Somente pessoal autorizado
Tudo aconteceu muito rápido.
Em um instante a arma estava apontada e engatilhada, pronta para o atingir, porque era desdém e maldade o que via nos olhos daquele segundo humano, ódio sem razão. Depois, com um estrondo alto que ecoou por toda floresta, o corpo de Aaron caiu no chão em sua frente em um baque mudo.
Era ele o dono de uma das vozes que o chamou.
O outro era Kismet que, furioso, atacava o homem armado com um rugido rasgando seu peito. O pegara com facilidade, derrubando-o no chão e o socando sem parar com os punhos fechados. Noble olhou dele para Aaron, que segurava a perna direita com força.
Estava ajoelhado e aquele tiro era para ele, por isso atingira a coxa do homem.
Virou-se de volta para o humano caido e fechou os dedos ao redor do cabo da faca, girando-a dentro da pele, dilacerando a carne e sentindo o cheiro metálico se intensificar conforme ele sangrava mais e mais.
— Seu desgraçado — o homem gritou de dor. — Animal!
— Você vem até a minha casa — rosnou, penetrando mais a lâmina no ombro dele. — Machuca dois dos meus e eu sou o animal, sério? — depois puxou a faca com tudo, posicionando o fio molhado e vermelho na garganta do homem. — Cala a boca.
Olhou de volta para o amigo e gritou:
— Chega, Kismet! — mas ele não parava. — Kismet! Você vai matar o humano e nós precisamos deles para saber onde os outros estão! — se levantou, puxou a corrente da própria mão e a passou ao redor dos pulsos do desconhecido, prendendo-o, então correu até o amigo, segurando o ombro dele. — Kismet!
O rosto de Kismet estava manchado; os lábios cheios de sangue e as presas proeminentes brilhando em cor rubra, as pupilas retraídas e selvagens, até mesmo a voz dele estava mais grossa e rouca quando falou as próximas palavras.
— Eu o matei.
Kismet olhava para o homem como se ele não estivesse realmente em sua frente, as orbes vidradas em todo o sangue que se acumulava em suas mãos.
— Sim, eu posso ver…
E era horrível.
O rosto do macho humano se tornara uma massa vermelha e horrenda, com a cabeça virado para o lado não havia muita coisa que ele pudesse reconhecer além de uma mandíbula retorcida e quebrada, em um ângulo grotesco demais para encarar por muito tempo.
Não lamentava, não quando ele atirara contra a sua cabeça, mas o outro homem não estava satisfeito e começou a gritar.
— Você matou um dos nossos, seu animal, o público saberá disto e todos vão saber que vocês são realmente selvagens e irracionais, monstros que só querem nossas mulheres!
— Legitima defesa é como se chama, seu idiota, mas eu gostaria que ambos estivessem inteiros para o interrogatório — Aaron resmungou, ainda no chão e Noble se moveu para o ajudar a levantar. — Obrigado, rapaz.
Balançou a cabeça positivamente.
— Obrigado você… você salvou minha vida.
Aaron bufou, revirando os olhos castanhos.
— Você me deve uma então — ele pegou o rádio na cintura enquanto se apoiava em Noble. — Precisamos de ajuda no portão leste da Reserva. Nós temos um homem morto — voltou sua atenção para o preso —, um ferido e possivelmente outros espalhados a espera deles. Quero uma inspeção completa da floresta até a rodovia em duplas, procurem por equipamentos eletrônicos na mata — uma voz respondeu do outro lado e Aaron continuou. — Eles estão bem, mas eu tomei um tiro. Preciso da Allison.
Noble olhou para Kismet uma outra vez e depois para o machucado de Aaron.
— Vou levar você nos braços até lá — o segurou por baixo das pernas e o ergueu do chão. — Você pega o macho preso, Kismet.
— Eu sempre quis ser carregado como uma noiva mesmo.
Ele deu alguns passos para frente, esperando que o amigo o acompanhasse imediatamente, mas não foi o que aconteceu. Kismet permaneceu parado no meio das árvores, ainda olhando para o morto.
— Merda…
— Kismet! — Aaron chamou o amigo, a voz soando alto e como um comando, fazendo-o olhar no mesmo instante para o homem em seus braços. — Agora você sabe do que é capaz. Você é forte, muito mais forte do que qualquer humano. Eu sei que há grandeza em você, então se lembre dessa morte para sempre, porque ela demonstra tudo o que você é de verdade.
— Um assassino é o que eu sou então?
Aaron negou, balançando a cabeça para os lados.
— Um sobrevivente, como todos os outros do seu povo.
— Animais é o que são e você é um pecador por viver com eles!
Kismet rugiu para o homem que se contorcia no chão, choramingando de dor e ódio. Talvez fossa uma ideia ruim pedir para o amigo o levar, então passou Aaron para ele e lidou com o humano, forçando-o a ficar de pé e a andar em frente.
— Existem outros como você na floresta ou nas proximidades?
— Nós estamos em todos os lugares — ele cuspiu sangue. — Em seus portões, muros, em cima e embaixo… — sorriu e olhou para frente. Noble acompanhou o olhar dele, tudo para encontrar Aaron o encarando por cima do ombro de Kismet. — e dentro.
Os olhos castanhos sempre cheios de diversão e sagacidade de Aaron estavam nublados em frieza e desprezo; orbes brilhantes em fúria contida.
E se… não!
Apenas cogitar que ele era um traidor já o fazia se sentir ruim.
Empurrou o humano para frente, tentando preencher sua mente com outros pensamentos.
— Você vai contar tudo o que sabe.
— Se é o que você pensa, animal.
Noble deixou que um sorriso se destacasse em seu rosto.
— Quero ver se vai continuar a nos chamar de animais depois de um breve encontro com Darkness.
🌡️
Noble tentou ajudar Kismet a se limpar de todo aquele sangue, mas ele negou e se afastou. Não se sentia bem em deixá-lo sozinho naquele momento, no entanto estava mais preocupado com o machucado de Aaron. Com Kismet ele lidaria depois.
Forest estava bem, o tiro que levara era de arma de tranquilizante, nada com o que não pudessem lidar. Ele mesmo passara pelo efeito da droga no passado.
Salvation seguiu Kismet pelo corredor, deixando Noble mais aliviado.
Ligou uma vez para o celular de Kaira até a ligação cair, então ligou para Aurora. Não queria acordar nenhuma das duas de madrugada, mas sabia que se não passasse um recado do que acontecera sua companheira ficaria com muita raiva e ele preferia confrontar mais um daqueles encontros detestosos com os machos humanos do que Kaira furiosa.
Depois voltou para a sala junto de Aaron. Ele estava deitado na maca, vestindo apenas camisa e cueca, enquanto a doutora Allison cuidava do ferimento de bala.
O soldado tinha uma tatuagem estranha na coxa esquerda, escrita em letras escuras que ele nunca vira ou conhecia.
— Curioso? — Aaron perguntou, sorrindo como um idiota.
— Doeu?
— Acredite, nada dói mais do que tomar a porra de um tiro.
Noble inclinou a cabeça para o lado.
— O que significa?
— “Sou uma criatura trêmula ou tenho o direito?”. É russo.
Noble não entendeu nada.
— Mas o que significa isso?
Aaron olhou para a doutora que terminava os pontos e piscou para Noble.
— Vai demorar muito ainda, doutora? — a forma como ele cantarolou a última palavra fez com que Noble segurasse a risada. Allison não respondeu e ele se perguntou se ela também havia se acostumado com os modos tortos de Aaron. — Estava pensando em algo muito quente, doutora. Provavelmente ainda posso a segurar contra a parede em um sexo alucinante — a médica revirou os olhos quando terminou e o olhou com indiferença. — Eu sempre tive um fetiche com professoras, mas pensando bem agora… médicas também são um charme.
— Você me enjoa, Aaron.
— Então você já pensou em mim? — ele sorriu. — Confia em mim, linda, posso te fazer feliz.
— Vou ter é pesadelos com você! — Allison deu um tapinha no ombro dele e sorriu também. — Vaso ruim não quebra fácil. Você conhece as instruções e cuidados dos pontos de trás para frente, não é? — Aaron concordou. — Ótimo. Se cuida, Aaron, estou cansada de ver sua cara aqui.
Noble o olhou inquisitivamente enquanto Allison se afastava, esperando uma explicação. Aaron deu de ombros.
— Passei um tempo com Allison quando cheguei aqui, não estava muito bom da saúde, era muito relaxado antes. A idade fez com que eu me preocupasse mais com o meu… defeito.
Defeito.
Ele não gostava daquela palavra, não quando deveria se aplicar a Kaira também.
— E a tatuagem?
— É uma citação de um livro russo que com os anos se tornou um excelente provérbio — Aaron passou os dedos sobre as letras escuras e estranhas. — Um provérbio para quando uma pessoa se atreve a fazer algo de que tinha medo ou estava relutante em fazer há muito tempo. Sou uma criatura trêmula ou tenho o direito? Pode uma pessoa invadir a vida de outra, em nome da vitória sobre o mal do mundo e em prol da felicidade universal?
Soube naquele instante que ele falava de si próprio, talvez um peso na consciência pelo passado sombrio de sua família? Kaira contara tudo bem para Noble, deixando-o a par de toda a tragédia que parecia cercar sua família paterna.
Quando mais jovem, Aaron tivera que lidar com uma carga gigantesca, forte o bastante para traumatizar qualquer pessoa. Em vez disso, ele desconstruiu e compartimentou tudo à sua volta como uma forma de lidar com isso. Esse era um dos motivos pelos quais Noble tinha plena certeza de que ele internalizava as suas emoções. Seus antepassados eram péssimos, mostrando a ele as partes ruins da sociedade, o que o levou a buscar a própria salvação, assim poderia conhecer o mundo que só observava nos sonhos.
Aaron tinha demonstrado uma notável empatia, seria por causa do seu passado ou por sua incrível capacidade de observar e ouvir? Noble podia ver naquele momento que, embora parecidos, Aaron e Kaira eram muito diferentes. As pessoas confiam nele porque era uma constante imutável, enquanto ela era um desafio ambulante.
Não podia deixar de assemelhar a vida de Aaron com filmes de ação; a tatuagem na pele como um lembrete do que fizera.
Apesar de pensar na dor horrível que Aaron sentira ao compreender que seus parentes eram péssimas pessoas, Noble não sentira nenhuma empatia pelos mortos e se sentia bem por saber que todo o terror que começaram acabara com suas vidas.
Aaron olhava para ele como quem esperava uma resposta, mas Noble não tinha nada a dizer, não em relação aquilo.
Ergueu a mão e alcançou o ombro do homem, apertando-o.
— Obrigado de novo, Aaron — agradeceu. — Aquele tiro acabaria com a minha cabeça.
Ele pareceu sem graça por um segundo e então balançou os ombros, olhando para Noble com sinceridade.
— Como eu disse antes, você me deve uma — Aaron respirou fundo. — E você tem estado ao lado da minha filha pelo que parece um longo tempo, não quero que ela o perca.
Noble não esperava por aquilo, mas também não pode responder porque naquele exato momento seu pai entrava no quarto, carregando consigo o cheiro de Kaira, mas ela não estava junto quando entrou. Não teve tempo para dizer que estava tudo bem, não antes de seu pai verificar por si mesmo, tocando seu rosto e braços. O aperto forte em sua mandíbula o fez revirar os olhos e resmungar.
— Eu estou bem, pai! — ainda assim Valiant não o soltou. — Me solta, pai!
— Eu deveria te levar para casa e mantê-lo onde não posso o perder de vista!
Noble riu, entendendo as reclamações de sua mãe de como seu pai podia ser irritante quando queria.
— Você sabe que eu fugiria — brincou, mesmo que sobre o rugido do pai. — Não sou uma criança.
— Parece que alguém está em uma fase rebelde — Aaron comentou, chamando atenção de Valiant. Os dois trocaram um olhar rápido e Noble decidiu fazer uma apresentação.
— Este é o meu pai, mas você já deve ter notado — rosnou ao escapar do aperto do mais velho. — Ele é super protetor com a família e se chama Valiant. Pai, este é Aaron — apontou para o homem. — E ele salvou a minha vida hoje.
Aaron abriu um sorriso largo e Noble ficou tenso quando seu pai não retribuiu, na verdade ele pareceu dez vezes mais sério depois do que ouviu. Mas então o olhar dourado brilhou e seu pai sorriu de uma maneira que parecia até mesmo simpática, se aproximou de Aaron e apertou o ombro dele também.
— Obrigado pelo o que fez pelo meu filho.
Aaron jogou a cabeça para trás e gargalhou alto.
— Acho que virei o herói!
Kaira entrou no cômodo enquanto Aaron gargalhava e caminhou com passos largos até ele, fazendo com que o ritmo de seu coração aumentar. Ela capturou o rosto dele entre mãos assim que estava em sua frente. Virou as bochechas de um lado para o outro e depois verificou o resto do seu corpo, passando as mãos pelos braços fortes e peitoral. Quando finalmente ergueu os olhos, Noble a encarava com um meio sorriso.
— Pode continuar, se desejar.
Valiant cruzou os braços.
— Ela não o incomoda, não é?
Noble olhou para Valiant por cima da cabeça dela e piscou preguiçosamente.
— Nem um pouco.
— Você está bem? — Kaira perguntou, percorrendo os dedos por sua bochecha. Noble fechou os olhos e inclinou o rosto contra o toque suave, assentindo. — O que aconteceu com vocês? Forest e os outros estão bem? Soube do tiro!
— Todos vivos — Aaron respondeu. — Quase cem por cento inteiros.
Kaira encarou Aaron e acenou para ele, que retribuiu o gesto.
Segurou a mão dela e a puxou contra o peito, abraçando-a com força e enterrando o rosto em seu pescoço. Depois daquela longa noite tudo o que desejava era tê-la entre seus braços e poder beijá-la. Escorregou os lábios por toda a pele alva do pescoço dela até a bochecha, tocando seu nariz no de Kaira. Um carinho especial.
— Nós já voltamos!
Ela o puxou para fora do quarto, deixando Aaron e seu pai para trás, até entrarem no quarto à esquerda.
Kaira o empurrou até a maca, espalmando as mãos em seu peitoral.
— Você me deu um susto! — Noble sentiu a estrutura alta contra as costas e se sentou, puxando Kaira para o seu colo. — Pensei que estivesse machucado, pensei em tudo de ruim que pode acontecer, pensei que fosse perder você!
Kaira socou seu peito, fazendo com que ele risse.
— Eu falo sério!
Segurou os punhos de Kaira com facilidade, erguendo-os acima da cabeça dela e provocou.
— Eu quase morri hoje, mereço beijos e abraços, não socos!
— Aaron deveria ter deixado aquele tiro o atingir, cabeça dura como é a bala teria ricocheteado.
— Ou então você estaria chorando sobre o meu corpo morto agora.
Aqueles olhos azuis brilharam como se houvessem chamas refletindo sobre eles e Kaira retrucou com uma reposta divertida.
— Preciso mesmo de um motivo para praticar necromancia.
Noble passou a língua pelos lábios.
— Como o Necromante em Dol Guldur?
Kaira riu baixinho e passou os braços ao redor do pescoço dele, pressionando os seus lábios brevemente.
— Adoro quando você usa referências.
— Tem uma coisa que eu adoro e só você pode me dar...
Kaira avançou sobre ele, beijando-o.
Noble apertou o corpo contra ela e soltou seus quadris para enredar os dedos em seu cabelo enquanto aprofundava o beijo. Amava a sensação de tê-la tão próxima; o modo como os braços dela o apertava, os seios macios contra seu peito, o sorriso no meio do beijo. Noble queria Kaira mais do que jamais desejou qualquer coisa. Seu corpo doía e o desejo de se esfregar contra ela o tomou, queria estar dentro dela logo, tão intensamente que ronronou na necessidade. Suas mãos deixaram seus quadris e deslizaram para a bunda dela, apertando e pressionando seus corpos de forma mais eficaz.
— Me conte como tudo aconteceu — Kaira ofegou ao distanciar os lábios.
Noble escondeu o rosto contra seu pescoço e abriu a boca, ansioso para provar qualquer parte dela desde que parou de beijá-la. Ele a lambeu sob sua orelha e em seguida a agarrou com os dentes suavemente, sugando-a de leve. Não podia chegar perto o suficiente de Kaira com suas roupas, por isso a puxou e a sentou em sua frente na maca. Ele precisava sentir sua pele, sentir-se bem dentro dela. Uma imagem passou em sua cabeça, deixando-o ainda mais excitado. Conhecia bem a sensação de quando ficavam nus e quão bom era quando a fodia até o orgasmo.
Kaira o empurrou para trás novamente, subindo em suas pernas. Ela não foi muito paciente quando o ajudou a tirar o colete e a camisa, mas ele gostava do modo energético com o qual sua companheira beijava e mordia o seu pescoço.
— Nós pegamos um invasor hoje — os lábios dela escorregaram para o seu abdômen, a língua serpentendo sua pele e as mãos perigosamente próximas da calça. — Ele correu para a floresta — grunhiu quando Kaira apalpou seu pênis. — Esquece!
— Continua — ela o incentivou com um sorriso malicioso. — Vamos ver até onde você aguenta.
Kaira desabotoou a calça dele e colocou a mão quente e macia por dentro, tocando-o. Sua mente ficou em branco por um instante enquanto a observava, faminto pelo próximo toque, ávido para a sentir o envolver completamente. Ela ergueu os olhos azuis perante o seu silêncio.
— E então… ?
Noble respirou fundo.
— Ele tinha... Kaira! — os músculos das pernas dele ficaram tensos quando ela desceu mais até o rosto ficar acima da sua cintura. Ela olhou para o seu rosto uma ótima vez antes de o colocar na boca, justamente para vê-lo com olhos praticamente fechados e com seus dentes afiados afundando no lábio inferior.
Kaira levantou a cabeça logo que começou e lambeu os lábios para os umedecer, levantou uma mão e colocou os dedos ao redor do seu pênis, então o encarou com aquela maldita expressão provocativa.
— Você vai continuar ou devo parar?
Fêmea irritante, pensou, ela só está brincando comigo.
Ele engoliu com dificuldade e respirou um pouco mais depressa.
— Você é má.
— Só com você, baby.
Ela virou a cabeça um pouco quando a língua saiu para se arrastar pela extensão do seu pau. Noble deixou que um som estranho saísse dele. Kaira envolveu seu pênis com a boca ao tomar alguns centímetros e começar a lamber e a chupar enquanto apertava a base. Ela tomou mais dele e começou um ritmo constante e lento de subir e descer com carícias firmes, a língua esfregando seu comprimento. A cabeça de Noble estava jogada para trás, a boca fechada para impedir que aqueles ronronares grossos emergissem de sua garganta. Ele desceu a cabeça até os seus olhares se prenderem. Tinha um olhar selvagem, cheio de desejo e calor.
— Ele tinha uma tatuagem… — murmurou rouco quando consegui encontrar sua voz — na nuca.
Kaira o tirou da boca, embora continuasse o acariciando com as mãos. Não deu importância para a surpresa nos olhos azuis, apenas moveu a cintura contra o aperto, desejando se desfazer contra a pele dela.
— Que tipo de tatuagem?
— O símbolo… — agarrou a nuca dela com uma mão e a puxou, capturando os lábios avermelhados num beijo intenso, saboreando o próprio gosto na língua dela, tomando com avidez todo e qualquer fôlego que havia em seus pulmões enquanto as mãos bombeavam seu pau. Afastou-se, mas não muito, mantendo suas testas próximas e continuou a falar, praticamente ronronando. — O símbolo de Novas Espécies cortado ao meio.
O movimento parou e Noble rosnou, impaciente.
— Continue.
— E onde está esse cara?
— E daí? — resmungou. — Trey o levou, os outros vão lidar com ele, não é problema nosso. Não mais.
— É óbvio que é.
Ele soltou a nuca de Kaira e deslizou a mão por cima das dela, incentivando-a a continuar.
— O único problema que temos aqui é este — a encarou e piscou. — Me ajude a resolver.
Kaira o olhou com as sobrancelhas erguidas e sorriu como quem iria aprontar. Ele odiava aquele sorriso desde quando eram crianças, não significava coisa boa.
— Espera — rosnou quando ela se levantou e perguntou incrédulo. — Você não vai terminar o que começou?
Kaira o olhou sugestivamente.
— Você tem duas mãos, use-as.
🌡️
Aurora tinha acordado ela no meio da madrugada e Kaira abrira os olhos respondendo uma pergunta do curso de enfermagem. Estava tendo um pesadelo com a aula online, não era por menos, já que dormira sentada e com a cabeça sobre o livro aberto.
Estava perdida no tempo, mas acordou imediatamente ao ouvir a história da irmã, depois não demorou muito para se enfiar no carro e dirigir até o Centro Médico, apanhando Valiant no caminho.
Kaira correra na frente, sentindo-se frenética e desesperada para colocar os olhos em Noble e se certificar de que ele estava bem, no entanto parara na porta do quarto ao ouvir Aaron e Noble conversando. Ela queria entrar e abraçar seu melhor amigo e companheiro, mas se sentiu infinitamente estranha e feliz com as palavras do seu progenitor, o bastante para precisar pensar um pouco antes de os encontrar.
Ela nunca sabia o que dizer para Aaron, então apenas acenou com a cabeça ao vê-lo, como se fosse um costume deles, mas não era.
Arrastara Noble consigo na intenção de que ele contasse tudo o que acontecera para ela, claro, tudo além do tiro, mas, assim que ficaram sozinhos, tudo em que Kaira pensava era em o empurrar para trás e subir nele, beijá-lo e o abraçar.
E estava tudo indo a mil maravilhas até ele citar a tatuagem.
Kaira sabia bem a que tipo de grupo o invasor pertencia.
Havia pesquisado muito sobre eles, mesmo que fosse bem difícil os encontrar nas camadas mais rasas da Internet. Existia uma barreira que ela não podia atravessar, simplesmente porque não conhecia nada sobre o mundo sombrio da web; aquele que não podia ser acessados através de mecanismos de busca como o Google, Chrome, o Safari ou Edge.
Na parte escondida da internet nada era indexado, então não podia achar pela barra de pesquisa, era como se aquela parte não existisse para os navegadores comuns.
E, infelizmente, ela não sabia ou conhecia alguém que soubesse acessar tais informações, fora exatamente como bater de cara em uma parede, o que a deixara bem frustrada, então Kaira deu espaço ao tempo que passava pesquisando sobre grupos Anti-Espécies e possíveis perfis insanos para estudar enfermagem.
Pensou que, como não ouvira mais nada sobre tal grupo, poderia esquecer… ela tentou, mas agora um deles estava ali, pronto para ser interrogado.
Kaira queria vê-lo.
Ela saiu do Centro Médico ao deixar Noble para trás e encontrou Aurora. Sua irmã estava sentada na calçada, com os joelhos encolhidos contra o peito.
— Irmã?
— Oi, Kaira — os olhos bonitos estavam avermelhados e molhados. — O Aaron está bem?
— Vai sobreviver — passou os braços ao redor dela ao se ajoelhar. — Estava chorando por quê?
Aurora balançou a cabeça e olhou para frente, Kaira acompanhou o olhar dela e lá estava Salvation. Ele conversava com outro guarda.
— Aquele idiota te fez algo?
— Não! — ela fungou. — Eu só… estou cansada de viver com medo de que algo aconteça com ele ou com qualquer um de vocês por causa das pessoas do lado de fora. Quando o celular tocou durante a madrugada parecia que meu coração ia sair pela garganta, estou sempre esperando o pior.
— Nós vamos ficar bem, querida — beijou-a. — Nada vai acontecer, eu prometo.
— Não prometa algo que não pode cumprir, Kaira, você não pode proteger todos.
Olhou para o amigo a distância e depois para ela, então sorriu.
— Quem disse que não?
Aurora a olhou exatamente como Noble fizera antes, com um par de olhos desconfiados e estreitos, como se esperasse uma grande bobagem vinda dela.
Quem era ela para os julgar? Estava realmente com vontade de fazer uma besteira.
— Fique com Salvation — disse ao se levantar. — Eu já volto e então vamos para casa.
— Não demora!
Kaira correu até o prédio onde sabia que o prisioneiro estaria, pois era nele onde ficavam as celas de interrogatório e também onde a Força Tarefa passava a maior parte do tempo. Deu a volta no edifício e por um tempo ficou parada no lado esquerdo, escondida atrás do tronco de uma árvore em meio a escuridão, apenas observando a porta lateral e menos usada para circulação.
Não queria dar de cara com Trey — ou pior — Tim Oberto quando entrasse, ele com certeza a colocaria para fora como um cachorro de rua.
Observou quando dois soldados entraram pela porta da frente e pegou o celular, olhando as horas e pensando em quantos minutos eles demorariam para cruzar todo o corredor central do prédio e descer a escadas à direita, justamente a que ela usaria para chegar as salas de interrogatório.
Talvez eles usem o elevado, pensou, assim eu posso ir atrás, usar as escadas, chegar apenas alguns instantes depois e pelas costas.
Kaira enfiou o celular no bolso e correu até a porta lateral, puxou-a de uma vez e entrou. O quartinho com cadeiras e pequenos armários de metal estava vazio, mas os gabinetes de casaco estavam ocupados por trajes como os dos guardas da Força Tarefa.
Saiu imediatamente da salinha, infiltrando-se no corredor e seguindo reto, até a escada à direita. Desceu os degraus lentamente, fazendo o mínimo de barulho possível, esperando que assim pudesse ouvir se alguém estivesse na frente ou atrás. Quando estava no nível das salas de interrogatório, Kaira puxou o celular de novo, verificando a hora.
Aqueles dois guardas já deveriam estar ali e, com esse pensamento, empurrou a porta bem devagar. Muitas alterações foram feitas no nível subterrâneo daquele prédio nos últimos anos. As duas celas com vidros de interrogatório no final da enorme sala eram novas, áudio e visual sendo controlados pela salinha que havia na esquerda.
Outras celas, de grades redondas, como as de uma prisão, só que maiores e mais fortes, espalhavam-se pelas laterais, duas de cada lado, o que somava quatro no total.
Novas Espécies poderiam ficar presos ali também, caso estivessem desequilibrados e extremamente agressivos. Já acontecera anos atrás.
Uma mesa quadrada estava no meio do caminho, com uma bolsa grande e preta em cima, assim como um notebook e outros aparelhos eletrônicos que ela não fazia ideia de qual era a serventia.
Olhou para a frente, diretamente para a sala de paredes de concreto cinza e ocupada; pode ver o homem sentado e preso a cadeira, próximo daquele dreno no chão. A função daquele simples dreno a fazia desejar vomitar. Havia um gancho na parte superior da parede, uma mesa de metal e outras duas cadeiras do outro lado, onde estavam Darkness — enorme e intimidante —, com seu cabelo escuro e pele quase negra e Snow, com quem fazia um contraste quase perfeito, levando em consideração o cabelo claro e olhos azuis do outro Nova Espécie.
— Você não está mais dentro dos Estados Unidos, então responda logo a pergunta do meu amigo ou você perceberá o quanto as leis de interrogatório do seu país não valem nada aqui — Snow tinha uma arrogância natural em sua expressão, a qual se acentuava quando falava de forma tão rude. — Nos dê um endereço e não faremos da sua vida um inferno.
Darkness comentou por cima, de braços cruzados e igualmente sério:
— Não completamente…
O homem careca estava com o rosto machucado e com uma mancha de sangue no ombro.
— Vá a merda, seu animal — ele cuspiu a ofensa. — Estou dizendo que estava perdido.
— Perdido com o seu amigo na floresta e caçando o nosso povo? — Snow rosnou, capturando o homem pelas braços e apertando o ferimento dele. — Claro que estava.
— Tira as mãos de mim, seu filho da puta esquisito!
— Como você conseguiu entrar aqui? Como entrou em Homeland? Quem está ajudando vocês?
— Do que você está falando? Eu não sei de nada disso!
Kaira estreitou os olhos, podia ver que ele estava mentindo, qualquer um percebia que não falava a verdade. Ela olhou para a outra sala, esperando ver o amigo que Snow citara, mas não havia ninguém.
Um baque a fez pular para trás e se escolher, estava muito bem escondida atrás das grades.
Darkness segurava o homem agora e o acertara em cheio com um soco. Ela quase podia medir o tamanho da dor que ele deveria estar sentindo, mas não tinha dó. Levaram dois dos deles e teriam levado Forest se não estivessem justamente esperando por aquilo.
— Não vai dizer o que queremos ouvir?
— Eu já disse — ele voltou a cuspir, mas sangue desta vez. — Vai se foder, monstro.
Darkness rosnou e os socos agressivos que se seguiram a fizeram desviar o olhar para a mesa. Alguns passos e poderia bisbilhotar aqueles aparelhos. Ergueu os olhos para as costas de Trey e Tim, além dos outros que estavam também observando os Espécies trabalharem.
Ainda bem que eles estavam dentro da sala e não podiam sentir o cheiro dela.
Kaira foi até a mesa e, levemente, pegou um aparelho quadrado e escuro. Parecia um rádio de comunicação, no entanto era menor e não era realmente um rádio. Observou, curiosa, o brilho vermelho da bolinha na lateral dele.
Havia outros dois iguais a ele, todos com as bolinhas vermelhas e por fim, o notebook.
Deu uma breve olhada nos outros e abriu a tela, tudo para encontrar a coisa mais complexa em que colocou os olhos até então.
Códigos.
Infinitos códigos, em letras, números e caracteres verdes em uma tela preta.
Ela revirou os olhos, sentindo aquela frustração de antes, exatamente quando não conseguira acessar a parte escondida da web.
Aaron com certeza seria quem faria aquilo, estaria fazendo se não estivesse machucado e no hospital e…
Aaron!
Kaira fechou o notebook lentamente e sorriu.
Como não pensara em Aaron antes? Ele era o único que poderia ensinar tudo o que ela queria. Devia isso a ela, pelo menos era como Kaira julgava.
Merecia algo dele e queria aquele conhecimento.
Foi pensando nisto que ela deixou o prédio e correu de volta para sua irmã.
🌡️
Enquanto Kaira passava os dias tentando encontrar uma forma de abordar Aaron sem ser invasiva demais ou até mesmo demonstrar o motivo de querer aprender com ele, seus amigos se recuperavam do ataque.
Salvation estava bem, podia dizer que ele continuava exatamente o mesmo. Noble se distanciara o máximo que dava do portão leste e não gostava de tocar no assunto, apesar dela querer insistir em ouvir mais. Forest, apesar de ser o único desmaido pelo tranquilizante, não fizera muito caso do evento…. já de Kismet ela não podia dizer o mesmo.
— Ele está bem?
Perguntou enquanto observava Kismet socar o saco de areia sem parar, não duvidava nada de que ele seria capaz de abrir um buraco nele. Noble virou a cabeça para o amigo e apertou os lábios. Ela não gostava nada da expressão de derrota no rosto dele, principalmente quando o dourado em seus olhos parecia menos brilhante do que antes.
— Não.
— Qual é — Kaira revirou os olhos. — Ele matou para proteger você. Não pode ter sido tão ruim assim.
— Você não entende mesmo, não é?
— Não — cruzou os braços. — Ele poderia conversar conosco sobre o que aconteceu, não adianta ficar guardado tudo para si próprio e esperar que algum de nós adivinhe. Não tenho uma bola de cristal.
— É fácil para você dizer isso, não é? — Kaira apertou os olhos quando Noble rosnou. — Me admira que o faço com tanta facilidade quando você mesma esconde algo.
Ela bufou.
— Eu só estou dizendo a verdade, Noble.
— Você é muito inteligente para umas coisas e extremamente burra para outras, como para quando seus amigos precisam de você — Noble falava sério e baixo, encarando-a com tanta intensidade que Kaira sentiu um arrepio na nuca. — Kismet estava lá quando você precisou de um abraço, sendo que o seu problema não chegava a tomar a metade de proporção do dele e agora o chama de idiota?
Não esperava aquela defesa a Kismet, não de Noble para ela. Um soco dele deveria doer menos do que aquilo.
Mas no fundo sabia que não deveria estar tão surpresa. Noble defendia os seus com garras e dentes, como fizera com ela mesma no passado, com Forest na outra noite e agora com Kismet.
A lealdade dele para com os amigos era incrível e pensando nisso, mas também pensando que não poderia dar para trás, que ela respondeu.
— Em primeiro lugar: eu não sou burra — ergueu um dedo e depois outro. — Em segundo lugar: eu não o chamei de idiota, então não coloque palavras na minha boca!
— Kair—
Ela o interrompeu.
— E em terceiro lugar: eu nunca me esquecerei do que ele fez por mim, não sou ingrata, talvez orgulhosa, mas eu sei quem está ao meu lado e quem não está — Kaira se inclinou na ponta dos pés e pressionou os lábios na bochecha de Noble. — Agora eu vou ir falar com ele, com licença.
Noble agarrou o braço dela antes de pudesse se distanciar muito. De alguma forma ele parecia envergonhado, pois as bochechas estavam levemente vermelhas, coisa que ela não observava nele há um bom tempo.
— Me desculpa.
— Tudo bem — ela revirou os olhos. — Ele é seu melhor amigo. Eu entendo.
— E você é minha melhor amiga.
— Errado — Noble a olhou com curiosidade e Kaira se gabou. — Eu sou o amor da sua vida.
Ela se afastou ouvindo a risada dele. No caminho até Kismet, Kaira apanhou uma toalha e uma garrafa de água, imaginando que o amigo precisaria dos dois.
— Ei, idiota — jogou a garrafa para ele quando o mesmo se virou e Kismet a pegou por puro reflexo. — Escala comigo.
— Não estou afim.
A ligeira tensão nos ombros dele e os olhos azuis escuros, distantes e estranhamente sérios; sem aquela características diversão e cinismo, a deixou a par de que estava realmente zangado. Se consigo próprio ou com o morto, ela não sabia, mas estava disposta a descobrir.
Kaira entendia melhor do que ninguém que era muito mais fácil se abrir com alguém que detestava do que com um amigo próximo.
Talvez fosse isto que mantinha ela e Kismet próximos e ao mesmo tempo distantes.
Ela sabia que poderia contar com ele se precisasse e Kismet podia esperar o mesmo de Kaira.
— Eu não estou pedindo, estou ordenando — ele estreitou os olhos, irritado. — Vai negar o meu desafio?
— Humpf, eu não vou perder.
Aquele era o modo como ele dizia que iria de qualquer forma, mas que era orgulhoso demais para aceitar de primeira. Admitia para si própria que ela também era daquele jeito.
— Então vamos lá!
Kaira subiu na frente dele, escalando como nas últimas vezes, mas se sentindo infinitamente mais forte. Os treinos a ajudaram bastante, deixando seus músculos fortalecidos.
Ela olhou para o lado e tirou o cabelo que começava a grudar na testa.
— Noble está preocupado com você.
— Eu sei... — ela jamais ouvira a voz dele tão gélida.
— Tá, e o que você vai fazer?
Kismet olhou de volta para ela, o olhar afiado como uma espada.
— Se eu soubesse já teria resolvido, você não acha?
— Se eu estou perguntando é porque não sei, babaca.
Ele fez menção de subir mais e mais, levando Kaira a pensar que aquilo era realmente uma competição e que se Kismet terminasse muito rápido não teria tempo para chegar onde queria, por esse motivo ela esticou a mão e tocou a bochecha dele.
Kismet se encolheu sobre o toque dela, como se fosse o próprio fogo tocando sua pele e a olhou com estranheza.
— Converse comigo — sua voz saiu suave. — Não por mim, mas por Noble. Acredite quando digo que estou fazendo isto mais por ele do que por você.
Aquilo também era o modo orgulhoso dela de ocultar que estava mesmo preocupada com ele.
— O que quer que eu diga, Kaira?
— A verdade.
— A verdade… — a mão de Kismet cobriu a sua e polegar dele acariciou sua pele num carinho leve, ainda com os olhos cravados em seu rosto. — Eu não queria ter matado aquele homem e agora não consigo parar de pensar nele… em todo aquele sangue e carne. Na vida dele se esvaindo em minhas mãos. Nós treinamos a vida toda para proteger os nossos, eu sabia que matar estava no contrato, mas não pensava que um dia chegaria a tal ponto. Não sou meu pai ou como qualquer um dos outros que cresceu dentro de uma jaula, odiando os humanos. Minha mãe é uma mulher incrível e meu avô também. Eu odeio que queiram nos machucar, mas o meu ódio não vai a tal nível, não o de desejar matar todos. Não sei nem mesmo se é ódio ou apenas uma reação natural que eu aprendi a ter, simplesmente porque minha família me ensinou a ser assim.
— Kismet…
— Só tenho certeza de que agora eu tenho motivos para odiar de verdade. Eu vi a morte naquele homem, vi que ele poderia ter matado meu melhor amigo e reagi. Fico pensando que fiz a coisa certa, enquanto outra parte da minha consciência faz com que eu me sinta um monstro — ele fechou os olhos quando Kaira correu os dedos pela bochecha dele, arrastando o cabelo negro para trás. — Nunca pensei em como seria matar alguém e em como me sentiria depois, parecia uma realidade tão distante e que agora faz parte da minha vida. Só consigo pensar que aquele homem poderia ser o pai de alguém e que agora uma garotinha está chorando em casa porque ele não voltou.
— Você fez o que tinha que fazer, Kismet.
— Eu vomitei e chorei quando fiquei sozinho, enquanto pensava que o faria de novo para proteger qualquer um de vocês.
Kaira tocou a nuca dele e se arrastou para o lado dele, tomando cuidado para não cair. Abraçou totalmente o pescoço do amigo e fechou os olhos, encostando suas testas.
— Sei que você vai fazer o certo, sempre… — murmurou. — Noble está preocupado, todos estão. Você só precisa de um tempo de tudo isso, eu acho, e também de umas bebidas geladas e um pouco de diversão, o que me diz?
Ele soltou um risinho, deixando a situação mais descontraída.
— Está me chamando para um encontro?
— Eu sei que você sempre quis sair comigo — ela brincou, fitando os olhos azuis escuros com as sobrancelhas erguidas. — Tá aí a sua chance.
Kismet olhou para baixo e bufou, agarrando a cintura dela.
— Vamos sair daqui.
🌡️
Departamento de criptografia
Somente pessoal autorizado
Kaira, com sucesso, ignorou o aviso e abriu a porta, tudo para encontrar um Nova Espécie lá dentro. O guarda armado olhou para ela.
— Boa tarde, senhorita.
Ela sorriu, apertando levemente a alça do mochila em seus ombros.
— Oi, Warden, certo?
Warden abriu um sorriso de dentes afiados e assentiu.
— Não esperava vê-la aqui.
— Nem eu — ela se aproximou dele, ainda sorrindo e disse. — Mas o meu pai — a palavra estagnou por um segundo em sua garganta — está aqui e eu quero muito vê-lo. Você sabe, ele está machucado e quero ajudar.
Kaira gesticulou, esticando a mão direita e a apoiando no ombro do Espécie. Ele era primata, com o rosto quase normal e grandes e expressivos olhos castanhos.
Sentiu-se má por um segundo, sabendo que ele seria mais gentil e atencioso do que os outros Espécies.
— Não sei… — ele mudou o peso das pernas e a olhou com dúvida. — Só pessoal autorizado entra ai.
— Fica tranquilo, eu já estive aqui antes, os outros guardas, Sledge e Jackal, estão acostumados comigo.
Era uma mentira, claro.
Estivera observando o departamento de criptografia a semana inteira e sabia que não eram todos os dias que Warden ficava de guarda, usaria isto ao seu favor, assim como faria com os outros.
Jogaria com o que tinha e não era muito no momento, mas deveria ser o suficiente.
Ele e nem ninguém tinham motivos para duvidar dela.
— Certo, pode entrar então, senhorita.
— Obrigada, Warden! — apertou o braço dele. — Tenha um ótimo dia!
O guarda observou Kaira enquanto ela seguiu em frente, andando
pelo corredor. Quando chegou ao final, uma porta circular bloqueava sua passagem. Havia uma placa com letras grandes que dizia: CRIPTOGRAFIA.
Com um suspiro irritado, colocou a mão sobre o teclado numérico embutido na parede, mas não discou nada. Ergueu os olhos para o teto, procurando por uma câmera e, quando a encontrou, apontou para a porta e depois para si mesma.
Tomara que fosse Aaron olhando.
A porta fez um barulho agudo, como um clec e girou, surpreendendo-a até abrir completamente. Parecia que estava prestes a entrar em um cofre. O bafo gélido do interior e a luz baixa a fizeram se encolher, pensando em tudo o que poderia acontecer depois de colocar seus pés para dentro.
Antes de ir até ali, Kaira pesquisara bastante sobre o trabalho de Aaron, dando-se conta que a doutrina de sua fundação, descrita em cinco páginas extensas de Word, especificava um objetivo muito bem definido: proteger as comunicações do governo dos Novas Espécies e interceptar as comunicações de forças estrangeiras.
O teto daquele prédio de operações da ONE estava repleto de antenas, incluindo dois grandes domos de captação de radiofrequências — havia descoberto o nome das placas há pouco tempo. O prédio em si era gigantesco, o dobro do tamanho do centro de operações onde Kaira estava acostumada a encontrar os homens da Força Tarefa.
Ela entrou naquela sala, observando primeiro as janelas lacradas e os vários cabos escuros e coloridos por todos os lados, nas paredes, no chão e no teto, tecendo padrões brilhantes por todo o cômodo. O chão era totalmente escuro e brilhante. Parecia um diamante negro, onde sua imagem refletia, mesmo que embaçada.
Havia mesas e computadores por toda as laterais da sala, todos com telas ligadas; algumas transmitindo imagens de Homeland, Reserva e Zona Selvagem, mais além, ela podia ver as ruas que cercavam todos os muros e até mesmo uma parte da cidade ali perto; outros computadores geravam códigos desconhecidos, em linguagens de sistema que ela ansiava conhecer.
E, no centro, estava a maior mesa de todas e com o maior computador em que ela já colocara os olhos. Parecia uma máquina antiga e incrível. Kaira podia imaginar quantos segredos não estavam escondidos dentro daquela porção de peças.
Atrás da máquina estava Aaron, o qual parecia se acomodar muito bem no meio de toda aquela parafernalha.
O cabelo castanho estava molhado e ele usava uma toalha ao redor do pescoço, não estava de camisa nem sapatos, apenas utilizava uma calça folgada e meias.
Estranho.
— É assim que você trabalha?
— Sim — Aaron girou na cadeira enorme, com seus olhos castanhos cintilando em curiosidade e algo a mais. Kaira não sabia o que era. — Nenhuma gatinha vem me visitar, pelo menos não até hoje.
Kaira se aproximou, dando a volta na mesa.
— Como está o seu machucado?
Aaron soltou um riso.
— Veio aqui para verificar meus pontos, querida?
— Não — ela colocou a mochila em cima da mesa, abriu e tirou um copo grande de dentro. — Você gosta de chocolate, certo?
— Quem não gosta?
— Acredite quando digo que os dez dedos das minhas mãos não são o suficiente para enumerar todos aqueles que odeiam — brincou e estendeu a batida para Aaron. — Trouxe para você.
— Por quê?
— Por que o quê?
Aaron pegou a bebida da mão dela, mas não bebeu.
— Por que trouxe isto e por que está aqui? Como o guarda deixou você entrar?
— Okay, uma resposta por outra!
Kaira se inclinou na mesa, pegando aquele objeto que se parecia com um rádio, mas que na verdade não era.
— O que é essa coisa?
Aaron tomou um gole do milkshake e a olhou com estranheza.
— São aparelhos de interferência — aquilo não era o suficiente e aparentemente Aaron percebeu. — Eles geram uma frequência alta o suficiente para quebrar ou atrapalhar completamente conexões internas e externas. Foi por causa desses três radinhos e um código de invasão que conseguiram barrar minha conexão e entrarem nas minhas câmeras e comunicações.
Ele bufou, pegando o rádio das mãos dela e o jogando de lado.
— É uma arma nas mãos de quem sabe usar, mas, honestamente, parece o serviço de um preguiçoso.
— Por quê?
— A graça da programação está no desafio e, seja lá quem for que esteja fazendo essas coisas, fez na surdina, sem me desafiar frente à frente.
Kaira não entendeu.
— Como frente à frente?
Aaron deixou a bebida de lado e digitou algo bem rápido no seu computador, o que abriu uma pequena interface no lado esquerdo da tela, que também gerava códigos verdes em um fundo preto.
— Estou falando de uma guerra de códigos, é como um jogo e sou muito bom nele — ele sorriu orgulhoso. — Eu nunca perderia, o que me faz pensar que o inimigo me conhece. Talvez até melhor do que a ONE. O homem que pegamos, claro, aquele que sobreviveu, citou que existe alguém aqui dentro, um espião. Eu quero a cabeça dessa pessoa e vou conseguir.
— Trouxe a bebida porque achei que gostaria e estou aqui porquê também gosto de jogar — acentuou a última palavra e Aaron estreitou os olhos, pegando a jogada dela no ar. Ele entendera, até porque ela estava usando a analogia dele. — Eu menti para o guarda e ele me deixou passar, foi bem fácil, na verdade. Um sorriso e um toque, primatas são tão simples.
Três resposta por três respostas, achou bem justo.
— Não tem por que você aprender programação, não vai usá-la.
Kaira balançou os ombros e puxou uma cadeira, sentando-se e cruzando as pernas.
— Como eu disse antes — sorriu atrevida. — Gosto de jogar.
— É um jogo perigoso, Kaira.
— Você está com medo? — perguntou, sua voz soando irônica. — Porque eu não estou.
— Mas deveria estar, garota.
Ela revirou os olhos.
— Comece a ser um pai útil e me ensine alguma coisa, Aaron.
Demorou alguns semanas até que, de fato, Aaron começasse a ensinar algo à ela. Na verdade, ele lhe deu livros de programação simples, dizendo que ela deveria começar do básico, que dominar o pilar principal e primário era o essencial para a inovação.
Kaira seguiu aquelas regras e o seu quarto, o qual já estava cheio de livros de ciências e fantasias, recebeu mais e mais livros de exatas; linguagens de programação, matemática, lógica.
Dormia e acordava em cima de livros, às vezes respondendo perguntas dos professores de seus sonhos.
Além de aprender as linguagens para o software, Aaron insistia para que ela também soubesse tudo sobre o hardware e em pouco tempo ela sabia montar e desmontar um computador de olhos fechados.
Por algum motivo seu quarto também estava cheio de peças agora.
Mudara totalmente sua rotina, largando os treinos da manhã para estudar enfermagem e trabalhar, almoçava no laboratório com Aaron e passava toda a tarde com ele, na maior parte do tempo discutindo sobre informática e em pequenos instantes conversando sobre a vida dele.
— Então você quase ficou cego?
Ela escondeu um riso com a mão quando Aaron a encarou.
— Era um garoto idiota com uma arma na mão, eu não pensava que o recuo poderia fazer aquilo. Ainda bem que não fiquei com uma cicatriz — ele riu. — Ou esse rostinho aqui não faria sucesso com as moças.
Kaira segurou ainda mais a risada.
— Imagino que sim, porque assim que você abre a boca da para perceber que é um idiota.
Aaron gargalhou, com as bochechas vermelhas.
— Admito que discutir morfologia, linguística e geradores de 10
números pseudo-aleatórios nunca atraiu as mulheres.
— Eu gosto disso.
Aaron tombou o rosto, encarando-a com diversão.
— Devo ensinar uma coisa ou outra ao Noble então.
— Eu apoio!
Eles passaram mais um tempo em silêncio, cada um trabalhando em seus códigos, quando Aaron começou a rir sozinho, atraindo a atenção dela.
— O que foi?
— Estava me lembrando que certa vez escrevi uma carta de amor criptografada, acho que foi por isto que a garota nunca me deu confiança — ele olhou de modo sonhador para a tela. — Estava tão apaixonado, pena que ela nunca me entendeu.
— Devo agradecer por não ter usado essa técnica contra a minha mãe.
— Por quê?
— Porque se fosse assim eu nunca teria nascido!
— Às vezes dá certo — ele revirou os olhos. — Uma vez e meia entre cada dez vezes.
— Só se você estiver flertando em uma feira de ciências, né!
Passar o tempo com Aaron era mais divertido do que ela poderia ter imaginado, ele falava com tanta paixão sobre as coisas que gostava que Kaira se sentia inspirada. O humor dinâmico dele também a influenciava, Aaron sabia bem quando usar ironia e quando não, e ela o achava incrível por isso. Começaram a andar juntos até quando não estavam estudando, com passeios pelas ruas da Reserva e Zona Selvagem, onde ele lhe mostrava os pontos essenciais de informação; câmeras e caixas de registro, onde tudo estava guardado.
Ela nunca ria tanto com alguém quanto com ele. Aaron tinha a capacidade de fazer tudo parecer engraçado.
Conhecera a casa dele e brincou que ele era um psicopata, simplesmente porque conseguia manter o ambiente limpo e aberto, mesmo que com estantes cheias de livros e materiais eletrônicos. Nesse mesmo dia descobrira que Aaron pintava.
Quadros brilhantes, vibrantes, tão expressivos quanto eram os olhos dele.
— Elas são incríveis…
Ele pareceu verdadeiramente encabulado com o seu comentário sobre as pinturas.
— Sinceramente? — Aaron suspirou. — São uma válvula de escape, uma limpeza espiritual. Não ligava muito para essas coisas, mas depois de um tempo, com a idade, percebi que precisava gostar de outras coisas além de beber, fumar, jogar e programar.
— Aqueles livros de fantasia na sala me dizem outra coisa.
Aaron sorriu.
— Tolkien não é uma diversão — ele sorriu como quem entendia de muita coisa. — É como um trabalho.
— Tá, tá, super gênio.
E ele era mesmo muito inteligente, falava mandarim, russo, alemão e ainda arriscava no espanhol e português.
Não demorou muito para Kaira perceber que queria ser alguém como ele; capaz de fazer algo incrível, mesmo que fosse difícil.
🌡️
Kaira estava encostada no pilar do telhado, observando como Leon e Luck interagiam. O filhote de Jericho gostava de subir nas árvores e puxar o rabo de Leon, levando seu irmãozinho a loucura bem rápido e a expressão emburrada dele se transformava em uma carranca irritada.
Ela adorava.
Mas ele estava muito mais esperto e forte, ágil como os outros eram. Leon gostava de brincar com ela em casa, aproximando-se por trás e a assustado com abraços de leão.
A cabeça dele batia em seu peito agora e Leon prometia ficar tão grande quanto os adultos que ela conhecia. Ela estava com dezenove anos, Leon com onze.
— Noble pode te ensinar também.
O nome do parceiro chamou sua atenção, que estreitou os olhos.
— O que tem o Noble?
Leon se voltou para ela.
— Ele pode ensinar Luck a caçar também, é tão legal! Noble é o melhor!
Já fazia um tempo que ela não entrava na floresta com Noble e, quando o fizera, não fora para brincar de caçar… ou talvez fosse, porque o companheiro — com um sorriso malicioso — deixara explícito que ela era o jantar.
Na verdade ela tinha gostava bastante daquilo e do que fizeram depois.
— Desde quando vocês são tão amiguinhos assim?
Luck ficou de ponta cabeça no galho e disse:
— Os dois estão juntos o tempo inteiro, Kaira!
— Mesmo? — ela coçou os olhos, um pouco sonolenta. — Bom, eu vou subir, não vão para longe ou serão vocês dois as presas de caça.
Ela dormiu a tarde toda no sábado e acordou apenas com o celular tocando. Derrubou uma pilha de livros no chão quando esticou o braço para pegar o aparelho.
— Merda! — resmungou e atendeu sem ver quem era. — Manda o papo.
— Kaira… — a voz do outro lado estava miúda e chorosa. — A minha avó não está muito bem.
Ela sentiu o coração apertado no peito.
— Tô indo para ai agora, Layla!
🌡️
Dormir a tarde inteira a ajudara a ficar a noite toda ao lado de Layla no leito de sua avó, velando o sono da senhora que, depois de alguns remédios, respirava e dormia tranquilamente.
— Ela vai ficar bem, Layla.
Alisou as costas da amiga e sorriu.
— Quer um café? — ofereceu e Layla acenou. — Vou ir pegar para você então, já volto.
Kaira estava enchendo os copos de café e pensando em como o estado da senhora mudara repentinamente. Ela estava tão bem e, de repente, tão mal. O câncer dela era detestável, mas era uma senhora tão forte e corajosa que Kaira não queria vê-la morta.
Havia uma força incrível naquela mulher.
— Kaira.
Ela virou o rosto para a voz conhecida e sorriu.
— Boa noite, Heaven.
— Mudou seu turno?
Ele usava a roupa escura de guarda naquele momento.
— Não, estou aqui porquê a avó da minha amiga não está em uma boa noite.
— Entendi — Heaven também pegou um copo de café. — Um guarda humano se machucou em uma grade e se cortou, então eu o acompanhei até aqui.
— Ele está bem?
— Sim, a doutora cuidou dele.
— Que bom — ela sorriu. — Bem, eu vou lá, bom trabalho.
— Espera! — Heaven a chamou quando estava um tanto longe. — Seu celular!
Ela voltou e pegou o aparelho.
— Só não esqueço a cabeça porque está grudada no pescoço! Valeu, Heaven!
Kaira voltou sorridente para o quarto, no entanto, quando entrou, encontrou uma péssima cena. Layla estava debruçada na cama, chorando algo e chamando pela avó.
— Vovó, por favor, por favor — ela implorou. — Não me deixe sozinha, por favor!
Kaira correu para o lado da cama e o som contínuo do aparelho que indicava os batimentos estava zerado, a linha reta e infinita, uma imagem da morte. Sentiu os próprios olhos cheios de lágrimas, triste pela morte e pelo pranto de sua amiga.
— Layla… — tocou as costas dela, abraçando-a. — Calma…
— Não, não! Ela não pode morrer, faça alguma coisa, a traga de volta!
Kaira negou com a cabeça. Ela não podia, ninguém podia. A senhora havia assinado um contrato de não ressuscitação.
— Kaira! — Layla segurou seus braços. — Faça algo!
— Eu… — ela não sabia o que dizer. — Eu não posso fazer nada, Layla, sua avó disse que não queria.
Os médicos a deixaram a par do que poderia acontecer e todo o procedimento para trazê-la de volta a vida casa tivesse uma parada cardíaca, os riscos que correria. A senhora negara de imediato a ajuda.
— Ela não pode fazer isso comigo!
Layla a agarrou com força e Kaira segurou a respiração, tensa. Sua amiga chorava mais e mais, e ela apenas esticou a mão para desligar o monitor da máquina e parar com aquele som.
— Sinto muito, Layla — abraçou-a de volta. — Sinto muito.
🌡️
Kaira odiava o clima de morte.
Aquele silêncio prolongado, junto do cheiro de hospital, mas também era naquele instante que se sentia mais viva e propensa a ajudar seus amigos e familiares.
Era estranho que a morte pudesse lhe proporcionar a sensação de tristeza e renovação ao mesmo tempo.
Depois do enterro de sua avó, Layla arrumara suas malas como se aquele lugar não servisse mais para ela. Como se fosse uma bruxa fugindo da fogueira.
O cabelo de Layla, sempre deslumbrante e lindo com seus cachos negros, estava agora preso para trás e o rosto expressava todo o seu cansaço e solidão.
— Você vai mesmo embora?
— Sim.
Kaira não queria acreditar que aquilo estava acontecendo. Certamente ela era uma amiga horrível, porque não conseguia nem fazer com que Layla ficasse mais um pouco.
— Para aonde?
Layla deu de ombros.
— Para qualquer lugar que eu possa chamar de lar.
— Fica…
Ela balançou a cabeça em negativa.
— Esse é o seu povo, não meu.
Kaira assentiu, mesmo que triste por perder sua primeira e única amiga.
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