símbolo do amor não correspondido, e esse, obviamente... sou eu. — o verde e amarelo da flor refletiram perfeitamente a cor daquele olhar de esmeraldas douradas. — Como vê, acho que o seu amiguinho deu a você uma flor que representa a mim! — um sorriso largo, extremamente convencido e satisfeito.
Como foi que ele virou o jogo tão rápido?
— E se o seu amigo representa o cavalheirismo e você o renascimento, vocês são dois conceitos totalmente separados, mas e nós dois? Qual de nós é o verdadeiro Narciso da história? Você é a beleza acima de qualquer outra, mas sou eu que me apaixonei pelo que não posso ter. Dois conceitos unidos em um só e tão intrinsecamente mesclados que foram profundamente amarrados em um único personagem. Eu sou a flor que se encurva sobre a água, mas você é o reflexo que eu vejo espelhado nela.
Ele falava com confiança e intensidade, não tinha timidez de me encarar sem rodeios. Seus olhos pousaram no objeto que eu segurava.
— Três pessoas, três flores, três narcisos. — completou.
Agora eu entendi, ele arrancou a quarta flor de propósito para chegar àquele resultado. Um gesto calculado com detalhe. Cada flor representando um de nós.
— Como será que essa história vai acabar? — a voz agora era fria e o jovem não olhava mais nos meus olhos. — Não se preocupe, vou respeitar a sua decisão seja ela qual for. — disse de costas para mim, fechando a porta atrás de si ao sair.
Existia uma ausência dentro de mim. Ausência de lembranças, memórias, experiências e sentimentos. Uma sensação de vazio misturada com alívio tomou conta de mim enquanto o rapaz se distanciava. O alívio foi o sentimento predominante. Apertei o vaso nas mãos. O presente de John tinha perdido parte de sua beleza, não porque tinha uma flor a menos, mas porque agora eu olhava o amarelo das pétalas e o verde dos caules e só pensava no estranho com olhos de esmeraldas pontilhadas de luz do sol. Droga! Gael Ávila.
Depositei o vaso novamente no móvel ao meu lado. Vi a fotografia que estivera segurando antes do rapaz chegar, agora abandonada sobre o lençol da cama. Ela me queimou sem me tocar. Eu virei o fundo branco para cima e a peguei.
Me levantei e fiz questão de jogá-la na lata de lixo com a imagem para baixo. Não precisaria mais dela. Aquela imagem não era uma lembrança. Não era nada. Não representava mais nada para mim e aquelas duas pessoas não eram nada uma para a outra.
Aff! O estrago que um punhado de lembranças não faz com a pessoa!
Por hoje é só amores. Semana que vem tem mais.
Se gostou deixa uma estrelinha. Bjos!
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