Capítulo 2 (Parte III)
Dedos ágeis vasculhavam as gavetas da escrivaninha de Lílian. Tinha que estar em algum lugar, agenda, comprovantes, algo que mostrasse onde estava aquele francês maldito. Olhava por cima dos ombros, estava quase amanhecendo, o turno da noite já havia acabado e os diurnos levariam horas para voltar a circular por ali. Claro, poderia ser pego por algum segurança e não queria que ninguém comentasse que estava mexendo nas coisas da secretária do todo-poderoso.
A garota nova tinha jeito de tola, completamente ignorante sobre a Noite e todas as coisas que importavam, o que era sua grande oportunidade ali. Estava há anos naquela empresa maldita, aguardando uma oportunidade de ser útil a Arthur, na expectativa de receber todas as doces promessas que lhe havia feito. Um endereço, uma data, um momento de guarda baixa que permitisse que uma bala de prata pegasse o francês com as calças arriadas.
Sentiu o coração na boca quando achou a agenda. Tirou-a da gaveta, virando vertiginosamente as páginas.
— Com mil diabos!
Não conseguia compreender a letra irregular e apressada. A bem da verdade, mal podia afirmar que aquilo era de fato português, se era algum tipo maluco de abreviações. Pensou em fotografar para buscar depois o significado das anotações, mas ouviu o som dos coturnos de um segurança no carpete fino. Teria de voltar depois.
***
A semana não decorreu facilmente para Lílian. Durante o dia levantava cedo para ir ao antigo trabalho, catalogava os documentos (o que nunca fizera, pois conseguia se achar na própria bagunça) e tentava ensinar o serviço para a moça da recepção, que pelo jeito, tal como ela fora um dia, seria promovida a secretária. Depois comia qualquer bobagem e ia direto a Avenir, com medo de tentar voltar a casa e se atrasar no caminho. Adônis não deu as caras o resto da semana, e Cristiano repassava uma quantidade imensa de trabalho tedioso, grande parte dedicado às exorbitantes despesas pessoais do chefe.
Na sexta estava quase implorando por misericórdia. Durante toda a semana não havia conseguido dormir mais de três horas por noite, sua base não escondia mais as marcas profundas de olheiras. Tudo que conseguia repetir para si mesma era que dormiria o sábado inteiro, feliz e sem culpa, depois daquela maratona. Estava tão perto do sonhado descanso que até sentia-se relaxar.
Estava sentada há quase uma hora, sentindo os olhos cheios de areia, a sua frente estava seu terceiro copo de café da noite e Lílian nem tinha ligado o computador ainda. Cristiano devia estar ocupado com alguma coisa e ainda não tinha aparecido, e ela não conseguia se concentrar em nada que tivesse para fazer. Estava ali, tomando café e olhando para o vazio, sem muitos pensamentos coerentes além de fantasiar com a sua cama, quando seus olhos se fecharam. Ela os deixou alguns segundos assim, aproveitando a sensação, mas depois se forçou a abri-los, a tempo de ver seu chefe passar rapidamente na frente dela.
—Boa noite.
Ela chegou a dar um saltinho na cadeira.
—Boa noite, Adônis...
Pensou em começar uma explicação, não sabia se ele a havia visto de olhos fechados, mas de qualquer jeito achava que devia dizer algo. No entanto, ele passara tão rapidamente, que só ficou olhando a porta fechada, preocupada em saber se o chefe achava que ela sempre dormia quando ele não estava por lá. Quase meia hora depois ele pediu que ela fosse até a sua sala.
Sabendo que não estava em sua melhor forma e que normalmente Adônis já a fazia sentir como se ela tivesse problemas de cognição, entrou na sala olhando propositalmente para a janela atrás da mesa dele. Ele estava sentado mexendo em alguns papéis, então não era difícil evitar olhá-lo nos olhos, era só fixar a visão em um ponto acima do ombro dele.
—Pois não?
—Você está bem?
—Sim, senhor, por quê?
—Tive a nítida impressão que você estava quase cochilando na sua mesa.
—Desculpe, juro que isso não vai mais acontecer.
—Por que você não se senta?
Lílian obedeceu, quase desabando na cadeira.
—Você tem dificuldade com o horário noturno?
Ela balançou a cabeça e começou a explicar o inferno de horários que estava vivendo naquela última semana. As poucas horas de sono por dia, o trabalho acumulado.
—Quer dizer que você está trabalhando aqui e cumprindo aviso prévio no seu antigo emprego? Nós teríamos pagado a multa.
—Acho que não seria certo...
—Meu Deus, você é mesmo uma boa menina!
Por algum motivo o jeito como ele disse aquilo não soou como um elogio. Lílian empertigou a coluna, tentando recuperar o orgulho.
—Desculpe-me pelo inconveniente, não voltará a acontecer.
Ela observou as sobrancelhas dele se altearem, um misto de diversão e surpresa.
—Você ficou ofendida?
—Não. Só estou preocupada que você ache que isso é algo normal para mim.
Ele riu um pouco, descontraído.
—Vá para casa dormir, se tivesse me dito que sua consciência a obrigava a cumprir o aviso prévio eu a teria dispensado esta semana.
—Teria?
—Teria rido de você e depois dispensado. No fundo acho bonitinho seu senso de dever, então no futuro, quando tiver um problema, fale comigo ou com Valentin, ele sempre consegue me encontrar. Faça-me um último favor antes de ir, envie flores para esta senhorita aqui.
Ele tirou do bolso do paletó um cartão de visita rosado. Lílian pegou o cartão com a mão trêmula. Não tinha lhe ocorrido que enviar presentes para a namorada do chefe estava entre suas funções. Leu o nome no cartão Sílvia Alcântara, promoter. Expirou forte.
—Algo específico?
Ele fez que não com a cabeça.
—Confio no seu bom gosto.
— E o cartão?
—Ponha meu nome e algum cumprimento genérico.
Lílian piscou algumas vezes. O cara parecia ser um chefe legal, dispensando ela para dormir e tudo o mais, mas a consideração com as mulheres deixava muito a desejar. Continuou o encarando, tentando entender como alguém pode ser as duas coisas ao mesmo tempo.
—Algum problema, Lílian? Você não se sente confortável com isso?
—Ah, não, não é isso. Me desculpe de novo, mas se eu soubesse exatamente a ocasião acho que poderia escolher melhor o arranjo e o cartão.
Adônis a fitou com jeito divertido.
— O que exatamente você quer me perguntar? Não sou bom com sutilezas.
—Eu não sei, ela é sua namorada, um contato profissional, você está tentando impressioná-la, essas coisas.
—E isso faz tanta diferença para mandar flores?
A moça sentiu as bochechas esquentarem, o que deveria indicar que estavam ficando vermelhas, desconfiava que ele a estava chamando de enxerida. Mas conseguiu apenas balançar a cabeça em uma afirmativa, enquanto fazia uma expressão proposital de tédio.
—Sílvia é uma amiga íntima a quem eu quero agradar. Não tenho namorada.
Lílian assentiu.
—Mande escreverem algo no bilhete sobre como ela é linda, ela gosta dessas coisas. Depois pode ir dormir.
—Obrigada, Adônis, bom fim de semana.
Ele acenou e voltou a se concentrar nos papéis a frente dele. Só voltou a falar quando Lílian abriu novamente a porta.
—Se você queria saber se sou comprometido, era só perguntar.
Lílian saiu com vontade de bater a porta. Maldito francês convencido. Foi até a sua mesa segurando o cartão na mão. Sua pergunta fora normal, só trabalhava ali há quatro dias, não sabia nada sobre ele. Existem centenas de tipos de flores, infinitas combinações de frases num cartão. Ela não tinha particularmente interesse em saber se era algo sério. Nem queria saber se ele estava dormindo com alguém. Abriu o navegador da internet para pesquisar uma floricultura que ainda estivesse aberta, mas acabou digitando o nome da moça do cartão. Viu as fotos de uma morena alta, com porte de modelo, sorriso largo de dentes muito claros, cabelos longos e brilhantes. Não eram muitas as fotos, pelo jeito aparecia apenas em colunas sociais, mas em todas suas roupas eram maravilhosas, provavelmente de marcas caríssimas. Exatamente o tipo de amiga íntima que imaginava que Adônis teria.
Sem nem mesmo tentar explicar para si mesma, Lílian desligou o computador, pegou sua bolsa e saiu. Estava com sono, mal-humorada e com muita raiva, repetindo a si mesma que ciúme era algo completamente absurdo naquela situação. Era só seu chefe fabulosamente lindo e rico, cortejando uma mulher tão linda e rica. Ciúme não, inveja, inveja caía melhor, o universo definitivamente não distribuía suas dádivas com igualdade.. Que as malditas flores fossem ao inferno.
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