Dois pais é demais
O coração de Kaira batia forte dentro do peito, duro e rápido, enquanto seus pés descalços esmagavam o barro macio por conta da chuva de mais cedo. A velocidade fazia com que o vento empurrasse o cabelo escuro para trás, mantendo-os longe de seu rosto enquanto corria o máximo que podia.
A sensação era boa.
Dentre todos os seus vícios, correr certamente era o melhor.
Era mais do que a brisa no rosto e os músculos queimando.
Eram as passadas longas na terra, movimentando todo o seu corpo; braços rentes ao tronco e acompanhando o ritmo, músculos do abdômen e costas protegendo a coluna do impacto direto; quadris, coxas, joelhos, panturrilhas, tornozelos e pés, todos funcionando como uma grande e única máquina. Coordenados em equilíbrio e movimento.
Tão quente.
Com suor escorrendo, o coração batendo, mente e respiração como uma só.
— Te peguei!
Braços fortes passaram por baixo de suas costelas e no outro segundo seus pés estavam foram do chão, a risada alta e forte chegou aos seus ouvidos.
— Você nem terminou de contar direito!
— Desculpa de má perdedora? — Noble murmurou ousado em seu ouvido.
— Me coloca no chão e eu vou te mostrar quem é o perdedor.
— E o que você vai fazer, nanica? — perguntou, divertindo-se com ela e aquilo a irritava. — Morder as minhas canelas?
O sorriso imediatamente sumiu do rosto de Kaira, dando lugar a uma expressão contrariada. Ela não suportava que falassem da sua altura, principalmente quando esse alguém era Noble e seus quase dois metros.
— Nós já conversamos sobre isto — resmungou. — Você que é excessivamente grande. Sua mãe com certeza te deu chá de bambu para tomar quando era criança!
— Tem certeza de que não é você que tem uma estatura precária?
Ela bufou, balançando as pernas no ar.
— Mencione a minha altura novamente e eu vou ser obrigada a morder suas canelas, gigante.
— Hmm, mas você tá brava? — o cinismo na voz de Noble era extremamente insuportável.
— Como você é irritante, me coloca no chão!
Noble a soltou e Kaira deu alguns passos para frente, infiltrando-se ainda mais na mata escura, sujando-se no barro conforme percorria o caminho de terra depressa. No meio da trilha deixou que um ruído novo e ao mesmo tempo antigo a guiasse, que o farfalhar das folhas nas árvores e aquelas soltas ao vento a levasse atenciosamente aonde mais desejava, que o som dos pequenos insetos escondidos a conduzissem até o paraíso na terra.
O seu local favorito, onde estar era o mesmo que experimentar um pouco do céu.
Ela fitou o mar de estrelas infinitas sobre sua cabeça, como um véu negro e pincelado por pontos brancos e brilhantes, os quais cintilavam adoravelmente ao redor da lua pálida.
As águas calmas do rio corriam tranquilamente entre as pedras e ela deixou se embalar pelo barulho.
Havia algo inexplicável e interessante na natureza, como se aquilo tudo tivesse sido criado para acalmar e acalentar os corações e mentes daqueles que necessitavam. Kaira não era uma religiosa devotada, acreditava na ciência e nas explicações das coisas, embora não pudesse deixar de se sentir encantada pelo sobrenatural e espiritual.
— Você sente isso? — sua voz soou baixa e ela não ouvia nada além do vento, água, animais e grilos na floresta, mas ainda assim tinha plena consciência de que Noble estava atrás dela.
Ele era como uma parte sua, incrustado tão fundo e intensamente em sua mente e corpo que duvidava que pudesse estar em algum ambiente sem sentir a presença dele.
Inspirou o ar puro para dentro dos pulmões e soltou um riso baixo; estar ali era bom, como se seu vigor estivesse sendo renovado.
— Um centavo pelos seus pensamentos...
Kaira pensou em uma resposta rápida e esperta, do tipo que os faria rir e trocar insultos divertidos mas, ao invés disso, virou-se e se aproximou dele, deleitando-se com a imagem de Noble como se ele fosse uma miragem no deserto, como o reflexo de um lago de onde ela desejava beber e se afogar.
O amava muito, mais do que companheiro com quem havia se deitado, mas como aquele melhor amigo que sempre estivera ao seu lado. Segurou as mãos quentes, deslizando seus dedos contra os dele, entrelaçando-os.
— Eles são todos seus, Noble — inclinou a cabeça, olhando diretamente para o par de olhos flavos. — Não precisa pagar.
Noble ronronou suavemente e terminou com o espaço entre os dois, encostando seus corpos o suficiente para que ela pudesse sentir o calor da sua pele bronzeada.
— Você está bem, Kaira?
— Eu não posso nem ser amorosa que você pensa que tem algo de errado comigo?
Ele balançou a cabeça, mostrando os caninos afiados em um sorriso bonito.
— Não é disso que eu estou falando e você sabe.
— Vem — puxou-o consigo em direção a beirada do rio. — Vamos nos sentar.
Soltou a mão dele e se sentou com os pés quase tocando a água, a grama abaixo das suas pernas fazia meras cócegas e ela encostou os joelhos nos seios, abraçando-os. Noble estava logo atrás dela, com as pernas ao seu redor e com o peitoral contra suas costas.
— Está tudo tão calmo e bonito — Kaira fechou os olhos e respirou fundo o ar gelado e puro da floresta a noite. — É tão bom... poderia permanecer para sempre aqui.
— Eu ficaria para sempre com você aqui.
— Sei que sim.
Ficaram os dois juntos e em silêncio, enquanto ele espalhava carinhos gentis e calorosos por suas coxas e panturrilhas, percorrendo-as lentamente com os dedos. Noble pressionou os lábios em seu ombro e Kaira riu baixinho.
— Tudo mudou, Noble...
— Eu ainda sou o mesmo — ele contestou no mesmo instante, fazendo com que ela revirasse os olhos.
— Acho que sim. Você é a única pessoa em quem eu confio completamente, com minha alma e coração e eu nunca, nunca mesmo, vou mentir para você.
Mentir seria dar uma informação falsa a ele, mudar a verdade, o enganar e deixar de cumprir com suas promessas, mas o que estava fazendo era omitir uma informação importante. Kaira apertou os olhos, confusa e nervosa, o que estava fazendo? A quem estava tentando enganar?
A si mesma?
Tantas desculpas, tantos meios para não contar a verdade, tudo para quê?
A sua intenção era o bem, mas o preço seria perder parte de quem ela era?
— Você não está bem.
Nisso ela concordava com Noble.
— Estou me sentindo péssima.
— Por quê?
— Eu não sei, Noble... está tudo tão confuso. Eu tenho dois pais, nem conheço um deles direito e tantas coisas me preocupam.
Noble virou a cabeça para ela, mas Kaira o ignorou, mantendo sua atenção na água em frente aos seus pés.
— As coisas que a preocupam estão relacionadas a Aaron? — ela não disse nada e nem sequer fez um movimento. Temia que a verdade escorregasse por seus lábios se o fizesse. Era difícil olhar para Noble e guardar tudo para si mesma. — Kaira?
— Eu não quero falar sobre isso, não agora.
— Acho que Aaron não vai concorrer ao prêmio de pai do ano, né?
Kaira não riu, e ele continuou:
— Tem alguém além de Aaron? Se alguém estiver te incomodando é só me dizer, eu acabo com ele. É Heaven? Nós dois sabemos que ele é um desgraçado!
— Não! Não tem absolutamente nada a ver com ele, caramba... eu nem me lembrava dele até você citar.
Noble entrelaçou seus dedos de novo, beijando sua mão ao puxa-la.
— Confia em mim, pode me dizer qualquer coisa.
Kaira hesitou, pensativa entre dizer o que realmente pensava ou manter o segredo, enquanto seu coração dizia para falar tudo de uma vez.
— Você é tão linda e inteligente — Noble murmurou contra seu pescoço de repente, tirando-a de seus devaneios, os lábios quente roçando brevemente contra sua pele gelada, deixando-a arrepiada. O seu coração pareceu ter parado por um breve instante, junto de uma singela pressão, para depois bater descontroladamente; aquela sensação era algo do qual nunca se esqueceria. Quando ele tocava sua pele e seu corpo reagia intensamente em efeito. A voz baixa e envolvente continuou a soar calma próxima a sua orelha, cujo lóbulo foi aprisionado e mordido ligeiramente, fazendo-a soltar um breve suspiro. — Me importo muito com você, Kaira, muitas das vezes mais do que me importo comigo mesmo. Estou feliz quando você está, mas quando fica triste é como se partisse meu coração em dois, tomo suas dores como as minhas porquê prometi que a protegeria e você concordou. Enquanto eu viver não quero que se sinta indefesa.
— Eu sei...
— Nós dividimos nossos sentimentos desde sempre, alegrias e tristezas, e você sempre esteve ao meu lado e me colocou para cima quando precisei — dedos quentes se fecharam ao redor de seu queixo e Noble a fez olhar para trás, diretamente para o rosto dele. — Agora me deixe fazer o mesmo por você, aceite dividir esse fardo comigo.
Kaira suspirou e começou a contar sobre tudo o que acontecera naquele dia, sem citar a conversa que tivera com o seu pai depois, mas revelou toda a verdade sobre Aaron e sua mãe, como supostamente se conheceram e como se afastaram e, por fim, disse:
— Estou com medo.
— Medo?
— Medo de que as pessoas me odeiem por coisas que eu disse ou fiz, ou por aquelas que ainda vou fazer um dia, você sabe, eu costumo me expressar sem pensar — ela estava jogando sujo, mas Noble estava caindo como um patinho, então deu sua cartada final, sabendo que ele ficaria ao seu lado. — Medo de que você me odeie, Noble.
— Eu nunca seria capaz de te odiar, Kaira. Eu sou apaixonado por você. Eu amo você com todo o meu coração.
— Mas e se—
— Não tem "e se"... não vai acontecer, nunca. Você pode até errar, mas eu te perdôo logo após. Não posso ficar longe de você.
— É uma promessa?
Ele é meu, pensou, e carregaria o segredo por mim, se eu pedisse.
— Sim!
— De dedinho?
Noble pegou o dedinho dela, apertando-o contra o dele.
— De dedinho, e é uma promessa que não posso quebrar.
Kaira sorriu tristemente.
— No futuro — murmurou — eu vou lhe contar algo, um segredo, uma verdade detestável, algo que o fará desejar viver em um mundo diferente.
— No futuro?
— Sim... preciso pensar nas palavras ideais.
— Palavras nunca lhe faltaram.
— Não há um jeito tão simples de dizer, eu só não quero mergulhar ainda mais em mentiras e enganos, não com você. Então espere alguns dias, me dê algum tempo e saberá sobre tudo.
Pode ver dúvida no semblante dele, as linhas masculinas e fortes perfeitamente expressando confusão. Ele era muito lindo e enchia o seu coração de calor, não poderia esconder mais nada de Noble, não quando ele parecia a conhecer melhor do que qualquer um.
— Agora vamos, eu ainda tenho forçar para correr!
Ela começou uma brincadeira boba, correndo e se escondendo dele, encobrindo-se na mata densa. A chateava que não pudesse o ouvir ou ver muito bem na escuridão, para um cara grande ele era bem silencioso enquanto caminhava.
Estava atrás de uma árvore, mantendo suas costas contra o tronco, quando folhas se desprenderam dos galhos acima dela e caíram sobre seu cabelo. Ela sorriu e encostou a cabeça na árvore, olhando para cima, em direção aos ramos grossos.
Noble estava lá, não que isso a surpreendesse. Se não fosse aquelas folhas soltas a posição dele nunca seria exposta.
Ele se moveu com facilidade na copa, enquanto Kaira observava todos os seus movimentos. Era ágil e parecia leve lá em cima. Noble enlaçou as pernas em um galho firme o suficiente para sustentar o seu peso e jogou o corpo para frente, na direção dela, ficando de ponta cabeça.
— Você parece bem confortável assim!
Alcançou o rosto dele com as mãos e afastou todas as mechas louras para longe de seus olhos. Ele recebeu o toque com carinho, esfregando a bochecha em sua palma.
Kaira umedeceu os lábios com a língua e sorriu.
— Desça daí.
— Eu preciso de um bom motivo para fazer isso.
— Hm...
Colocou-se na ponta dos pés e beijou a bochecha dele, fitando intensamente aqueles olhos dourados e com as pupilas felinas dilatas, tornando o olhar dele mais escuro. Em seguida, pressionou brevemente seus lábios ao dele, enquanto suas mãos subiam distraidamente pelo abdômen forte e quente, descoberto pela camisa caída enquanto ele permanecia de cabeça para baixo.
— Imagino que você saiba o motivo agora — sussurrou.
Noble desceu imediatamente e as mãos dele agarraram sua cintura com força, tirando-a do chão. Kaira segurou os ombros dele, rindo, enquanto contornava as pernas ao redor de Noble, sentindo-o por completo e firme, totalmente rente ao seu corpo.
Olhou atentamente para os seus lábios e rosto, observando como os cílios espessos e dourados se fecharam antes das suas bocas se encontrarem. As respirações mescladas faziam com que todo o seu corpo oscilasse perante o futuro toque.
Sua coluna tocou novamente o tronco daquela árvore e Noble serpenteou a mão por todo o seu corpo, segurando por fim sua nuca, penetrando os dedos em seu couro cabeludo e puxando uma porção de fios. Quando os lábios dele tocaram o seu, toda a racionalidade sobre os problemas desapareceram da sua mente, todos os motivos que a afligiam se dispersaram.
Nada mais existia, só a necessidade enlouquecedora e alucinante de o tocar, de o sentir mais e mais. Os lábios se moveram em sincronia, acostumados ao beijo um do outro e a língua de Noble, em certo momento, provou da sua. Trocaram saliva lentamente, escorregando as línguas conforme a intimidade aumentava, o que Kaira considerava delicioso e excitante.
Enlaçou o pescoço dele, rindo sôfrega quando se separaram e Noble começou a beijar sua pele abaixo do queixo; torturando-a a cada estímulo, quase que como um sopro de água quente, como quando o líquido ferve e entra em estado de ebulição. O ar quente e molhado em sua pele, queimando sem parar, deixando-a inebriada.
— Kaira!
O rugido na floresta a assustou, tirando-a do transe, praticamente jogando um balde de água fria em seu corpo.
— É o seu pai!
— É o meu pai!
Ela deu um tapa no braço dele, revirando os olhos.
— Eu sei!
Kaira tentou se arrumar para parecer pelo menos um pouco apresentável quando Leo aparecesse, pois ela podia ouvir ele correndo como um touro pela floresta, mas duvidava muito que ele fosse deixar essa escapada dela passar. Não era uma criança, mas conhecia bem o termo "enquanto viver embaixo do meu teto minhas regras são lei".
Olhou Noble, se sufocando em um riso, a boca dele estava toda vermelha e o cabelo bagunçado.
— O que foi? — ele rosnou, colocando as mãos em frente a bermuda que usava. — Seu pai vai me matar.
— Eu não vou deixar, relaxa.
Mas ele não relaxou, ela também não o faria se estivesse no lugar dele, pois seu pai apareceu como uma tempestade na escuridão. O olhar enfurecido a fez engolir em seco.
— Oi, pai! — tentou soar o mais educada possível, seria bom puxar o saco dele naquele momento. — Noite bonita, não é?
Leo rugiu e Kaira encolheu os ombros, o som poderoso era assustador. Ele não a olhava, ao invés disso manteve os olhos em Noble, então ela deu um passo para o lado, permanecendo no caminho entre os dois.
— Ei, estou aqui!
Pareceu que isso o deixou ainda mais irritado.
— Pois não deveria estar! — a voz dele soava como um trovão e toda a floresta ficou em silêncio, tudo o que poderia era ouvir ele, como um soberano na mata. Kaira não tinha medo dele, o respeitava — na maior parte do tempo — mas Leo tinha caninos afiados e parecia realmente assustador quando os mostrava. Não duvidava nada de que havia parte de um leão nele. — O que eu te disse hoje?
Ela franziu o rosto, confusa.
— Vocês dois me deram um susto! — ele rugiu de novo. — Vamos voltar agora para casa, Kaira.
— O que houve, pai? — perguntou, tentando manter sua voz calma e não gritar de volta. — Só estava dando uma volta, por que está tão irritado?
— Não pode sair por aí assim, não em tempos como este, vamos voltar e você vai ficar onde eu possa te ver, mocinha, como eu disse antes!
Ela fechou a cara, insatisfeita.
— Não sou uma prisioneira para ficar trancada em casa, nunca fui — resmungou. — E o que há de errado com este tempo? Eu não entendi!
Noble deu um passo, ficando ao seu lado e juntando suas mãos. Trocaram um olhar rápido e, por o conhecer bem, ela percebeu que o companheiro gostaria de falar algo e fez um gesto simples, incentivando-o.
— Pensando bem, Kaira — começou a falar, estreitando os olhos. — Meu pai mandou eu me cuidar, coisa que ele nunca fez antes — ele olhou para o seu pai depois. — Nós não estamos seguros aqui, Leo?
Ela estranhou muito aquilo, sem entender absolutamente nada.
— O que está acontecendo, pai?
Leo suspirou profundamente, parecia mais calmo ao vê-los, embora seu olhar ainda permanecesse selvagem.
— Um Nova Espécie sumiu em Homeland.
Kaira arregalou os olhos, sentindo uma sensação horrível percorrer o seu corpo; arrepios ruins e que fizeram seu estômago se contrair.
Aquilo não podia ser real.
— Simplesmente sumiu? — indagou, realmente chocada. Nunca ouvira algo assim, parecia impossível. — E as câmeras e os guardas? Existem tantos meios de segurança tanto lá quanto aqui, eu não consigo entender... Isso é sério?
Leo rosnou impaciente e cruzou os braços.
— É sério sim, Kaira, por que acha que eu brincaria com algo assim? — resmungou. — Não há absolutamente nada, ele sumiu. Justice e os outros desconfiam de alguém infiltrado, que já está sendo procurado, por isso precisamos tomar cuidado, entendeu?
— Um traidor... — murmurou.
Noble também rosnou.
— Que filho da puta!
— Por enquanto não existem provas ou pistas de onde o Espécie possa estar — Leo direcionou um olhar para Kaira e ela entendeu imediatamente. — Então precisamos ficar de olhos abertos e sempre tomar cuidado, andar em grupos. Agora, Kaira e eu vamos com você até a sua casa, não é bom que andem sozinhos por aí.
Kaira não pode deixar de ficar tensa, o olhar de seu pai praticamente jogou uma nova informação em seu colo, em sua cabeça e ela não pode deixar de assemelhar o sumiço aos Anti-Espécies que estavam com os filhotes.
Sentiu como se houvesse um novo peso em seus ombros, algo que desejava ansiosamente resolver. Afinal, não prometera a Leo anos atrás, quando ainda era uma pequena menina, salvar Novas Espécies?
Entretanto, como o faria?
🌡️
— Me cura aqui, tô caído! — Kismet rosnou, impaciente.
— Cala a boca, tem um cara mirado na minha posição, se eu sair vou morrer e ai já era — Forest mantinha os olhos atentos na tela do celular, nem ao menos piscava.
— Leon, me ajuda!
— Espera, Kismet — o pequeno estava deitado na cama de Kaira, ocupando todo o espaço, nem ao menos deixara Noble chegar perto. — Estou indo.
Alguns segundos depois Kismet se levantou do chão e trocou um bater de mãos com Leon, os dois riram.
— Tá vendo, Forest? — Kismet provocou. — Esse daqui é meu parceiro de verdade, enquanto você ficou com medo de tomar bala ele veio e me ajudou.
— Que se dane, queria mais era que você morresse mesmo e calasse a boca.
Noble gargalhou, achando graça da expressão irritada no rosto do melhor amigo. Leon ergueu os olhos, fitando-o com indiferença.
— Você não vai jogar, Noble?
— Eu passo, deixo os jogos para vocês.
— E o que você gosta de fazer? — Leon perguntou inocentemente.
Kismet e Forest trocaram um breve olhar e ele percebeu a malícia entre os dois.
— Ele gosta de peg—
— Cala a boca — rosnou para Kismet, que apenas riu, voltando para o jogo. — Bom, eu gosto de caçar e, agora que eu trabalho na metade do tempo, quando estou livre prefiro fazer algo com a sua irmã.
— Algo... — os dois idiotas provocaram juntos. — Aham!
Leon largou o celular, deixando os outros dois idiotas discutindo e fez algo que Noble não esperava, sentou-se na cama e indicou um espaço ao lado dele para que se sentasse também. Não mentiria quanto ao que sentiu, pois alívio e afeição varreram para longe as diferenças entre os dois, ao menos era o que imaginava.
Foi até o filhote, que o olhou indeciso, mas logo disse:
— Eu queria pedir uma coisa.
— O quê?
— Quero caçar com você.
— E por que não pede ao seu pai?
Leon fez uma careta infantil, contrariado.
— O meu pai me trata como um bebê quando estamos lutando ou caçando, nunca me deixa tentar pegar um cervo sozinho, mesmo eu pedindo muito!
— E você espera que eu vá contra às regras dele só para te satisfazer? — perguntou, querendo saber até onde o pequeno ia para conseguir o que queria.
— Aurora disse que você levou Kaira para longe de casa quando eram crianças, para uma brincadeira sozinhos lá fora, mesmo que contra a vontade do meu pai, por que não pode fazer o mesmo comigo? E, tem mais... — Noble ergueu as sobrancelhas, interessado. — Eu estou afim de fazer um acordo.
— Vá em frente, me diga o que tem a oferecer e talvez eu pense no seu caso.
— Minha irmã.
Noble segurou uma risada, tentando manter a seriedade.
— Você vai mesmo dar sua irmã pra mim?
— Não! - Leon rosnou. — Ela é minha.
— Ela não vai gostar de ouvir isso, Leon — brincou. — Kaira odeia quando tentam se sobrepor à ela, você deveria saber.
— Eu sei, conheço ela melhor do que você!
Não retrucou, apenas balançou os ombros em descaso.
— Não.
— Mas, Nobl—
— Me dê um único e bom motivo, que não esteja relacionado a sua irmã — um breve sorriso surgiu no canto de sua boca. — Ela está fora de negociação.
— Eu sou grande — Leon se mostrou com orgulho, levantando-se da cama e ficando em pé em frente a ele. — E rápido.
— Isso é verdade — Noble admitiu.
Não era raro que uma criança Nova Espécie parecesse mais velha do que uma completamente humana. Acontecia. Fora o mesmo com ele, que cresceu muito rápido tanto em altura e músculos. Leon não parecia muito diferente nesse quesito. Ficou de pé, aproximou-se do garoto e se agachou em frente a ele. Leon não se moveu um centímetro, apenas o olhava curioso.
— Está entediado com as brincadeiras de criança?
Ele afirmou, balançando a cabeça.
— Eu não vou pegar leve com você, se vier caçar comigo — deixou bem claro. — Entendeu?
— Sim!
— Ótimo — balançou o cabelo dele e se ergueu. — Mas antes vamos falar com o seu pai.
De orgulhosa e animada, a expressão de Leon passou para descontente.
— Ele nunca vai deixar!
— Confia em mim, filhote — empurrou o ombro dele lentamente, em uma brincadeira, mas Leon rosnou, mostrando-lhe as presas. — O que foi?
O garoto o olhou desafiadoramente.
— Treinar é uma coisa e, agora que a minha irmã está fora de cogitação, não quer dizer que somos ou seremos amigos. Você é meu adversário e não vai ganhar ela — Noble assentiu, sério. — Ótimo, agora eu vou ir até Aurora e contar tudo para ela.
Acompanhou o menino com os olhos até a porta, sem dizer nada. A arrogância de Leon era nítida, ele tinha altivez exatamente como a irmã, Kaira só não era tão ranzinza.
Falando nela, a companheira entrou assim que o menino saiu e Noble se sentiu como um idiota sorridente. Kaira estava muito bonita - como sempre - usando um vestido verde escuro que chegava até a metade das suas coxas e sapatos escuros. O decote generoso no vale entre os seios chamou sua atenção, a pele branca e macia contratava maravilhosamente com o tom da roupa, assim como o brilho dourado do colar em seu pescoço.
Os fios castanhos e lisos estavam presos para cima, em um penteado simples.
Foi até ela, segurou sua mão e plantou um beijo sobre a pele suave.
— Eu já disse que você é a mulher mais linda do mundo?
— Algumas vezes - ela respondeu com um sorrisinho, mas ele seria um idiota se não percebesse que a companheira parecia desanimada.
Inclinou a cabeça para o lado.
— O que foi, gata?
— Nada.
Ela estava mentindo e ele queria que ambos estivessem sozinhos para que Kaira pudesse compartilhar seus pensamentos verdadeiros. Disse para os amigos saírem e eles o fizeram, mas não antes de Kismet fazer uma gracinha. Típico.
— Eles já foram.
A puxou pelos pulsos, sentou-se na cama e a pegou nos braços, deixando-a confortavelmente em seu colo. O cheiro de Kaira fazia com que ele desejasse tirar as roupas e se deitar com ela no colchão. Roçou lentamente o corpo contra o dela, querendo senti-la até mesmo depois que estivessem separados, marcando a essência feminina em suas roupas, pele e cabelo.
— Noble! — ela colocou a mão em seu peito, empurrando-o e rindo. — Você sabe que isso faz cócegas!
— E cócegas a faz sorrir — tocou o rosto dela, fitando de perto o azul escuro de seus olhos. — Você não respondeu a minha pergunta de antes.
Kaira passou os braços por sua cintura, abraçando-o e encostando a cabeça em seu peito.
— Eu não sei se quero ir — murmurou. — Não sei se quero realmente lidar com Aaron. Acho que não sou tão corajosa assim.
— Bobagem, você é incrivelmente corajosa e forte. Nós vamos até lá e vamos fazer isso juntos, não vou sair do seu lado em momento algum e nem por nada.
— Sem chances de ele não estar lá? — perguntou, esperançosa.
— Ele vai estar.
— Droga...
Havia se passado uma semana desde a descoberta de Kaira sobre o seu pai biológico e, pelo incrível que pareça, ela ainda não fora tirar satisfação com Aaron ou contar a verdade, o que era impressionante, levando em consideração que ela não deixava nada passar em branco e agora o desânimo e silêncio dela começavam a preocupá-lo.
Ela não era assim.
Nunca fora.
Noble tinha conversado com Kismet sobre a presença da Força Tarefa na Reserva, a pedido de Kaira, e o amigo dissera que o avô estaria com os outros ali no final de semana, a chance perfeita para ela se encontrar com Aaron.
Faltava pouco para que estivessem juntos no mesmo lugar.
Ele só não esperava que Kaira fosse parecer tão insegura, talvez não compreendesse muito bem a situação, mas ficaria ao lado dela, independente de suas escolhas.
— Ele é parte do que eu sou — Kaira confidenciou baixinho, segurando a camisa dele com força entre os dedos. — Cinquenta por cento, metade de mim. Agora parece que nem me conheço completamente, porque existe essa lacuna sem informações, um espaço de tempo desconhecido, uma parte minha que está em branco. Você me entende?
— Sim — compreendia realmente. Novas Espécies como o seu pai não conheciam os progenitores, eles viviam no escuro quando se tratavam se seus pais biológicos. Em algum momento das suas vidas eles se sentiram daquela mesma forma. — Mas, tem algo a mais, Kaira.
— O quê?
— Você é o que é, independente do que seus pais são — arrastou os dedos pela bochecha pálida, em um carinho especial. — Uma mulher que quer desesperadamente se transformar em uma heroína.
— Do que você está falando?
Noble sorriu brevemente, guardando os pensamentos para si mesmo e beijou a testa dela.
— Você me deve uma resposta no futuro, moranguinho.
🌡️
As cinco cartas espalhadas pela mesa faziam parte de mais um dos vários hobbies da sua companheira, que desafiava a todos de cabeça erguida, sorrindo pomposamente, declarando em voz alta e orgulhosa o que se passava por sua mente.
Ao menos era como ela fazia, mas não naquela noite.
Kaira nem ao menos olhou para Aaron quando se sentou na cadeira ao lado dele, manteve atenção apenas nas cartas em sua mão e nas fichas de aposta, enquanto ele ficou em pé atrás dela, observando o jogo.
— Aposto tudo — Trey riu, colocando as pequenas peças redondas no centro da mesa, assim como seu copo. — Até a minha cerveja.
— Tá tão quente quanto mijo, por isso ele está apostando — Shane retrucou, jogando as cartas de lado, em desistência. — Passo.
Os homens riram e Noble franziu o cenho, sentindo nojo. Cerveja era horrível.
— Vá em frente — Aaron empurrou as próprias peças para frente, aumentando a aposta.
Era a vez de Kaira.
— Eu dobro — ela sorriu pela primeira vez na mesa e apontou um dedo para Trey. — E, se eu ganhar, você vai pegar uma bebida de verdade pra mim.
— Tô nessa — Tim continuou e Kaira se mexeu na cadeira. Induzir a aposta de um adversário para ela era praticamente uma arte.
As cinco cartas espalhadas em sequência eram rei de espada, oito de ouros, dois de paus, rei de ouros e quatro de espadas.
Noble deu uma olhada nas mãos de Kaira e entendeu porque ela estava insistindo em apostar o dobro e levar os outros consigo; ela tinha o rei de paus, por conseguinte uma trinca com cartas altas.
Pôquer não o agradava muito, mas Kaira fizera questão de o ensinar conforme aprendia.
Viraram as cartas ao mesmo tempo e Kaira gritou animada.
— Droga, essas cartas estão mal embaralhadas! — Tim resmungou, com aquela expressão zangada de sempre.
— Você sempre diz isso quando não tem uma boa mão! — Trey riu. — Pois bem, qual a bebida que a senhorita gostaria de ganhar?
— Qualquer coisa forte e com bastante cafeína, obrigada!
— Tá certo, já volto, não comecem sem mim!
— Não vamos — Kaira acenou para o soldado e voltou sua atenção para Noble. Estava satisfeito com o sorriso no rosto dela. — Eu sou a melhor, você viu?
— O velhinho está irritado.
— Ele não gosta de perder, eu entendo.
Aaron, de repente, entrou na conversa entre os dois.
— Nenhum de nós gosta, Kaira — ele sorriu para ela, mas não foi retribuído. Kaira permaneceu imóvel, com as costas e ombros tensos; os olhos estranhamente vidrados no peito de Aaron, sem realmente o encarar nos olhos. — É engraçado jogar com vocês, dialogam o tempo inteiro. Meu pai sempre me dizia para sorrir mais e falar menos, para não dar chance aos meus adversários, mas eu nunca segui muito bem os conselhos dele.
O silêncio dela fez com que o sorriso do homem desaparecesse.
— Você está bem?
O olhar feminino para Aaron foi o mais sério e gélido possível, Noble não queria saber como era estar na pele dele.
— Eu não estou me sentindo bem — ela segurou a sua mão. — Vamos embora, Noble.
Kaira levantou e o puxou consigo até a saída do bar, mas eles foram interceptados por Trey antes, que trazia consigo um copo grande e cheio.
— Obrigada, Trey, eu tô precisando!
Noble não ficou surpreso quando ela pegou o copo e virou a bebida marrom, sorvendo tudo até a última gota.
— Valeu!
Os dois sairam juntos e o ar frio da noite fez com que Kaira apertasse o seu braço, agarrando-se nele com força. Andaram alguns metros à frente, no entanto ele se preocupou quando pareceu que ela estava cambaleando e na verdade estava, praticamente tropeçando nos próprios pés, por isso a pegou no colo e levou até o capô do carro.
— Ei — segurou o rosto dela com ambas as mãos, as bochechas estavam coradas. — Não vai desmaiar.
— Eu estou bem — ela riu. — Foi a minha pressão.
— Tomou o seu remédio hoje?
Kaira revirou os olhos.
— Sim, pai.
— Vamos esperar um pouco aqui, até que você esteja melhor.
— Eu me sinto ótima — a voz dela soava meio grogue e ela riu sem motivo. — Não sei o que tinha naquela bebida, mas... uh, me sinto nas nuvens agora.
Noble estralou o dedo em frente aos olhos azuis.
— Terra chamando!
A porta do bar abriu outra vez e Aaron também saiu. Noble queria muito que ele simplesmente seguisse reto e os ignorasse, mas o homem fez exatamente o contrário. Caminhou até eles e abriu os braços, dizendo:
— O que aconteceu lá dentro?
— Meu Deus — Kaira choramingou. — Estou vendo o Aaron em dobro, isso é demais pra mim!
— Ela está bem?
— Só chapada.
Aaron tirou algo do bolso e ofereceu a Noble, era uma pequena barra de chocolate.
— Toma, isso sempre resolve.
Ele até pegaria se Kaira não tivesse dado um tapa na mão de Aaron, jogando o doce para bem longe. Ela colocou os pés no chão e quase caiu para frente, mas Noble a segurou antes.
— O que você quer, Aaron? — perguntou grosseira.
O homem deu um passo para trás, confuso. Noble não o julgava por aquilo.
— Kaira, menos, por favor.
— Eu prefiro ser decisiva do que indecisa, Noble — ela olhou bem para Aaron. — Chega de belas palavras e cortesias, eu não conheço você e também não quero conhecer. Agora dá o fora.
A segurou com mais força, impedindo-a de caminhar até Aaron e fazer qualquer besteira, porque era exatamente o tipo de coisa que ela faria sem pensar.
— Ei, garota... - Aaron tentou se aproximar. — Eu não sei o que fiz para você, então me explique.
— Você perdeu tudo — Noble desviou o olhar do rosto dela, abalado por Kaira estar quase chorando enquanto falava. Ele a entendia. — E eu odeio perdedores.
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