Não me deixe
— Eu peguei Kismet!
Kaira, que estava ao lado dele até então em silêncio, virou o rosto devagar e o sorriso orgulhoso em seus lábios não passou despercebido aos olhos de Noble. Os seus ombros se tocaram quando ela se moveu, a pele nua e suada roçando em seu braço o fez perscrutar o rosto avermelhado com atenção, achando graça do modo como a expressão dela se camuflava em indiferença.
— Ela está ficando bem melhor — comentou casualmente, apenas para não ficarem em silêncio. Ainda era estranho depois de tudo. — Mais rápida e forte.
— Ela sempre foi incrível.
— Você da coragem à ela.
— Eu faria qualquer coisa por Aurora — Kaira murmurou, olhando-o feio. — E não, eu não dou coragem a minha irmã, apenas ajudo ela a se soltar, tudo o que fez até agora é de todo mérito dela, não meu.
— Para de tentar ser humilde, não faz seu estilo — resmungou. — Eu sei que aí no fundo você está pensando que tudo é graças a você, senhorita orgulhosa. Pode até tentar esconder dos outros, mas não pode mentir para mim.
Trocaram um olhar sério, as orbes azuis pareciam em chamas.
— Quer começar uma briga?
— Parece que é tudo o que você anda querendo ultimamente, Kaira, mas não adianta despejar sua frustração em todos as seu redor — ele não queria dizer aquilo, mas escapou por entre seus lábios assim que pensou. O olhar azulado que recebeu de volta não era gentil, mas duro. Inclinou-se para Kaira, segurando o pulso dela. — Espera, eu não quis dizer isso, me desculpa.
— Que se dane — Kaira bufou. — Eu sou a vilã da história para você.
— Isso não é verdade.
Ela se desvencilhou rapidamente, ignorando-o, sem parecer se importar com o quanto àquilo machucava o coração dele.
Noble ficou alguns instantes em silêncio, muito incomodado com o fato de que ele precisava fazer algo ou perderia sua amiga para sempre. Lide com as consequências de sua escolha, pensou sombriamente.
Abriu a boca para falar qualquer besteira, pensando em a fazer rir novamente, mas o barulho nos arbustos próximos deles o fizeram parar e se concentrar no que estava por vir. Identificou Forest pelo cheiro antes de qualquer coisa, até que o amigo canino surgiu rolando pela terra e rindo, com o cabelo loiro todo bagunçado e com folhas verdes penduradas nele.
Coincidentemente seu nome parecia combinar muito com a forma como ele se envolvia com a floresta ao redor deles.
— Achei você, Kaira! — Forest se aproximou dela, passando algo pequeno para a mão da amiga, depois a puxou consigo. — Vamos, não faça aliança com o inimigo, ainda podemos ganhar com um bom plano!
— Vamos! — Kaira segurou a mão dele e Noble revirou os olhos, engolindo em seco a vontade que tinha de empurrar Forest para longe dela.
Uma pena que eles fossem uma equipe.
Ele ficou parado por algum tempo embaixo daquela mesma árvore, até Kaira e Forest desaparecerem em direção ao rio.
A cada dia que passava ficava mais difícil lidar com o relacionamento que ele tinha com Kaira. Ela nunca tinha se distanciado dele como agora, não era apenas fisicamente, mas mentalmente. Noble sentia que antes podia a entender apenas com um olhar, sem realmente se expressar em palavras, mas agora tudo estava escondido atrás de uma espessa camada de descaso.
Estava lidando com tudo como amigo dela, como no início, quando ela deixara o Centro Médico. Ainda se lembrava das palavras dela sobre serem apenas amigos, exatamente como antes, ele estava esperançoso de que tudo daria certo e ficariam juntos quando chegasse a hora.
Talvez estivesse assistindo muitos filmes de romance com sua mãe.
Kaira estava irritada, ele sentia em cada poro do corpo ao se aproximar dela, suas ações sempre mescladas em sarcasmo provavam que ela reagia agressivamente ao estresse de tentarem seguir em frente como se nada tivesse acontecido, embora a sugestão fosse dela.
Ter aceitado seguir daquele modo era um erro que ele não conseguia reverter.
Não queria deixá-la ainda mais impaciente consigo e, às vezes, ainda se lembrava do episódio em que a mordera e aquilo era um pesadelo.
Nunca mais queria machucá-la.
Noble precisava manter o controle, então o ideal era seguir em frente, pois se voltassem ao ponto que estavam antes ele não seria capaz de se segurar, não quando olhar para ela o fazia perder a cabeça.
Quando estavam afastados conseguia pensar com mais racionalidade.
Depois, mais duas figuras surgiram correndo pela mata, Aurora e Salvation. Ela estava toda sorridente e o amigo também, a felina se aproximou o suficiente dele e abriu a mão, mostrando a Noble a pedra vermelha — de Kismet — e duas azuis, que eram a dela e a dele, que por motivos injustos, não podia ficar com o próprio ponto por uma história de anos atrás.
Ele não tinha realmente dado sua pedra para Kaira e Kismet, os dois que passaram a perna nele.
O jogo era simples: separavam-se em duas equipes, vermelha e azul, a equipe que conseguisse um ponto do time adversário podia correr para a chegada e ganhar; com dois pontos era automaticamente uma vitória, sem precisar ir até o final, mas quase não acontecia, eles deixavam os times equilibrados, ao menos na maior parte das vezes.
— Vamos ganhar! — Aurora deu pulinhos animada. — Eles vão ter que comer todos aqueles bifes de fígado, não nós!
— Kaira e Forest estão na frente, nos esperando perto do ponto de chegada e vão querer pegar nossos pontos — Noble adiantou os passos em direção ao destino deles, apertando os punhos. — Eu lido com ela, você com o Forest — apontava para Salvation. — E você, Aurora, vai até a chegada.
— Não vamos perder desta vez — Salvation sorriu. — Eles deram mole.
— Foi muito fácil pegar a pedra de Kismet — Aurora disse bem alto, acompanhando-os de perto enquanto corriam. — Você tinha que ver a cara dele, Noble!
— Eu imagino!
Eles correram pela trilha, pulando por cima de alguns troncos caídos e adentrando mais a mata próxima do rio, viram a água e passaram por cima das pedras, indo até a margem do lado esquerdo e continuaram subindo o leito do rio, até estarem próximos de umas poças calmas, onde a água passava lentamente por conta das pedras grandes e pesadas.
Noble pulou no alto de uma delas, agachou e sentiu o vento no rosto, carregado com o cheiro da mata, dos animais e de seus amigos. Kaira e Forest não estavam longe deles.
— Eles estão logo à frente — alertou. — Prontos?
— Eu nasci pronto — Salvation mostrou as presas e estendeu a mão para Aurora. — Pronta?
Aurora assentiu e Noble pensava que ela pegaria na mão do amigo, não era somente ele que esperava algo daqueles dois, mas ela passou reto, ignorando a mão dele no ar e seguindo calmamente na frente. Ele precisou pressionar os lábios para não rir da cara de bunda que Salvation fizera, o amigo até mesmo encolheu os ombros, parecia derrotado.
— Você é um frango mesmo — provocou.
— Cala a boca!
Noble recuperou o ar da risada e foi atrás de Aurora.
Próximo do ponto onde eles sempre marcavam, estavam os dois amigos. Kaira estava sentada em uma pedra próxima do rio e Forest do lado contrário dela, próximo das árvores e com os olhos atentos em Salvation. Provavelmente seu plano era bastante transparente, mas ele não deixaria o amigo pegar Kaira.
Ela o olhou com desdém, mas sorriu para Aurora.
— Eu não vou perder — Kaira comentou quando os olhos se voltaram para ele. — Não para você, chocolate.
— Eu — forçou a palavra — não vou perder.
— Tem certeza disso?
Noble responderia, mas o chamado alto de Salvation chamou sua atenção, virou-se e rosnou com a cena. Kismet apareceu de algum lugar — provavelmente estava até então escondido na mata — e estava segurando o amigo contra a árvore pelos braços, enquanto Forest o forçava a largar a pedra azul, abrindo a mão dele contra vontade.
— Noble?
A voz doce o chamou, ele pretendia apenas ver o que ela queria e ajudar o amigo, no entanto um chato de água forte o atingiu bem na altura dos olhos, fazendo-o dar alguns passos para trás e rugir de raiva, principalmente quando a risada feminina chegou em seus ouvidos.
Não precisava enxergar para conseguir visualizar perfeitamente a expressão arrogante que ela deveria estar fazendo.
— Eu vou te pegar — ameaçou, limpando os olhos, sentia uma leve ardência, havia terra na água do rio e agora em sua visão. Rosnou, ainda mais irritado. — Você me paga por isso, Kaira!
— Quem me paga é você, bobinho! — ouviu os passos dela se distanciando. — Me joga a pedra dele, Forest!
Noble, mesmo com os olhos irritados, forçou e foi atrás dela. Não pode evitar que ela conseguisse pegar a pequena pedrinha azul, mas se jogou na direção das pernas dela, agarrando um dos tornozelos de Kaira antes que ela estivesse com os pés na área delimitada.
Os dois foram ao chão, ele se inclinou todo e olhou para a amiga felina, que parecia meio congelada e com os olhos vidrados em Salvation imobilizado.
— Aurora, vai!
— Vai!
Salvation chamou atenção dela também, a Espécie correu para frente com pressa, ultrapassou ele e Kaira, que ainda tentava se livrar do aperto dele e gritou animada, comemorando a primeira vitória deles em cima do time de Kismet, Kaira e Forest.
— Isso não vale — Kaira murmurou, olhando para a mão dele que a segurava. — Você sabe, não é?
— Estou ouvindo choro de perdedor? — provocou. — É bom estar com apetite, porquê o bife de fígado que o Slade faz é o pior de todos os tempos!
🌡️
Noble estava sentado na varanda de casa, brincando de jogar Bravery para cima e pegá-lo no ar. Seu irmãozinho adorava a brincadeira, soltava barulhos engraçados e alguns até mesmos parecidos com risadas, ele achava adorável, principalmente porquê os olhinhos dele eram de um tom dourado incrível e bonito, iguais aos seus.
Seu pai apareceu na varanda também, olhou ambos com uma expressão zangada e estendeu os braços, querendo tomar Bravery dele.
— O que foi, pai?
— Me dê o seu irmão, não fique jogando ele para cima como se fosse uma bola.
— Ele gosta, olha! — repetiu o gesto, pegando Bravery antes que ele alcançasse suas coxas e o filhote fez um barulho fofinho. — Viu?
Valiant rosnou, tomando o bebê dele.
Ele segurou uma risada, era engraçado como seu pai era super protetor o tempo todo.
— Só estavamos brincando — tentou argumentar, levantando-se para seguir o pai de volta para dentro da casa.
— Tenha seus próprios filhotes, então os jogue onde quiser, mas não vai fazer isso com o meu.
— Paranóico! — Noble riu alto, achando o comportamento do pai bem engraçado. Valiant se virou para o repreender, mas os olhos dele focaram em algo na floresta e Noble também prestou atenção.
Um Kismet pálido surgia de entre as árvores, ele estava correndo e não usava sapato algum. O amigo passou pela cerca do jardim e entrou no quintal, seguindo com pressa até Noble.
— O que está fazendo aqui, seu babaca? — Kismet praticamente rugiu em sua cara, deixando-o surpreso. Seu pai rosnou logo atrás, defendendo o filhote nos braços.
— Ficou maluco em vir até aqui e agir assim? — rosnou, mostrando os dentes de volta. — Qual o seu problema?
— O meu? — Kismet o empurrou de repente, fazendo-o reagir contra na mesma hora, empurrando-o para longe do pai e irmão. Agachou-se, pronto para uma luta. — A Kaira tá indo embora e você tá aqui, parado, sem fazer nada.
Noble estancou, chocado com aquela frase.
— Como assim?
— Eu decidi vir até aqui e no meio do caminho passei perto da casa dela, havia uma SUV na porta e Leo estava ajudando ela a colocar umas bolsas na traseira do carro. Adivinha? Perguntei o que estava acontecendo e ela me ignorou — Kismet revirou os olhos. — Mas Leo respondeu que Kaira está indo passar um tempo com a avó, cara, ele parecia muito irritado.
Ele não tinha o que responder, só sabia que o aperto em seu coração doía o suficiente para fazê-lo correr. Noble não se limitou a abrir o pequeno portão, pulou a cerca como o amigo fizera e forçou suas pernas a irem o mais rápido possível. Ele era veloz, podia chegar lá em tempo recorde.
Estava acostumado a sentir o coração bater com força sob as costelas quando corria tão desesperadamente, embora desta vez parecesse que as palpitações intensas estavam em sua garganta, praticamente escapando por sua boca.
Era culpa do vento que seus olhos estivessem ardendo, e não das lágrimas que estava guardando.
Doía.
Noble correu como nunca pela floresta e alívio o preencheu quando avistou o carro ainda parado na frente da construção. Kaira estava encostada ao lado da porta traseira, olhando seriamente para a tela do celular em suas mãos.
— KAIRA!
Ela ergueu a cabeça e arregalou os olhos, fitando-o surpresa. Noble não parou de correr, mas desacelerou até que seu corpo estivesse rente ao dela, com a cabeça de Kaira praticamente tocando seu peitoral. Encurralou-a contra o veículo, deixando as mãos aos lados dela.
— Aonde você está indo? — rosnou. — Você nem ao menos me avisou!
— E você por acaso é meu pai?
Deu um passo para trás, magoado e surpreso, e igualmente irritado.
— Desculpa, eu não quero ser grossa de novo — Kaira colocou as mãos em seus ombros. — Minha mãe achou que seria legal eu passar umas semanas com a minha avó, sabe, ela está sempre tão sozinha. Leon e Aurora queriam ir, mas o assunto pareceu repercutir o suficiente para Tim vir aqui e dizer não, infelizmente Justice concordou com ele. Aparentemente minha vida não é tão interessante e posso ir, mas sozinha.
— Eu iria com você.
— Eu sei — ela sorriu, parecia frustrada. — Seria legal.
— Nós dois juntos, lá fora — ele zombou, sentindo o coração desacelerar no peito. — Provavelmente a casa da sua avó terminaria em chamas.
— Pelos menos nós poderíamos aparecer no jornal da noite, posso imaginar a notícia: Nova Espécie e adolescente provocam incêndio na residência de uma idosa.
— Os idiotas que nos odeiam diriam que foi um ataque proposital.
— Eu diria que foi, aquela casa precisa de uma repaginada!
Eles gargalharam juntos e, naturalmente, o clima pesado que parecia os envolver há dias se dissipou.
— Me mande mensagem todos os dias.
— Claro, vou enviar foto de cada maldita coisa que eu fizer. Lá não tem nada de interessante. Uma casa de campo, com uma floresta que nem de longe é tão legal quanto aqui. Vou ler bastante e comer muito, minha avó é daquelas que enchem os netos de comida boa!
Noble sorriu, sentindo-se meio melancólico, ele não tinha avós.
— Não se esqueça de mim — murmurou, temendo que as coisas lá fora fossem tão boas que ela nunca mais voltasse. Ele não podia fazer nada contra àquilo. — Você vai voltar, não é?
— Sem drama, logo vou estar de volta!
Ele a capturou num abraço apertado, agarrando-se com força no corpo menor, até tirar os pés dela do chão. Seu gesto foi retribuído com intensidade. Nada poderia o confortar mais do que estar com ela em seus braços; ele não precisava dizer nada, pois sua ação dizia mais do que qualquer palavra.
🌡️
Kaira estava certa ao dizer que não havia grandes coisas para fazer na casa de sua avó, mas era nostálgico voltar e andar pelo corredor do hall onde sua avó deixava um cabideiro mesmo sem ter nada para pendurar, pela sala decorada com fotos antigas e com a televisão quadrada, com a velha poltrona onde se lembrava vagamente que seu avô sentava e lhe contava histórias.
Deus, ela não se lembrava que sentia tanta falta até colocar os pés naquela casa.
Era o seu lar, o lugar para onde sempre poderia voltar, onde seria acolhida pelo abraço quente de sua avó e com uma refeição deliciosa.
Sua terra.
O seu quarto antigo estava exatamente como deixara, com desenhos estranhos espalhados pelas paredes e com mais fotos, desde sempre gostara de gravar cada momento. Tirou o celular do bolso e fotografou cada pedacinho colorido, enviando para o grupo da família e depois para Noble, ficando especialmente atenta a visualização dele.
"Como sua vó está?"
"Muito bem, mas eu temo que ela ainda não tenha encontrado a cor ideal para pintar a frente da casa!"
"Eu te disse!"
Noble mandou alguns emojis de risada e Kaira deixou o celular de lado, abriu a janela e voltou para o andar inferior. Sua avó estava na cozinha, toda animada e sorridente, ela se sentou em uma das cadeiras, observando a senhora se mover pelo cômodo.
— Então, meu bem, conte-me mais sobre Leon e Aurora!
— Hm... — pensou sobre o que falar. — Aurora é muito fofa e conforme o tempo passa se torna mais confiante e bonita, além de que é muito inteligente, como todos os Novas Espécies. Leon é como o meu pai fisicamente, mas não é tão engraçado ou descontraído, ele com certeza vai ser o cara sério da família, embora tenha um coração bem mole e seja todo sentimental. Ele tentou esconder os olhos vermelhos antes de eu vir, foi engraçado.
— Ele é tão lindo pelas fotos.
— Todos eles são bonitos, os filhotes especialmente, é impossível olhar e não querer apertar. Bravery, por exemplo, é muito adorável!
— Quem?!
— Bravery é irmão mais novo do Noble, o meu... amigo — suspirou. — Eu já mandei várias fotos nossas juntos, vovó!
Os olhos de sua avó se voltaram para ela, brilhando em interesse.
— Sua mãe me disse que vocês são mais do que amigos.
— Sim, somos melhores amigos.
— Engraçadinha — as duas riram. — Você gosta dele!
Kaira confirmou com um aceno, incapaz de mentir.
— Gosto, mas... eu fiz algumas escolhas precipitadas e coisas realmente ruins aconteceram, isso o deixou chateado e achei melhor não forçar. Não queria ser insensível ou egoísta.
Ela não tinha falado com ninguém sobre aquilo, nem mesmo com Leo quando ele perguntou e, nunca mesmo, fora do tipo confidente com sua mãe. Era constrangedor, mesmo com sua natureza desinibida.
— Então vocês não estão juntos? — Kaira balançou a cabeça, negando. — Nem como namoradinhos? Não há nada de errado em dar uns beijinhos.
Kaira riu e coçou a cabeça, guardando para si mesma a verdade de que não queria apenas beijar Noble. Ela desejava mais, estava tão absorta nas sensações maravilhosas que sentia ao estar com ele que não se sentia tímida em demonstrar o que realmente queria, mas agora entendia que não estava certa e que, graças a lucidez de Noble, eles não tinham dado um passo em direção a algo desconhecido.
— Não estamos juntos.
— Bom, vocês são jovens e tem a vida toda pela frente, não precisam ter pressa, não é?
— Sim, senhora — concordou. — Agora eu entendo.
— Está numa fase de construção de si mesma, Kaira. Seus sonhos e desejos. E é preciso conhecer a nós mesmas antes de nos propor a conhecer o outro e sobretudo nos deixar ser conhecidas intimamente. Então, não pense muito sobre um relacionamento agora, estude e se divirta com os seus amigos.
— Pode deixar! — levantou-se e se aproximou da avó, abraçando-a e a beijando. — Obrigada pelo conselho, a senhora é um anjo e o cheiro da comida está tão bom!
As semanas com sua avó foram excelentes, não somente pelas conversas que tiveram, mas pelo silêncio que compartilharam. Kaira refletiu sobre um monte de coisas sobre a vida, tanto aquela que levava dentro dos muros da Reserva quanto a vida que poderia levar fora.
E ela queria voltar, não havia absolutamente nada que a fizesse querer desesperadamente conhecer o mundo.
Lógico que desejava viajar e ver alguns lugares interessantes, mas a vida na Reserva era sempre divertida e empolgantes, Espécies eram pessoas surpreendentes e boas, sempre descobria algo novo sobre eles.
Definitivamente não havia nada de entediante na vida que levava.
"Estou voltando para casa..."
"Ufa, aqui não é a mesma coisa sem você, moranguinho."
"Eu sei que não!"
Bom, independente do que acontecera e ainda iria acontecer, Kaira não iria largar o seu bem mais precioso; ela se sentia novinha em folha para continuar sua história e sabia que teria o que queria um dia.
Não precisava ter pressa. Seguiria a dica de sua avó.
🌡️
Ele nunca tinha sido uma criança normal e, definitivamente, não se considerava um adolescente comum. As suas diferenças estavam sempre explícitas, era maior e mais forte, entretanto não escapou do que os livros e as outras pessoas chamavam de puberdade.
Os hormônios eram uns danadinhos.
Não foram só os seus músculos e membros que cresceram, sua voz também começou a mudar e aquilo era motivo das risadas de Kaira e Kismet, embora o amigo não estivesse tão diferente dele, além de que Kaira estava com o rosto cheio de espinhas, o que também era motivo de chacota entre eles.
Outro ponto, o que realmente o deixava envergonhado, é que seu corpo reagia favoravelmente em momentos inadequados, por exemplo: durante a aula ficara excitado com a simples visão das coxas de Kaira. Ele poderia ter escondido facilmente, mas Forest parecia tão propenso a fazer Noble e os outros passarem vergonha que o denunciou assim que sentiu seu cheiro.
— Ei, Noble, e essa barraca armada aí?
Sua primeira reação foi arregalar os olhos e depois olhar para baixo, estava realmente marcando tudo. As bochechas dele arderam e encarou a garota ao seu lado que, descaradamente, mantia as orbes azuis apontadas para a calça dele.
— Kaira!
— O quê?! — ela tampou a boca com as mãos quando gritou e o rosto dela também ficou vermelho, mas ao contrário do que esperava, ela começou a rir, não uma risada contida e baixa, mas alta e escandalosa, até que lágrimas escorreram pelo rosto.
Todos estavam rindo, até mesmo Anna, mas ele não estava achando tão engraçado.
Depois daquele dia ele aprendeu duas grandes lições: não usaria mais calça moletom na aula e com certeza não se sentaria mais ao lado da amiga.
Outras situações como aquela aconteceram, algumas sem motivos e outras extremamente vergonhosas, mas ele superou aquelas mudanças numa boa, ao contrário da melhor amiga que parecia feliz numa hora e pronta para matar alguém em outra.
O humor de Kaira mudava com o tempo, se para bem ou pior, bom, dependia muito do momento.
Noble observava, impassível, os movimentos dela por todo o seu quarto; a cama dele estava forrada com roupas que ela tirara de dentro da mochila antes do banho, ele ainda tentava entender como cabia tanta coisa em um único espaço.
Ela deixou um copo d'água sobre a cômoda de roupas e se voltou para a mochila, procurando alguma coisa.
— Meu vestido rosa não está embaixo de você, Noble?
Ele bufou e se levantou, verificando se realmente não havia um pedaço de pano ali.
— Não — resmungou. — Por que não pode simplesmente colocar qualquer roupa? Olha tudo isso! — segurou algumas peças solitárias que estavam espalhadas pela cama dele. Aquilo era uma tortura. — Por que não trás logo todo o seu guarda-roupa para a minha casa?
— Você por acaso é idiota? Eu sou uma dama, não posso ir de qualquer jeito.
— Eu por acaso entendo alguma coisa sobre damas? — jogou-se nas roupas dela, sem se importar se ficariam amassadas ou não. — Vou dormir, quem sabe quando eu acordar você não encolheu o sapato pelo menos.
Noble esperava que ela retrucasse, como sempre, mas o silêncio de Kaira fez com que ele levantasse o corpo novamente. A amiga estava apoiada na cômoda e de cabeça baixa, com uma das mãos sobre a barriga.
— Kaira?
— Eu não vou mais — ela suspirou, pegou um comprimido amarelo e tomou com água, depois começou a recolher as roupas pelo quarto.
— Por quê?
— Tô com cólica!
— Ninguém mandou você nascer mulher — era uma brincadeira, mas o olhar magoado o fez repensar. Não era uma boa provocar Kaira naquele período. Ajudou ela a enfiar todas as roupas na bolsa e a puxou, fazendo-a se sentar na cama. — Deita ai, vou te ajudar, mas antes preciso pegar um daqueles óleos de bebê que a minha mãe usa em Bravery.
— Para quê?
Kaira deitou na cama, mas a expressão dela ainda era dolorida.
— Massagem!
Noble pegou o óleo no quarto de Bravery, deu uma olhadinha rápida no irmãozinho que dormia — ainda bem, porquê acordado ele chorava tão alto que eles tinham sorte de não ter vizinhança — e correu de volta para o quarto. Deitou-se ao lado de Kaira, que ainda estava de barriga para cima e com um dos braços sobre os olhos.
Colocou o óleo na mão e esfregou uma palma na outra até que estivesse bem quente, depois colocou ambas num ponto abaixo do umbigo de Kaira, onde ela sempre dizia estar inchada e começou a fazer movimento circulares e lentos, com suavidade moveu as pontas dos dedos para cima e para baixo logo após.
— Hmm... — Kaira abriu os olhos. — É muito bom.
— Se sente melhor? — pressionou mais os dedos, aumentando a intensidade.
— Uhum!
Ela se deitou de barriga para baixo quando Noble se afastou, depois de alguns minutos repetindo os movimentos, e esticou o braço para fora da cama, até se remexer toda e soltar um gritinho, assustando-o.
— Por que tá gritando, maluca?
— Meu vestido rosa! — Kaira praticamente enfiou o pano no rosto dele. — Vamos, eu só vou colocar ele e podemos ir!
Noble ficou olhando para a porta por onde ela saiu sem reação, como o humor feminino podia mudar tão rápido?
🌡️
— É gostoso! — comentou em voz alta depois de sorver todo o líquido transparente e doce.
— Aham — os olhos azuis brilharam em ironia e ela tomou o copo das mãos dele, bebendo algumas gotas e depois o enchendo com outro líquido. Noble não fazia ideia do que era, na verdade ele estava distraído demais em um jogo de sinuca para prestar atenção no que Kaira andava pedindo no balcão. — Agora beba isso!
Revirou os olhos e fez a vontade dela mesmo contra gosto, como diria não a Kaira quando ela ostentava um daqueles sorrisos perfeitos? A próxima bebida era azeda como limão, embora fosse muito deliciosa também, mas bem forte. Terminou de tomar tudo num único gole.
— Uau, você nem ao menos fez careta!
— Sua vez — encheu o copo para ela, então se inclinou em na direção dela, sussurrando contra sua orelha: — Sem caretas, Kaira.
Noble se sentiu como uma criança eufórica enquanto examinava rigorosamente a expressão feminina em busca de alguma contração involuntária, porém não encontrou nada que denunciasse a amiga, apenas perscrutou os olhos claros, que em nenhum segundo desviaram a atenção dos seus.
Suspirou um pouco febril e sorriu desconcertado — um sorriso jovial e torto — Kaira tomou a mão direita dele e perguntou:
— Você quer dançar comigo?
— Sério? — olhou para o centro do bar, alguns casais Novas Espécies se divertiam com a música lenta. — Não sei dançar.
— Mas eu sei e isso é tudo o que importa!
Manteve a mão unida a dela enquanto ambos caminhavam até a pista de dança, o vestido de Kaira balançavam conforme ela andava à frente de Noble; era de um rose claro, com detalhes pretos nos acabamentos delicados e sua textura parecia ser muito macia, batia na altura das coxas dela.
Kaira era uma garota durona, embora nunca tenha deixado de ser muito feminina, mesmo passando o tempo todo com ele e os outros machos.
A amiga se virou para ele e lentamente se aproximaram mais. Noble tentou manter os pensamentos ordinários de lado e atenciosamente procurou acompanhar os movimentos lentos de Kaira; ainda segurava uma de suas mãos com força e a outra estava na cintura feminina, apertando-a com leveza entre os dedos.
— Você está usando brincos — notou assim que olhou atentamente para as orelhas delicadas. Eram pedrinhas pequenas, claras e brilhantes, gostara delas.
— Sim — ela passou a mão que envolvia o ombro dele na joia.
— Eu gostei. Você fica bonita com eles, quero dizer — atrapalhou-se e sentiu um maldito calor subir pelo seu pescoço. — Não que você não seja, você é muito bonita. A fêmea mais bo—
— Obrigada, Noble! — Kaira o cortou com uma risada divertida e ambos deslizaram para à direita. A mão dela, momentaneamente, deslizou para a nuca dele, afagando os fios de cabelo com carinho. Observou ela de cima e Kaira o olhou no mesmo instante. — Você também está muito bonito.
Não respondeu de volta, apenas se contentou em não pisar naqueles pés minúsculos. Noble sentia que estava exatamente onde desejava, mas sabia que a razão não correspondia aos seus anseios, então o que ele deveria esperar de seus sentimentos?
Deveria esperar e com o tempo tudo se resolveria?
Sim... O nó que o sufocava — o nó da dúvida — pareceu se distanciar de sua cabeça e, com calma e quieto, aproveitou aquele momento que torcia para durar por toda uma eternidade. Sabia que, para a amiga, aquele não era apenas mais um dia juntos, tudo estava diferente, os dois estavam mudando, e ele sentia o mesmo.
— Seja lá o que for que esteja pensando — Kaira descansou o rosto em seu peito, murmurando baixo com sua voz deliciosa, mas ele a ouvia mesmo com a música alta. — Não importa.
Enlaçou a cintura dela com os braços e os dois não se afastaram quando a música mudou e os outros abandonaram seus pares.
Aquela seria uma noite longa, era quase ano novo.
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