Sob a mira
Cinco anos depois
Kaira correu pela chuva e vento, forçando seu corpo sempre para frente e sem parar. Não podia estagnar, tinha certeza de que se o fizesse seria levada pela força do ar, cujo barulho estrondoso nem ao menos a deixava ouvir as ordens de Trey enquanto descia do veículo utilitário.
Seguia apenas o par de coturnos escuros de Noble em sua frente, salpicando água para todos os lados conforme pisava nas poças, incapaz de erguer a cabeça e enfrentar a tempestade que assolava o Sul da Califórnia há dias.
O vento rugiu e a chuva forte pareceu ficar ainda pior, cada pingo em seu rosto se assemelhava aos açoites de um chicote, mas aqueles riscos escuros em frente aos seus olhos eram apenas os fios de seu cabelo, uma desordem castanha e molhada.
De repente, Noble pulou para frente e braços fortes a seguraram por trás, sabia que era Aaron porque ele estava atrás dela na fila, ele a ergueu do chão e a passou para outros braços.
— Peguei! — Noble disse em voz alta e por algum motivo pressionou a cabeça dela para o chão, ela apenas deixou que ele a levasse como uma boneca.
Ele a deixou no chão depois e Kaira suspirou, sentindo-se aliviada por poder ouvir e enxergar melhor.
— Que inferno está lá fora — resmungou e olhou a entrada deles. A garagem do fundo da construção, um nível acima do terreno e com a porta de aço praticamente fechada. Deixaram apenas um vão estreito para quem estivesse do lado de fora pudesse entrar. Nunca acharia aquela entrada sozinha, não no meio daquela ventania. — Por que não entramos pela porta da frente?
— Estão lacradas pelo lado de dentro, ninguém sai e ninguém entra, ao não ser por aqui — Trey explicou. — O armazém não vai abrigar mais pessoas, já está super lotado, os outros vão ser mandados para os edifícios vizinhos.
Ela entendeu.
Noble apoiou a mão em sua costas e eles seguiram em frente, todos em silêncio e conforme entravam nos níveis inferiores do prédio, no primeiro andar, Kaira pode ver as pessoas esparramadas pelo chão e algumas em macas brancas; mães apoiando suas crianças, pais com filhos nos braços, soldados e médicos andando para todos os lados, civis solitários ajudando na distribuição de cobertores e bebidas quentes.
Trey e Aaron tomaram um caminho à direita, deixando os grandes pacotes que carregavam no chão e cada um partiu para um lado. Trey se juntou a um grupo de pessoas e Aaron seguiu reto pelo armazém de teto alto e grandes janelas, subiu os degraus da escada amarela e entrou no mezanino metálico e praticamente todo fechado, cuja vista dava para o interior da construção. Ela apostava uma bebida quente que os computadores estavam lá.
Kaira juntou um monte de cabelo e amarrou para trás, ignorando o modo como estavam molhados, não muito diferente do uniforme azul que estava usando.
— Forest está aqui? — virou a cabeça e perguntou a Noble. Sabia que o Nova Espécie deveria estar ali, mas até então não vira o amigo. Salvation estava em outro prédio com Tim, ele viera no dia anterior, quando as coisas estavam piores e Justice mandou ajuda imediatamente.
Uma jogada para cair nas boas graças dos humanos, embora soubesse que ele tinha um bom coração, mas não deixava de ser uma espécie de político.
— Sim — ele mantinha os olhos dourados nas vítimas machucadas. — Vou ver se precisam de ajuda para carregar os feridos.
Apertou a mão dele e sorriu, mesmo que não tão animada.
— Tá bom — murmurou. — Se cuida.
— Se cuida... espera! — Noble segurou o seu pulso e abriu um sorriso divertido. Lá vem, pensou. — Você deve correr se o teto abrir e começar a sugar todos os humanos daqui.
— Noble — ela estreitou os olhos, contendo uma risada. — Não estamos no filme 2012.
— Eu não estaria tão confiante, não depois de sentir aquele vento do lado de fora.
— O que foi, gatinho? — aproximou-se dele, percorrendo os dedos por baixa da roupa escura que ele usava. Tocou o início do pulso quente e mais acima, até acariciar o músculo forte do bíceps. — Com medo de um pouco de água?
As sobrancelhas louras se ergueram e Noble a olhou de cima a baixo, sorrindo sarcasticamente. O ensinara bem demais, levando em consideração que parecia mordaz o suficiente para fazê-la se sentir desafiada.
— Eu só quero seu bem, você sabe... uma coisinha tão pequena seria facilmente levada.
Kaira revirou os olhos, pensando em como ele não sabia brincar. Por que sempre precisava citar o seu tamanho? Era o único golpe dele desde sempre, começara quando eram crianças e ele tinha percebido como ela odiava ser chamada daquele modo, então desde aquela época usava contra ela, certeiro e irritante.
Brincar... sim, ela sabia brincar, uma pena que não pudesse fazer o que queria no meio de tanta gente.
— Pois esta coisinha pequena não parecia tão frágil horas atrás, não quando a tomou com força contra a parede do arsenal — provocou, deslizando levemente as unhas contra o antebraço forte. — Hmm... — segurou a mão dele, erguendo-a próxima dos lábios e pressionou os lábios sobre as articulações dos dedos, beijando cada um dos ossos que antecedia o torso da mão.
Imaginou que o charme inconfundível estivesse brilhantes em seus olhos, os quais em momento algum desviou dos dele; o dourado momentaneamente se tornou mais intenso conforme as pupilas felinas se estreitaram, transformando-se em fendas negras em meio ao ouro líquido.
Moveu a boca suavemente, deixando a pele quente e exibiu os dentes, sorrindo sem vergonha alguma de mostrar que desejava o provocar.
Noble tentou a capturar, entendendo os braços e mãos, para a tocar e abraçar, mas Kaira se afastou com um passo para trás e ele rosnou, impaciente e frustrado.
— Kaira... — a voz rouca a fazia desejar se esconder em um banheiro com ele e continuar aquilo, no entanto...
— Cuidado com a chuva em — alertou, dando as costas para ele. — Esta coisinha pequena não pode te proteger da fúria do céu!
Ouviu a risada divertida e depois um resmungo:
— Fêmea terrível.
Kaira apoiou as mãos na cintura e respirou fundo, pronta para colocar tudo o que aprendera nos últimos anos em prática.
A primeira notícia que ouvira sobre o desastre fora de que cinco pessoas se afogaram no mar após o barco deles naufragar por conta da agitação marítima. Depois os ventos aumentaram, rugindo em suas portas como um monstro cruel e impiedoso.
A natureza não era bondosa.
Ela era uma assassina.
Já não bastava o raro tornado de fogo que gerou um incêndio florestal no Norte da Califórnia, agora precisavam lidar com o ciclone. O vento estava arrasando muitas áreas costeiras, com grande danos estruturais. Pessoas se afogando nas ondas, centenas de resgates no oceano, tudo atribuído à tempestade.
Ela não se lembrava de algo a ter assustado tanto quanto o sopro assustador da natureza durantes aqueles dias; o som do vento que se assemelhava ao uivo de milhares de lobos, o vidro das janela e as portas da casa tremulando a noite toda, o ruído dos galhos e folhas das árvores ao redor da casa se assemelhando a fantasmas arranhando a madeira, as correntezas assassinas do rio ondulando com força juntos das pedras.
Se escondia embaixo das cobertas, como se fossem seus escudos protetores.
Kaira limpou feridas ensanguentadas, remendou cortes em pernas e braços, alguns mais delicados em rostos também, administrou injeções para dor naqueles que necessitavam e distribuiu água e mantas entre as pessoas mais cansadas. Sorria docemente sempre que alguém a agradecia e limpava as lágrimas das pequenas crianças ao costurar seus machucados.
Aa horas passaram até que ela finalmente encontrou Forest em uma sala no lado esquerdo do armazém, cheia de feridos que estavam em um estado péssimo. Cumprimentou Kismet na porta.
— Oi.
Haviam marcas avermelhadas embaixo dos olhos dele e mesmo com o sono marcando seu rosto, Kismet teve força para abrir um sorriso maldoso.
— E ai? — ele olhou para o corredor de onde ela viera. — Aonde está o seu leãozinho?
Kaira ergueu o dedo do meio e passou reto por ele. Assim que entrou na sala Forest a olhou. Ele parecia ainda pior que Kismet, com seus fios loiros amarrados para trás e sujos, embora ainda houvesse aquele brilho bondoso em suas orbes.
— Precisa de ajuda?
A roupa azul dele estava cheia de sangue e as luvas também e, quando Kaira observou o homem deitado na mesa cirúrgica, automaticamente soube que não havia salvação para ele, não totalmente.
— Nenhum helicóptero veio ou vem — Forest murmurou. — Não pude salvar a perna dele.
Ela colocou, levemente, a mão sobre o curativo que cobria o que era o o início da coxa do homem, que deveria ser seguida pelo joelho, canela e pé, mas não havia mais nenhum deles.
— O que aconteceu?
— Uma árvore caiu em cima do carro. A maior parte no capô e depois na rua, essa foi a sorte dele.
— Pelo menos está vivo.
— É... e agora vou ter que dizer que não pude fazer nada pela perna dele.
Kaira se aproximou do amigo e médico agora. Dava para ver a raiva naqueles olhos, o sentimento de não poder fazer nada e apenas odiar aquilo.
— Talvez ele diga que você comeu a parte que está faltando — Kismet disse em voz alta, fazendo com que ela revirasse os olhos. — Uma desculpa para nos ofender.
Piadas não ajudariam Forest e nem todo humano era idiota. Ela era um exemplo... ou quase um.
— Você fez tudo o que podia — segurou o queixo dele e se inclinou na ponta dos pés, pressionando os lábios na bochecha pálida. — Agora vá comer alguma coisa e sentar um pouco. Eu cuido do resto por você.
Forest negou.
— Não posso — sussurrou. — Preciso contabilizar os mortos. Arrumar prontuários... preciso avisar as famílias, preciso fa—
— Ei — ela resmungou. — Você não está sozinho, okay? Vamos dividir o trabalho, por isto estou aqui, para ajudá-lo.
— E não para fazer as pessoas se sentirem melhores entre Novas Espécies?
Kaira revirou os olhos.
— Nós estamos ajudando e parece que eles não se incomodam tanto quando isso os beneficia. Não vamos culpar as pessoas neste armazém, elas não são nossos inimigos e perseguidores.
Forest balançou a cabeça, concordando e pode ver um breve arrependimento na expressão dele. Ele olhou para as outras pessoas deitadas nas macas e um sorriso gentil substituiu a seriedade naquele rosto.
— Preciso de um café — ele disse e olhou as próprias mãos. — E de luvas novas.
— Posso providenciar ambos.
Kaira pegou luvas novas dentro da bolsa que carregava nas costas e deu a ele, estava saindo da sala quando corpos deitados no chão e cobertos de preto chamaram sua atenção. Estavam lá desde o momento que entrara, mas não tivera coragem para olhar, para encarar. Para compreender. Para aceitar.
Mortos.
Não eram poucos.
Saiu daquele cômodo tão rápido quanto se houvesse uma alma em seu encalço.
🌡️
Ainda mantinha contato com Layla, elas trocavam mensagens todas as manhãs e noites, geralmente contando o que acontecera durantes os seus dias e Kaira mandara uma mensagem dizendo onde estava e o que estavam fazendo para ajudar as pessoas.
Sua amiga, ao invés de dar início a uma faculdade, fizera apenas alguns cursos e ainda vivia mudando de endereço. A vida dela não parecia melhor do que era antes, não com um pai político e defensor de Novas Espécies.
Kaira sentia um pouco de pena da infelicidade de Layla, principalmente pela família da amiga, que agora estava sozinha e melancólica.
Havia sugerido que ela voltasse para a Reserva, para passarem um tempo juntas e para ver Hunter, que admitira sentir falta dela, ou até mesmo para que estudassem juntas, mas Layla seguiu negando suas sugestões e naquele ponto era tarde demais. Kaira terminara a faculdade e estivera bem ocupada treinando com Aaron quando não estava no Centro Médico.
A vida seguia, com ou sem Layla, embora Kaira sentisse falta da presença da amiga.
Era noite quando o sopro do vento abrandou, não tanto quanto gostaria, mas era algo. A chuva se fora completamente e o frio se instalara em sua pele e ossos. Trocou de roupa e tomou sopa ao lado de Kismet. Estavam os dois sentados sobre uma manta e com as costas na parede, observando as outras pessoas em silêncio e deitadas.
— Eu poderia devorar um cervo inteiro agora — ele reclamou novamente. — Ao invés disso tenho que tomar essa sopa. Isto não é jantar. Não me enche.
— Até porque vai já está cheio dessas baboseiras que sempre saem de você quando abre a boca.
Kismet a olhou com desdém.
— Acho que nem uma humana como você, de paladar inferior, gosta de sopa.
— Eu gosto de qualquer coisa quente.
Ela levou outra colherada até a boca, gemendo ao sentir o gosto. Não era nada bom mesmo, mas nunca admitiria para ele.
— Hmmm — Kismet ronronou e passou um braço ao redor do pescoço dela. — Qualquer coisa quente, em? Pode me usar, K.
Passos rápidos se aproximaram pela esquerda dela e o braço ao redor do seu pescoço foi empurrado para longe, um instante depois Noble estava sentado entre os dois e perguntou:
— Você não vai tomar o resto da sua sopa, Kismet?
— Não — ele empurrou a tigela contra o peito de Noble, que pegou e terminou de comer de uma vez só. Kismet a olhou brevemente. — Esse daqui come até pedra.
— O preço a se pagar quando é o maior de todos — Noble respondeu antes dela e olhou para a sua vasilha com interesse. — Vai comer?
Kaira imediatamente afastou a sopa dele.
— Vou!
Depois de comer, ajudar mais algumas pessoas a se acomodarem no centro do armazém e arrastar Forest pelos cabelos até que ele se alimentasse, Kaira voltou para aquele manto ao lado da parede e sentou entre as pernas de Noble, que passou os braços ao redor da sua cintura e fungou no pescoço dela.
— Usou sua insulina? — ele murmurou a pergunta e beijou sua pele gelada. Kaira tremeu levemente, rindo e balançou a cabeça em um sinal de sim. — Ótimo, boa noite, moranguinho.
— Boa noite, moranguinho — Kismet o imitou e depois afinou a voz, em uma falsa réplica dela. — Boa noite também, chocolatinho.
Kaira virou a cabeça para Noble e trocaram um olhar, tinha certeza de que ele pensava o mesmo que ela e sorriu, depois os dois encararam Kismet e disseram juntos:
— Cala a boca!
🌡️
Estava sentada, com o rosto relaxado contra o pescoço de Noble, respirando calmamente contra a pele exposta, enquanto ele apoiava o queixo em cima da sua cabeça. Alguns centímetros, ao seu lado direito, estava o rosto de Kismet, repousado no ombro de Noble.
Não era o melhor sono da sua vida, acordava vez ou outra por causa do vento, mais fortes a noite, principalmente porque a chuva voltara e também as tosses das pessoas.
Kaira virou de lado, decidida a ignorar o ronronar baixo de Kismet, fechou os olhos, mas o abriu imediatamente quando escutou um barulho alto, como quando a janela abre com força e bate contra a parede e o uivo do vento pareceu mais próximo e o ar gelado.
Levantou a mão para apertar Noble e abriu a boca, para chamar atenção dele.
— Eu ouvi — ele disse antes dela falar qualquer coisa. — Deve ser só o vento que abriu umas das janelas, vou ir lá ver.
— Eu também vou.
Ela pegou a lanterna que estava dentro da bolsa, que estava até então largadas ao lado da manta. Não precisou acordar Kismet, ele os seguiu em silêncio e com a pior expressão do mundo. Foram juntos até uma das salas que ficavam na lateral do armazém, exatamente igual aquela em que Forest estivera mais cedo e, como antes, alguns corpos mortos estavam lá.
Um arrepio subiu pelas costas dela.
Se era por frio ou medo... bem, não saberia dizer, mas sentia os dois.
Noble entrou na frente e Kismet depois, ele bufou assim que colocou os olhos na janela aberta, cuja armação de aço colidia contra a parede junto do vento. Os pingos fortes molhavam o chão da sala, começando a formar uma poça rasa.
— Não tem ninguém, foi o vento — Kismet resmungou e pulou, fechando a janela de uma única vez com seu tapa. Quando seus pés tocaram o chão novamente espirrou pingos por todos os lados. — Que merda.
Kaira caminhou para perto da janela, iluminando a parede cinza. Estava molhada também e a imaginação dela foi mais além com as marcas de dedos, como se algum daqueles mortos tivesse se levantado como um zumbi e arranhado a parede, tentando alcançar a saída... ou como se alguém estivesse entrado e, para não escorregar na poça, tivesse se apoiado ali.
Ela se aproximou lentamente e ergueu a mão direita, verificando a posição dos dedos molhados. Não estavam virados para cima, como os dela naquele exato momento, mas para baixo, como se a pessoas estivesse de costas para a parede.
Descendo, não subindo.
— O que foi?
Noble estava ao lado dela, perscrutando-a com atenção e Kaira apontou a lanterna para o chão, franzindo o cenho para o piso molhado, procurando qualquer pista. Qualquer pegada.
— Tem alguém aqui — murmurou baixo. — Alguém entrou. Você sente o cheiro?
A feição dele se contorceu, as pupilas felinas super dilatadas e brilhantes na escuridão
— Sinto vários odores, tanto de mortos quanto de vivos, Kaira.
Claro, era uma pergunta idiota, não tinha como ele capturar um cheiro diferente, não com tantas pessoas desconhecidas no mesmo espaço.
Mas também não tinha como encontrar passos naquela superfície totalmente molhada, então ela saiu da sala e verificou mais atentamente o chão seco, estreitou os olhos sob as luzes amarelas do próprio armazém e lá estavam elas.
Pegadas de alguém que estava saindo do cômodo, pés que tomavam a mesma direção dela agora. Kaira levantou a cabeça e fitou aquele mar de pessoas deitadas, todas esperando o fim da tempestade.
Ou quase todas, porque ela tinha certeza de que um intruso estava entre eles. Uma raposa no galinheiro, foi como imaginou.
Alguém muito esperto, mas ela era mais.
— Eu vou pegar você — declarou baixinho e astuta, como numa brincadeira de pique-esconde. — E então vai rezar para nunca ter invadido meu espaço.
Kaira mostrou as evidências para Noble e Kismet. O primeiro estava sério, a ouvindo como sempre, e o segundo a olhava com indiferença, mas assim que terminou de mostrar as pistas Kismet se afastou e começou a conversar com os outros, espalhando a novidade entre os poucos Novas Espécies que estavam naquele prédio e com os guardas depois, mas apenas com aqueles da Força Tarefa.
Ninguém entre eles confiava realmente na proteção dos humanos, levando em consideração que poderiam ser facilmente traídos.
Aquela foi a pior madrugada da vida dela.
O segundo dia naquele armazém chegou e por conseguinte o terceiro dia de tempestade, já que não estavam ali quando tudo começou. Kaira observava a todos com atenção, tentando reconhecer algum rosto novo, mas todos eram parecidos para ela; cansados e machucados
Aaron descera do mezanino apenas para comer e a expressão dele não era das melhores. Trey havia saído depois de uma mensagem, mas voltara logo e com uma criança nos braços. Kaira não deu muita atenção, não estava machucada, mas depois de caminhar de um lado para o outro procurando por algo, a menina de olhos assustados foi até eles.
Kaira e Noble estavam lado a lado, distribuindo comida quente quando ela se aproximou.
— Moço?
A voz fina e amedrontada chamou atenção dos dois e Noble se agachou, apoiando um dos joelhos no chão.
— Sim, pequena?
Os olhos da menininha se encheram de lágrimas ao ganhar a atenção dele e ela começou a chorar, pressionando aquelas mãozinhas pequenas contra o peito. Ela não estava diferente de qualquer um que chegava do lado de fora, molhada e gelada, tão pálida que Kaira sentiu uma breve necessidade de pegá-la nos braços e acalentar.
— Eu n-não encontro a minha mamãe. Me trouxeram aqui para tentar achar ela — a garotinha fungou. — Mas nem aquele moço que estava comigo consegue!
Foi impossível para ela não pensar naqueles corpos sem vida, implorando para que nenhum dos mortos fosse a mãe dela.
Noble abriu um sorriso gentil para a criança e tirou todos os fios grudados naqueles rostinho, pode ver como ela tremeu sob o toque quente das mãos dele. Ele tirou o cobertor dos próprios ombros e colocou ao redor da menina, então perguntou:
— Qual o seu nome?
— Cassie.
— Eu sou Noble — ele a pegou no colo. — Como é a sua mãe e como ela se chama, Cassie?
A menina se encolheu toda, ainda derrubando algumas lágrimas.
— Dizem... dizem que ela se parece comigo, moço. O nome dela é Helena e estava com o meu tio, Elias.
— Humm — Noble ainda sorria para Cassie. — Então nós só precisamos perguntar para os outros se eles virão a mulher mais bonita do mundo andando por ai.
Kaira balançou a cabeça e ele deu de ombros.
— Ajude a nossa amiguinha a encontrar a mãe dela — murmurou. — Eu vou... verificar entre os cadáveres, então esteja preparado.
E ela o fez.
Entendeu imediatamente porque gostava tanto de lidar com vivos. A pele gelada e pálida era horrível, principalmente com aquele tom azulado da morte. Procurou por mulheres que se parecessem com a criança; cabelos castanhos, nariz arrebitado e bonito, olhos esverdeados e claros que poderiam ser confundidos até mesmo com um marrom bem fraco. Leu até mesmo algumas identidades, mas não havia ninguém parecido com aquele menina dentro dos sacos escuros e nenhuma mulher chamada Helena.
Entre os homens procurou por Elias, mas também não havia nada.
Voltou para o centro do pátio e balançou a cabeça negativamente para Noble, então ele continuou a entreter a criança.
E a tarde continuou tensa.
🌡️
Aaron desceu as escadas como um touro, visivelmente irritado e frustrado, então avisou:
— Vou sair, Trey. Quero homens lá fora comigo — ele resmungou. — Na entrada do fundo.
— Por quê?
— As câmeras foram espelhadas em um ciclo contínuo, um trabalho muito bem feito, eu diria, com loop infinito e tudo mais — ele ironizou, lançando um olhar para Kaira. Era o tipo de coisa que ela havia aprendido nos últimos anos e não era nada difícil. Precisava apenas usar uma placa customizada, emendar o cabo de Internet em alguma das quatro caixas de energia do lado de fora do prédio e se conectar à câmera de segurança. O hardware permitiria aos hackers conectarem um dispositivo no cabo sem interromper o feedback da câmera de segurança. Depois, poderiam usar um software para criar um loop na imagem do feedback, recortarem o horário do vídeo original e o passaram para o vídeo hackeado, para parecer que a câmera continuava a gravar tudo em tempo real. — Demorou para que eu percebesse.
Kaira cruzou os braços, pensando que se ele a deixasse trabalhar ao lado dele aquilo não teria acontecido, mas não disse nada.
— Certo, pegue aqueles que você quiser — Trey respondeu.
— Você vem, gigante e o seu amigo também— ele apontou para Noble e Kismet. — Vamos.
Ele tocou gentilmente seus dedos antes de se afastar.
— Cuidado.
— Eu sempre tenho, moranguinho.
Kaira estreitou os olhos.
— Sei...
Ela os observou enquanto se afastavam e depois voltou ao trabalho.
🌡️
Era quase noite quando ela terminou de limpar e enfaixar os machucados dos indigentes reunidos no galpão para dar um pouco de atenção a Forest, que até então não dera às caras.
Kaira pegou um copo de café para o amigo e seguiu até a sala onde ele estava.
— Ei, Forest, eu estava pensando naquele site de namoro e acho que você deveria tentar — entrou olhando para o chão, afinal, ela não queria pisar em nenhum ferido no chão. — Sei que não é grande coisa e que você não vai conseguir encontrar alguém melhor do que eu, mas o que custa tentar, né?
Ela soltou um riso sozinha, no entanto, quando ergueu a cabeça, o sorriso em seu rosto sumiu.
Havia uma arma apontada para a cabeça do seu amigo.
Eu estava certa, pensou, mesmo que não pudesse se gabar tanto naquele momento. Ele com certeza entrara durante a madrugada e aquilo a fez pensar no quão fraca deveria parecer a segurança dos Novas Espécies para ser tão subestimada.
— Um movimento brusco e eu atiro nele — o homem avisou. — Um grito e eu atiro nele.
Kaira acenou com a cabeça e deixou o copo de café sobre uma mesinha. As outras pessoas na sala estavam em silêncio e todas com uma expressão de desespero no rosto. Não era para menos. O cara tinha uma arma e Kaira sabia bem que não era um blefe. Ele atiraria sem dó se preciso.
— Tá bom, você tem uma arma — Forest apertou os dentes e soltou um rosnado profundo, mostrando suas presas brancas e afiadas. — E ai?
O homem apontou para a mulher sentada próxima da parede e ela arregalou os olhos, ainda mais assustada. Forest nem ao menos desviou atenção do homem e ele apontou a arma para a criança logo após e engatinhou a pistola, pronto para atirar.
— Você vem comigo e eu não estouro essa cabecinha bonitinha.
Forest assentiu sem nem ao menos hesitar. Ela sabia que o amigo nunca deixaria outra pessoa se machucar por ele.
Acontece que ela pensava do mesmo modo.
— Não! — Kaira deu um passo para frente, aproximando-se do homem e então viu a tatuagem; o símbolo dos Novas Espécies cortado por uma faixa vermelha. Estava desenhado na nuca do homem.
Ela se lembrava de tê-la visto uma única vez, em uma foto entre os documentos de Trey, há muito tempo.
Ele pertencia a escória do pior tipo.
— Espera — ela disse mais alto e o homem virou a arma, apontando para o seu peito. Kaira ergueu as mãos, totalmente entregue. — Não machuque ninguém, por favor, eles são apenas inocentes.
Forest a encarou do outro lado da sala, balançando a cabeça negativamente. Os olhos azuis praticamente implorando para que ela ficasse parada e calada.
O homem sorriu, inclinando a cabeça para o lado, divertindo-se.
Babaca.
— E o que você é, gracinha?
— S-Sou apenas uma enfermeira...
Encolheu os ombros, insinuou uma tremedeira nas mãos e desviou os olhos, enquanto por dentro torcia para que ele se aproximasse mais.
— Inocente? — o desconhecido cantarolou para ela, em uma pergunta maliciosa, o duplo sentido acentuado e Forest fez menção de dar um passo a frente, mas o homem alertou antes. — Se mexa novamente e eu dou um tiro nela — o desgraçado olhou de um para o outro. — Ela é sua namoradinha?
— N-Não, por f-favor!
Kaira fingiu tremer de novo, deixando que seu corpo passasse todas as informações de que era fraca e indefesa. Talvez a tremedeira fosse real. Manteve suas sobrancelhas ligeiramente levantas, a boca entreaberta, a ansiedade nos olhos. O retrato do medo.
Ele a substimaria, o que era ótimo.
— Você é uma vadia de animais então? — desta vez ele perguntou e pareceu enojado, dando um passo até ela e praticamente pressionando a arma próxima de seus seios. Idiota e burro. As mãos dela ainda estavam erguidas ao lado do corpo, uma de cada lado da pistola. — Talvez eu comece com você e depois com o seu namorad—
Não deixou que ele terminasse de falar, segurou a frente da pistola com a mão esquerda e a afastou para o lado, saindo da mira dele, surpreendendo-o com rapidez e força. Com a mão direita segurou o pulso do homem, levantando-o com arma e tudo. Ele puxou o gatilho, as pessoas gritaram e então a bala perfurou o teto.
Um segundo, foi o que pensou ao torcer a mão dele e segurar a arma.
Um segundo e tudo estava feito.
Um segundo que decidia se ficaria viva ou não.
Um segundo para se afastar.
— Eu começo com você, babaca — segurou a arma gelada entre as mãos e puxou o ferrolho rapidamente, dando lugar a próxima munição. — Ajoelha! — apontou para a cabeça dele, deixando que um sorriso esnobe desse lugar a expressão de mulher indefesa e assustada. — Ajoelha para a vadia de animais!
As mulheres e crianças sairam correndo da sala, posteriormente dando lugar a soldados humanos e alguns Novas Espécies.
— Chamem os outros de volta — disse em voz alta, sem tirar os olhos do desgraçado, mesmo quando um dos soldados o pegou. — Podem ter outros como ele lá fora — a cabeça dela começava a funcionar mais rápido. — A câmera foi um pretexto para que alguém saísse. É uma armadilha.
— Você é bem espertinha, agora por que não vai lá fora ajudar seus amigos?
Os soldados começaram a se mover para fora e o homem sorriu. O que a fez pensar no que ele disse. Ir para fora era o certo a se fazer, para alertar e ajudar os seus, mas ao mesmo tempo parecia ser exatamente o que o desconhecido queria.
Por quê?
— Parem! — Kaira gritou para os homens e Trey a olhou com estranheza. — Ninguém sai, ninguém entra! Fechem as janelas, as portas, tudo!
— Do que você está falando? — Trey perguntou.
— É exatamente o que ele quer — apontou para o homem. — Enquanto vocês saem e lutam, outros tem caminho livre para entrar aqui, sedar e levar Novas Espécies. É óbvio... agora eu entendo. Faz sentido.
— É óbvio ou você está dizendo isso apenas por que gosta de fazer o contrário dos outros?
Talvez fosse o tempo que estivesse passando com Aaron e sua desconfiança natural para com os outros, mas sentia que estava certa. No meio de muitas possibilidades, segundo Aaron, ela deveria definir uma decisão e tudo o que ela engloba. Para Kaira, fechar os meios de transição era mais sábio do que simplesmente sair para fora sem um plano.
Era a melhor opção.
— Sério, Trey? — bufou. — Não estou agindo por impulso, estou pensando e fazendo um plano. Não sou uma idiota.
Forest se aproximou dela.
— Noble e Kismet estão lá fora, eles precisam saber.
— Sim, vou avisar todos eles agora.
Trey levou a mão até o rádio, mas Kaira o segurou antes.
— Me ouve uma vez na vida. Mande os homens fazerem o que eu disse, fechar as entradas e saídas. O plano deles é entrar e conseguir levar os nossos.
Mas ele seguiu em frente sem nem ao menos a ouvir e passou a mensagem pelo rádio. Kaira observou, com descrença, os homens começarem a arrumar suas armas para um possível combate.
— Você é burro — avisou. — Qual o sentido de lutar com Novas Espécies em campo aberto? Eles não podem ganhar, a vantagem é nossa com força bruta e velocidade, por isto vão fazer o contrário.
— Sim, sim, e você é um gênio.
Alguma homens riram dela, enquanto os Novas Espécies a ouviam com atenção.
— É o que eu faria.
— Uma mulher não luta frente à frente, precisa encontrar outros modos, mas eles são homens.
Kaira abriu e fechou a boca, guardando os insultos apenas para ela. Ninguém nunca a ofendeu tanto. Mulher? A resposta de Trey era tão rasa e idiota que só podia ser consequência de um cérebro pequeno e machista. Típico. O que ela deveria esperar dos homens de Tim Oberto?
Ela não discutiu, ao invés disso deu as costas a eles e correu para as salas com janelas. Eram todas altas e pesadas, mas começou a fechar uma por uma.
— Eu te ajudo.
A presença do Nova Espécie a surpreendeu. Ele era alto — como todos os outros — e igualmente forte, com os fios de cabelo castanhos amarrados para trás e lindos olhos cor de chocolate. Era um primata.
— Sou Wise.
Kaira sorriu para ele.
— Para estar aqui não duvido nada de que realmente o é.
Wise sorriu de volta e com apenas um empurrão fechou a janela que estava dando dor de cabeça para ela. Kaira apoiou as mãos nos joelhos e resmungou.
— Podia jurar que essa coisa estava enferrujada...
Ele gargalhou.
— Vamos fazer o que você disse e depois obter notícias.
— Vamos!
Depois de terminar as janelas e verificar as portas da frente, Kira e Wise foram juntos para os fundos, por onde entrara com os outros antes.
Ela se aproximou da porta de aço e, no momento que foi dar uma espiada para fora, o impacto de uma explosão a jogou para longe.
Imediatamente perdeu os sentidos e desmaiou.
🌡️
O aviso de Trey não adiantara absolutamente nada, ao menos foi o que ele pensou quando empurrou o humano para trás.
Noble limpou o sangue em sua boca.
Não era dele, mas do homem agora caído no chão. Ele segurava o pescoço com ambas as mãos, tampando o machucado que Noble fizera nele.
— Aaron? — chamou, estreitando os olhos por causa do vento e da nuvem de poeira que subiu depois da explosão no portão dos fundos do galpão. — Aaron?
Eles estavam na caixa de energia quando aconteceu e a última coisa que Noble viu antes de sentir o impacto fora Aaron caindo da escada para o chão.
— Aaron!
— Estou aqui, rapaz!
Ele seguiu a voz de Aaron, tudo para o encontrar caído e com a escada sobre suas pernas. Noble se aproximou e a ergueu com facilidade de cima de Aaron.
— Santa genética — Aaron resmungou. — A explosão foi no portão... a única passagem para dentro, já que as portas da frente estão lacradas por dentro.
Noble balançou a cabeça.
— Não, não é a única entrada — olhou adiante, forçando sua vista. Ele estava começando a odiar aquele vento constante. — As janelas estão abertas, o que me faz pensar qu—
— Vão usá-las para entrar e sem a maioria de nós lá dentro... — Aaron bateu os pés. — Porra.
— Foi uma armadilha.
— Sim, uma muito óbvia e boa. Trey deveria ter permanecido do lado de dentro quando pode. Mas que seja, agora não podemos lamentar, não quando eu fui o primeiro idiota a sair.
Aaron pegou a pistola que carregava em seu coldre.
— Vamos seguir pelas laterias com os outros e impedir qualquer um de entrar pelas janelas, é o que podemos fazer e torcer para aqueles que estão do lado de dentro aguentarem.
Noble pensou em Kaira e no que ela faria naquele momento, torcendo para que a companheira estivesse bem e que não fizesse nenhuma loucura.
— Vamos!
🌡️
— Kaira!
A cabeça dela latejava e queimava como o inferno. Ela piscou e gemeu. Tocou a lateral da cabeça e observou os dedos molhados de sangue.
— O que eu posso fazer por você?
Estava deitada no colo de Wise. Kaira olhou para o portão destruído e para os entulhos enormes. Era impossível que alguém passasse por ele, fosse amigo ou inimigo. Esse fato a tranquilizou, um pouco.
— Bom — ela murmurou, segurando-se contra o macho. — Acho que meu plano de nos fechar do lado de dentro deu certo de um modo ou outro.
Wise concordou com ela.
— E agora?
Kaira suspirou.
— Agora nós torcemos para que aqueles que estão do lado de fora aguentem as consequências do ataque — declarou de forma sombria e olhou para o sangue em seus dedos. — E eu preciso ver Forest.
— Vou levá-la até ele!
Manteve seus olhos na destruição enquanto Wise a levava para longe, torcendo para que Noble e os outros ficassem bem.
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