À Prática
Noble se inclinou sobre a mesa e olhou avidamente para a tela do computador, cujas imagens passavam em tempo real o que acontecia próximo a cena do "assalto".
— Cadê ela?
Trey e Andrei riram dele, mas não se importou. Não tinha tempo para pensar no quanto estava agindo como um idiota tão ansiosamente. Era Kaira e não importava a situação, queria vê-la antes de qualquer coisa.
— Calma — Aaron murmurou e passou para a próxima câmera, de onde ele podia ver o caminhão da clínica científica. — Ai está o falso alvo... — passou para a próxima que, do ângulo certo, podia-se ter a visão de um carro grande e preto, com vidros bem sugestivos. — E aqui os nossos ladrões.
— E Kaira?
— Aqui!
Jericho, que não podia ficar de fora naquela situação, apontou para um ponto distante e do outro lado da rua, na calçada em frente a clínica.
E lá estava ela, olhando para a praia até que o babaca na frente dela encostou em sua mão.
Todos olharam para Noble no mesmo instante e ele segurou a respiração. Nem sabia dizer o que sentia. Raiva, frustração e tristeza.
Saudade.
Queria estar com ela, segurando a mão dela e olhando o mar.
— Tudo bem... — disse a si mesmo. — Eu tô bem. Nós podemos ouvir eles já?
Kaira tinha concordado em usar um pequeno microfone que, segundo Aaron, tinha implantado naquela mesa em questão. Sabia que não era coisa da ONE, era coisa do Aaron, só não sabia como ele podia ter arrumado tudo tão rápido e principalmente no litoral, que era bem longe de onde Kaira estava "trabalhando".
— Sim. Vou abrir o áudio.
Uma voz meio abafada pelo som das ruas e do mar chegou até eles.
— Sorria — disse o homem que ele sabia agora se chamar Nate. — Estamos em lua de mel, deveria estar mais animada.
Que ridículo.
— Fique de olho na missão, não em mim.
Noble sentou e riu, meio desacreditado e aliviado. Aquele era exatamente o tipo de resposta que ela daria.
— Poxa — o filho da puta riu com a resposta dela. — Você sempre me rejeita, por acaso tem um namorado?
— Marido.
Todos os olhos voltaram novamente para Noble e como num passe de mágica toda aquela sensação de frustração passou e deu lugar ao regozijo.
Marido, ela o tinha chamado de marido, estava se sentindo nas nuvens.
— Quando ela voltar vamos nos casar!
— Se ela aceitar — Jericho brincou. — Kaira é durona demais.
— Vou usar isto contra ela — apontou para a tela.
O homem que estava com ela parecia tão surpreso quanto Noble.
— É mesmo? — ela acenou, confirmando. — E como ele se chama?
— Hm... o nome é Não e o sobrenome Te Interessa.
Noble revirou os olhos. Típico.
— Uau, ele deve amar o seu senso de humor.
Sim, ele amava.
O homem continuou:
— O que ele tem de tão especial para você me ignorar?
Noble ficou ansioso pela resposta.
— Honestidade?
A resposta o surpreendeu. Ele não esperava que ela dissesse isso.
— Então você é do tipo que gosta de mentir para inocentes? Sente prazer em olhar para o seu marido e pisar nele com esse seu comportamento? É uma daquelas tiranas que gostam de mandar? — o cara riu e Noble franziu a testa. — Eu posso ser submisso se quiser.
Submisso?
— É exatamente por isso que eu prefiro ele. Honestidade é uma virtude, não um motivo para ser chamado de inocente e se julgado de idiota — ela parecia ter a resposta na ponta da língua, como sempre. — Quanto a submissão, bem... — ela terminou num tom extremamente sarcástico. — Ele sempre foi bem ativo, então não preciso da sua obediência, mas obrigada de qualquer forma pela oportunidade.
Noble riu novamente, sentindo-se meio que embriagado pelo orgulho inflado.
— Eu poderia dormir sem essa.
Kaira não respondeu, mas Noble sim:
— Com certeza podia, babaca.
Algum tempo depois, enquanto ela mexia no celular e Aaron discutia com Trey e Andrei, o homem em frente a Kaira voltou a falar e chamou atenção de todos.
— Eles estão levando as coisas para o caminhão. Está quase na hora.
Aaron mudou de câmera e Noble finalmente pode vê-la melhor. Era a primeira vez que via Kaira depois de meses e como ela estava diferente. O cabelo estava curto e era nítido que tinha perdido peso.
Embora estivesse linda naquele dia ensolarado, podia perceber os nítidos sinais de cansaço e estresse em sua feição séria.
Parecia mais com Aaron com o cabelo curto, as sobrancelhas escuras e expressivas davam a ela um ar mais adulto e frio. O nariz reto e bonito... Noble virou o rosto e olhou para Aaron. Sim. Ela tinha puxado a Aaron.
— Ela fica mais parecida com você com o cabelo curto.
Aaron sorriu tristemente e concordou.
— Gostava do cabelo longo.
— Eu também — Jericho disse.
Noble apenas deu de ombros e voltou a olhar para ela.
— Gosto dele curto — murmurou. — Faz com que os olhos dela ganhem mais destaque. Eles são perfeitos... como se tivesse todo o azul do mundo.
Um azul que o desarmava totalmente, de uma forma que parecia ler sua mente e infiltrar sua alma. E era como o oceano, uma hora calmo, tranquilo e depois tempestuoso, do tipo que revirava toda a sua vida.
— Palavras de um homem apaixonado. — Andrei zombou. — Você é do tipo romântico?
Virou-se para Aaron.
— O que esse cara ainda tá fazendo aqui?
Aaron bufou.
— Eu também tenho vontade de estourar a cabeça dele às vezes, tipo, umas três ou quatro vezes por dia... você se acostuma.
— A ação vai começar — Trey alertou. — Olhos na tela, hora do assalto de mentira.
Os homens que sairam da van estavam vestindo roupas escuras e máscaras.
— Estão usando fuzil.
— Claramente adaptados para as forças armadas norte-americanas — Andrei murmurou e trocou um olhar com Aaron. — São fuzis M16.
No total eram seis homens e eles cercaram a van da clínica rapidamente, ao mesmo tempo em que parte da multidão entrava nas lojas do comércio e outra parte corria para longe.
Kaira e Nate estavam no chão, atrás das mesas na calçada. O homem estava mexendo no celular, ignorando toda a ação. Kaira observava atentamente e de repente houve um disparo, ela se encolheu e Noble desejou estar lá novamente.
— O idiota só está atirando para fazer cena — Trey resmungou. — Poderia acertar um civil.
— Eles não se importam — Jericho respondeu. — Eles me dão nojo.
Noble não estava prestando atenção na ação, mas em Kaira que, naquele segundo, olhou brevemente em direção a câmera e falou:
— Já está acabando...
E Nate respondeu, como se tivesse sido uma pergunta.
— Sim, linda. Então vamos para casa.
O assalto foi rápido, eles pegaram poucas caixas e logo depois o motorista do carro preto acelerou em fuga. A polícia chegou pouco depois, claramente atrasada. Kaira e Nate, que fingiam ser apenas civis, levantaram-se e conversaram com os policiais.
Depois sairam de mãos dadas, o que o fez querer vomitar.
— Eu tenho trabalho — Trey olhou o relógio. — Vejo vocês depois.
— Também estou de saída — Jericho avisou. — Vamos treinar hoje, Andrei?
— Claro! — o homem riu e se levantou, esbarrando na cadeira de Noble. — É bom saber que alguns tem coragem de me desafiar.
Não respondeu, apenas esperou o idiota sair, girou com a cadeira de rodinhas e perguntou a Aaron:
— Por que raios isso vai fazer alguma diferença?
Apesar de ter entendido como as coisas deveriam acontecer, ainda não compreendia como o plano afetaria o grupo Anti-Espécie.
— Estava olhando os nomes de empresas privadas que patrocinam o Gegen Arten e não me surpreendeu que essa em específico esteja entre elas. Não foi um roubo de verdade, mas acho difícil conseguirem provas para comprovar, caso contrário eles poderiam ser acusados de furto qualificado e comunicação falsa de crime. Hackear as câmeras na área do falso roubo foi uma tentativa deles diminuirem as evidências, mas eles não contavam com o fato das câmeras estarem funcionando perfeitamente graças a nossa garota ter nos avisado antes.
— E como isso prejudica Gegen Arten? O que eles perdem? — perguntou rapidamente. — Eles estavam de máscara.
— Eles perdem credibilidade com os seus patrocinadores — Aaron desviou os olhos da tela para ele. — É melhor descobrir o máximo possível sobre eles, aliados, inimigos, pontos fortes, pontos fracos e somente depois agir. Eu já disse.
— Entendi... estava pensando, quando chegar a hora de agir, nós não vamos ter a proteção do congresso graças ao silêncio que você pediu a Justice. Vamos ter apenas a Força Tarefa ao nosso lado e, levando em consideração o tanto de Espécies presos, eles devem ter um número grande de mercenários armados até os dentes.
Aaron riu.
— Não se preocupa com isso.
Noble ergueu as sobrancelhas.
— Você está escondendo alguma coisa.
— Talvez...
Balançou a cabeça negativamente.
— Você é péssimo, Aaron.
— Eu te disse, rapaz. Vaso ruim não quebra.
Noble soltou um suspiro e se levantou, tinha trabalho e depois estudaria sozinho. Era mais difícil do que parecia, administrar o tempo para si próprio e para livros.
Caramba, estava lendo livros de pedagogia. Era um passo para estudar mais a oferta de Justice.
— Noble — Aaron o chamou antes de sair. — Você deveria passar na academia hoje.
— Por quê?
— Talvez Andrei precise de uma surra...
🌡️
Noble estava caminhando em direção a academia, sua intenção era realmente dar uma surra bem dada em Andrei até que ele pedisse para parar, mas uma vozinha estridente e infantil gritou muito próxima dele.
— GIGANTE DE AÇO!
Virou-se a tempo de ver a pequena garotinha correndo em sua direção e abraçando suas pernas. Ele ficou estático, meio perdido e confuso, até olhar com mais atenção para a criança.
Da última vez que a vira estava gelada, molhada e triste, procurando pela mãe. Fazia muito, muito tempo. Não se lembrava nem do nome dela, mas dá situação sim.
— Se não é a menina mais bonita do mundo — agachou-se e alisou o cabelo dela. — Estou surpreso, por que está aqui? E com quem?
Ela sorriu e tinha um dente da frente faltando, isso arrancou um riso dele. Ela era uma gracinha.
— Acharam a minha mãe, Gigante de Aço! Ela tá bem e vai voltar pra mim! Ela não me abandonou!
— Claro que não te abandonou, você é a coisa mais fofa desse mundo, seria impossível! — tocou o queixo dela, onde um ralado estava sarando. Podia imaginar ela correndo para cima e para baixo sem nenhuma preocupação além de machucados pequenos. — Gigante de Aço?
— Como o do filme, você é grande e ajuda quem precisa!
-— Nossa...
A imagem que as pessoas tinham dele começavam a ser impressionantes.
— Cassie! — a voz que a chamou era conhecida e Noble evitou um rosnado. — Caramba, você me deu um susto!
Kismet se aproximava pela calçada, usava roupas casuais e carregava uma mochila rosa e pequena em uma das mãos.
— Por que você está com ele? — perguntou a Cassie.
— Minha avó me trouxe quando disseram que minha mãe e meu tio estavam vivos, mas em algum lugar muito longe daqui — ela murmurou e colocou um dedo na frente dos lábios. — É segredo e eu não posso contar pra ninguém. Você não pode falar para os outros que eu te disse!
Noble também colocou um dedo na frente da boca.
— Não vou contar.
— Por favor, não saia correndo por ai sozinha — Kismet respirou fundo quando parou perto deles e olhou para Noble de uma forma estranha. — Oi.
— E ai — pegou Cassie nos braços e a jogou para cima, arrancando gargalhadas dela, depois olhou para Kismet e sorriu com o canto dos lábios. — A mochila combina com você, é bem infantil.
— Olha, Noble, e—
— Não, não diga nada — deixou a menina no chão. — Eu não quero saber.
— Engraçado que você perdoa a Kaira em dois segundos e faz a minha cruz. Você é um hipócrita mesmo.
Noble balançou a cabeça e só não deu um soco nele em respeito a criança.
— Kaira está ajudando pessoas, Espécies e Humanos, você só foi idiota mesmo.
Kismet abriu a boca para retrucar, mas Noble interrompeu.
— Olha, não fala comigo até mudar essa sua postura idiota. Você sempre soube da conduta que Heaven seguia e ousou ficar ao lado dele, você acabou com tudo naquele momento. Tudo bem cometer erros, todos o fazem, mas o que você fez foi traição! — despejou o que sentia. — Você... você me desapontou. Me atacou.
— Nós já brigamos uma milhão de vezes, porra!
— Olha a boca — Cassie riu. — Minha avó disse que se falar palavrão tem que lavar a boca com sabão!
Lançou um olhar bravo para Kismet.
— Qual a diferença agora, Noble?
— O motivo! O motivo faz toda a diferença! — grunhiu. — Quer saber? Que se dane. — bagunçou o cabelo de Cassie e sorriu para ela. — Vem me visitar, okay? Posso te levar no rio e te apresentar para os Espécies da sua idade.
Ela olhou esperançosamente para Kismet, que bufou.
— Tá bom, eu te levo.
— Eba!
🌡️
— Você conseguiu ferrar com tudo!
Kaira parou na ponta do corredor ao ouvir o grito irritado de Nate para Paul. Pressionou as costas na parede gelada e sem cor e cobriu os lábios, escondendo um sorriso.
Bem feito!
— As câmeras estavam em tempo real, seu idiota! — ouviu o som de um soco e parou de sorrir. — Como espera que nossos patrocinadores nos apóiem assim?
— Eu juro que não sei o que aconteceu. Estava tudo bem num instante e depois não mais! Deve ter sido algum erro no sistema, eu juro que vou arrumar!
Olhou brevemente para a cena e pode ver Nate segurando Paul pelo colarinho, então ameaçou:
— É bom que não cometa outro erro, Paul, porquê não tem perdão na próxima, me ouviu bem? O chefe está puto comigo.
— T-Tudo bem...
Os dois se separaram e Kaira ficou parada, satisfeita com o resultado de tudo. Se ela ao menos soubesse quem era o chefe, teria que trabalhar em cima daquela informação. Chutava que era Jason, mas não tinha uma confirmação. Ainda.
Estava para continuar seu caminho quando Helena apareceu.
— Ficou sabendo do que aconteceu? — perguntou a mulher em tom baixo. — O roubo deles foi exposto.
Helena a olhou com confusão e cruzou os braços.
— E daí?
— Fui eu.
— Ainda não acredito em você, Kaira. É o mesmo que pedir para confiar em uma cobra, sabendo que ela morde.
— Eu odeio cobras — resmungou. — Acredite em mim, já levei uma mordida.
Helena bufou e continuou o caminho dela.
— Não confio em nada que sai da sua boca.
Kaira riu baixinho e também seguiu em frente.
— Um dia você ainda vai me pedir desculpas.
🌡️
As semanas, que no início pareciam duras meses, agora passavam voando aos olhos de Kaira. O tempo não parava e a cada dia ela via coisas piores. Ela tentava manter a mente firme, ser fraca não era uma opção, mas até mesmo os mais fortes tem seus pontos fracos.
E naquele dia, um mês após o roubo dos produtos biológicos, ela se viu diante de um dilema.
Bem que ela deveria ter duvidado das coisas, pois seu dia tinha começado péssimo. Estava menstruada e tinha tomado um café amargo cedo, depois trabalhou por horas a fio ao lado de uma Helena extremamente ácida e ainda aturou as cantadas fajutas de Nate, que nós últimos tempos parecia propenso a fazê-la sua.
— Nate gosta de você — Helena disse de repente, fazendo Kaira parar o que estava fazendo. — Vocês combinam.
— Ha ha ha — forçou uma risada irônica. — Até parece.
— Sério — a médica sorriu maliciosamente. — Por que não dá uma chance?
Kaira revirou os olhos e mostrou o dedo do meio para a médica.
— Eu prefiro a morte.
Helena estreitou os olhos e bufou.
— Você morreria, mas não se deitaria com ele?
— Sim.
— Eu duvido.
— Ele só vai ter o meu corpo se me matar antes... — murmurou. — Eu sou orgulhosa, acredite. E também sou comprometida. Eu te disse, mas você não acreditou.
Helena deu um passo em direção a Kaira, largando o que fazia.
— Você também disse que tinha visto a minha filha...
— Sim, eu vi. Vocês são super parecidas.
A médica olhou para o chão e sorriu melancólicamente.
— Sinto falta da minha garotinha.
Kaira passou a língua pelos lábios e encarou Helena com carinho, estendeu a mão lentamente e tocou o braço dela.
— Me ajude — disse baixinho, escorregando os dedos pela pele de Helena até segurar os dedos dela. — Juntas nós podemos fazer diferente, vai ser mais rápido, sozinha eu não posso fazer tudo.
Helena olhou suas mãos juntas e depois levantou o olhar para Kaira, prerscrutando-a de forma que parecia dividida entre o medo e ansiedade.
Não confiava nela e não estava errada, mas Kaira queria que confiasse. Ter alguém ali dentro, apenas para saber que estava ao seu lado, já era algo a se considerar.
Era um peso a menos em seu coração.
— Kaira! — a porta da enfermeira se abriu com força e as duas pularam para lados apostos. — Uau, isso era um aperto de mãos? — Nate perguntou com um sorriso que sugeria estar pensando coisas a mais. — Você prefere mulheres então, Kaira? Por isso me nega tanto?
Helena se virou de costas para Nate e voltou ao trabalho dela, enquanto Kaira o encarou com descaso e balançou os ombros.
— Gosto de peitinhos.
Nate riu e Kaira segurou a vontade de o mandar a merda.
— Você é das minhas!
Eu prefiro morrer do que ser das suas, babaca, pensou.
— O que você quer aqui?
— Calma lá — ele levantou as mãos. — Estou aqui porque você ainda não desceu até o fim do subterrâneo.
Kaira fingiu não notar, mas naquele instante os ombros de Helena ficaram tensos e ela parou o que fazia.
— O que tem lá?
— Só vendo para descobrir — Nate se aproximou de Helena e a pegou pelo braço. — Você vai na frente, já que conhece o caminho tão bem.
Ela se desvencilhou dele e lançou um olhar magoado a Kaira. Juntos eles seguiram pelos corredores e depois elevador, lá dentro, Nate começou:
— Uma das enfermeiras que a nossa amiga aqui machucou estava cuidando dos nosso melhores hóspedes — ele sorriu com a última palavra, como se fizesse uma piada. — E a outra também. Helena gosta muito deles, então capriche na hora de lidar com eles!
Kaira entendeu o recado, fazer Helena sofrer era a sua missão.
O elevador parou muito depois, em um andar que Kaira nunca fora. Era gelado lá embaixo e o silêncio assustador, do tipo que se ouvia antes de algo ruim acontecer. Ela apertou os punhos e se concentrou, preparada para o que estava prestes a ver.
Helena entrou na sala primeiro, depois Nate e Kaira na retaguarda.
E o que ela viu, fez daquele dia o pior da sua vida.
Num primeiro instante pensou que fosse Aurora e reagiu como se estivesse olhando sua irmã presa em uma jaula enorme. Levou as mãos até a boca e arregalou os olhos.
O sangue correu mais rápido em suas veias, seu coração bateu forte, parecia que o silêncio deu lugar a batida intensa e dolorida.
Sua vista ficou meio turva por algo quente e molhado.
Lágrimas.
Ela queria chorar de desespero.
A Nova Espécie presa era com certeza irmã gêmea de Aurora, uma que ficara para trás no resgate. A semelhança era tristemente óbvia, os olhos divididos entre o azul e o verde que lembrava a aurora boreal, os traços delicados, bonitos e selvagens.
Kaira deu um passo para à frente, meio que as cegas e foi impedida por duas mãos. Helena a olhava de olhos arregalados, como se estivesse a vendo pela primeira vez.
Nate estava de costas para as duas, muito próximo da jaula.
— Esta é a número dois — ele disse e riu. — E o humano junto dela é o nosso amigo Elias, também conhecido como o irmão de Helena.
Kaira ainda estava em choque, tão surpresa que nem sequer reparou no homem, apenas conseguia fitar os olhos de Helena.
— Você precisa se recuperar — a médica praticamente soprou em sua face. — Fingir que não sente nada...
Helena estava tentando ajudá-la?
Kaira segurou as mãos dela de volta e aquele aperto, aquela força, aquela ajuda... era tudo o que precisava.
A solidão que se espreitava em sua mente pareceu diminuir, mas não sumiu, assim como a escuridão que sentia em todos os seus poros.
Era algo que não podia explicar. A sensação de ter um mero apoio já era algo, podia ser apenas emocional, mas era algo.
Um pequeno e discreto motivo para ter esperança.
Por causa dessa esperança, Kaira segurou as lágrimas, engoliu em seco e sorriu para Helena.
Porque aquela mulher que a odiava, que desconfiava dela e a tratava como vilã a encheu de esperança com apenas um gesto de bondade.
— Elias, é? — perguntou com a voz rouca e olhar para Helena, fingindo ser irônica com a médica. — Você nunca me falou que tinha um irmão.
— Você nunca perguntou.
— Hum, sendo engraçadinha, gracinha? — segurou Helena pelo braço e a moveu com força para próximo da jaula. — Veja aí o motivo de ainda estar aqui.
Kaira precisou se segurar ao ver a barriga de grávida da Espécie.
Era surreal, algo que nunca tinha imaginado.
Uma Espécie fêmea grávida.
Olhou para o irmão de Helena, eles eram parecidos, mas ele tinha um cabelo mais claro, um castanho que era quase dourado e olhos bonitos, mas cansados e estava muito, muito magro e machucado.
— Ele é o pai do bebê?
— Sim — Nate respondeu. — Fale sobre a nossa fêmea aqui para a Kaira, doutora.
Helena respirou fundo e respondeu:
— A número dois já esteve grávida outras duas vezes, mas sofreu um aborto espontâneo no começo da primeira gestação e perdeu outro bebê quase no final da segunda.
Kaira franziu a testa.
— As fêmeas Espécies não podem ter filhotes.
— Número dois é diferente das outras, olha para ela... os traços são quase humanos, apesar dos olhos claramente felinos, o nariz é pequeno e normal, até mesmo as presas dela são menores.
— Espécies Presentes se parecem com humanas — Kaira murmurou. — É o que ela é... essa gravidez... é impossível. Como aconteceu?
Helena revirou os olhos.
— Do mesmo jeito que todas as outras.
Kaira a olhou feio.
— Fêmeas Espécies não podem ter bebês.
— Até um tempo atrás eu pensava que nenhum deles podia — Helena resmungou. — É como eu disse, o aparelho reprodutor feminino da número dois é totalmente como o de uma humana normal.
— Você por acaso a abriu para saber?
Helena ficou em silêncio e desviou o olhar.
— Caralho...
— Foi na segunda gravidez, eu tive que abrir... tentei salvar a bebê, mas não consegui.
— A bebê?
Helena confirmou.
— Bom, enquanto os machos Espécies tem apenas filhotes machos com mulheres humanas, parece que o mesmo acontece com a número dois. Eu não acompanhei ela a vida toda, mas fui informada de que tentaram forçar a reprodução com outro Espécie, mas foi algo que se provou impossível — explicou. — A número dois pode ter filhotes, mas apenas com homens humanos.
— Você disse que ela teve duas gestações e que perdeu os dois fetos, talvez ela possa mesmo engravidar, mas seja incapaz de concluir o processo.
Helena apertou os punhos.
— Desta vez vai dar tudo certo.
Nate riu, fazendo-a se lembrar da presença incoveniente.
— Helena esta se envolvendo muito com o caso porque se trata da possível sobrinha dela.
— Nate — Kaira o chamou e ele olhou. — E a número um?
Ele estalou a língua.
— Com os Espécies, ela foi levada de uma antiga base quando ainda era pequena. As duas são gêmeas, as únicas que nasceram de uma mãe Espécie capaz de se reproduzir. Os experimentos deram errado com as outras, mas tenho esperança com a número dois... ela é especial.
— Existe algum documento científico em que explique o que fizeram com ela?
Nate negou.
— A antiga base passou pelo mesmo processo da Mercile quando foram descobertos, queimaram o máximo de provas possíveis. Eu não estava lá, claro, mas sei de uma coisa ou outra.
— Entendi...
Nate caminhou até ela e tocou seu rosto.
— Eu quero essa bebê, Kaira — murmurou e a fez estremecer de nojo. — Ela é tudo, sabe quanto dinheiro a vida dela vai valer se chegar a nascer? Muita grana. Quero que você acompanhe a gravidez de perto e me informe de tudo. Serão três longos meses até o nascimento.
Isso queria dizer que a número dois já tinha dois meses, levando em consideração que as humanas que tinham filhos Espécies ficavam grávidas apenas por cinco meses.
Mas com a número dois podia ser diferente, ela não sabia nada e o desconhecido a assustava, principalmente quando ele tinha o rosto da irmã que ela amava.
Kaira olhou para a número dois, com olhos cansados e tristes, depois para Elias, largado e preso naquela jaula como um animal e então para Helena, raivosa e melancólica, separada da filha e obrigada a viver o inferno na Terra.
Sentiu-se cheia de tudo aquilo, rancor, mágoa e força.
Deus, como quero os tirar daqui, pensou e encarou Nate.
— Eu vou dar o meu melhor — sorriu confiante. — Pode confiar em mim.
🌡️
— Vamos fazer o chá da tarde!
Cassie disse animada, arrancando uma careta insatisfeita de Leon, um sorriso divertido de Luck e um olhar confuso de Bravery.
Noble achou engraçado e se agachou ao lado dela.
— Eu nunca fiz um chá da tarde, como funciona?
Cassie esparramou um monte de colheres, copinhos e pratinhos de plástico no chão. Leon lançou um olhar desesperado para Noble e Luck riu alto, divertindo-se.
Bravery ainda parecia adoravelmente confuso e perguntou tudo de uma vez:
— Nós não íamos brincar de pique pega? O que isso tem a ver com o chá da tarde? Minha mãe não gosta que eu coma antes do jantar.
Isso arrancou uma outra risada escandalosa de Luck, que estava de costas enxugando os olhos e um olhar irritado de Leon.
— Você é burro.
— Ei — Noble rosnou. — Não é assim que se fala e você sabe.
— Humpf...
— É de mentira — Cassie murmurou para Bravery. — Não é comida de verdade que vamos fazer.
— Por que vamos fazer comida se não é de verdade?
A interação entre os dois era engraçada para Noble. Leon e Luck haviam acompanhado de certa forma o crescimento de Kaira e Aurora, sabiam como as meninas funcionavam, mas era a primeira vez de Bravery interagindo com uma garota da mesma idade.
Ela pareceu pensar na pergunta e mordeu os lábios.
— Só vamos brincar.
— Então por que não brincamos de pique pega?
— Podemos brincar depois, agora vai pegar uns matinhos, vai.
Bravery fechou a cara, mas imediatamente foi fazer o que ela pediu.
— E você pega a água — disse para Luck e olhou para Leon. — Você vai me ajudar a fazer tudo!
— Nem fud-
— Você vai — Noble o puxou e Leon sentou no chão, mesmo que contrariado. — E eu, Cassie?
— Você vai ser o cliente!
— Pode deixar, Noble — Leon murmurou ao pegar uma panelinha rosa. — Vou fazer a melhor comida da sua vida.
— Você por acaso vai servir Kaira a bononhesa? — Kismet perguntou de repente e Noble rosnou.
Havia se esquecido que o idiota estava sempre onde Cassie estava.
— Não tem graça.
— Quem é Kaira? — Cassie perguntou curiosa.
— Minha irmã — Leon respondeu. — E ela e Noble são namorados.
— Companheiros — Noble corrigiu. — Você vai conhecer ela quando sua mãe voltar, Cassie.
— Estou ansiosa — ela deu um pulinho que Noble achou extremamente fofo. — Quero ver minha mãe logo, mostrar para ela que estou muito melhor em matemática!
— Você é a melhor com números — Kismet incentivou a menina e Noble achou estranho, havia algo de diferente nele quando estava com ela, um comportamento mais calmo e protetor. Mostrando e ensinando coisas novas. — Ela vai se orgulhar.
Noble não perguntou na hora, mas quando Cassie estava distraída com Bravery e Leon, puxou Kismet para o lado.
— Qual é a sua? — empurrou ele para longe da menina. — Está fazendo um dos seus jogos para se beneficiar no final? Ela é uma criança e eu não vou deixar você a iludir.
— Jogos? — Kismet rosnou. — Me deixa em paz, Noble. Eu sei que errei, porra, sei que está com raiva e não me quer por perto, mas o que aconteceu antes não tem nada a ver com Cassie. Eu gosto dela, eu peguei ela no colo nas últimas semanas, eu levei ela para todos os cantos, eu coloquei ela para dormir e fiz de tudo para fazê-la feliz — os olhos de Kismet pareciam mais úmidos e ele também empurrou Noble. — Então você pode me julgar por tudo o que eu fiz antes, mas não por estar ao lado dela e querer vê-la bem, entendeu? Você não tem esse direito, não quando a envolve!
Noble estreitou os olhos.
— Você está envolvido emocionalmente.
— Claro que estou!
— A mãe dela vai voltar uma hora, Kismet...
— Eu sei — ele bateu o pé e olhou para Noble com sinceridade. — Eu sei... também sei que vou sentir falta dela, mas se for a melhor coisa para Cassie, então que seja. Eu vou superar.
Noble tombou a cabeça para o lado e sorriu.
— Você vai ser um bom pai quando tiver filhotes.
Kismet estendeu a mão, como se fosse tocar o ombro de Noble, mas recuou com um olhar magoado.
— Você também vai ser.
🌡️
— Do que você precisa?
Kaira se assustou com a aproximação afobada de Helena. Ela passara a última semana perdida, meio que agindo no automático, como se fosse um robô seguindo o roteiro.
— Como assim?
— Do que precisa para nos tirar daqui?
— Um pouco de sorte.
Helena crispou os lábios.
— Não existe sorte, Kaira.
Riu amargamente.
— Eu sei que não.
— Qual o seu problema? — Helena perguntou. — Está agindo meio apática desde que viu a número dois e Elias.
Kaira suspirou fundo e disse a verdade.
— Eu não deveria estar aqui... não estou preparada para a pressão psicológica e percebi isto quando vi a número dois. Ela é igualzinha a minha irmã Aurora. Eu fiquei em choque.
— Mas está aqui e você é tudo o que nós temos!
A responsabilidade pesou nos ombros de Kaira, crua, dura e amarga, penetrando seu coração com uma sensação de que não seria capaz de superar.
— Não... não vai dar...
Deu um passo para trás e colocou a mão sobre o coração, a dor dos batimentos trouxe consigo o medo e a ansiedade, fazendo com que Kaira se sentisse estranha.
Fora de si.
Piscou os olhos e fechou as mãos que tremiam.
— Eu não me sinto muito bem.
— Você está suando e não tá calor — Helena agarrou o braço dela. — É só a ansiedade, você precisa respirar fundo, okay?
Kaira olhou para as paredes brancas e limpas, sentindo-se presa e sem ar.
— Me tira daqui!
— Não, não, não! — Helena segurou seu rosto e olhou no fundo de seus olhos. — Você não pode pirar agora, Kaira, não pode!
— Não da!
— Lógico que dá!
Tentou se desvencilhar de qualquer forma e no outro instante as duas estavam no chão, rolaram e Helena ficou por cima dela, aproveitando-se do seu estado letárgico e a acertando com um tapa forte no rosto.
Silenciou reinou entre elas quando se encararam.
— Você me bateu...
— Admito que eu gostei.
Helena sentou sobre a cintura de Kaira e sorriu sem graça.
— Eu acredito em você agora.
— Por quê?
— O desespero no seu olhar ao ver a número dois, não dá para fingir algo como aquilo.
— A número um, que foi resgatada - murmurava — , é minha irmã.
Helena a olhou confusa.
— Vocês foram criadas juntas?
— Sim.
— E ver a número dois mexeu com você.
— Sim.
Helena levantou e estendeu a mão para ela, Kaira a segurou e levantou, mesmo que sua vontade fosse continuar no chão.
— Cadê aquela Kaira durona e orgulhosa de antes?
— Você sabe que tudo aquilo foi mentira, não é? Eu não saio por ai ameaçando pessoas inocentes.
— Sério? — Helena retrucou sarcasticamente. — Pensei que você chutava mendigos na rua e jogava água em cachorros, sabe, só para passar o tempo.
Kaira riu desacreditada.
— Cala a boca.
— Mas falando sério, Kaira, você precisa se fortalecer, precisa ficar forte pelas pessoas que estão presas. Quero sair daqui, quero que todos sejam livres, os Espécies, as mulheres e os homens. Tem muita gente inocente aqui, Kaira. Muita.
Kaira respirou fundo, dividida entre a frustração e a coragem, então se aproximou de Helena e segurou o queixo dela.
— Se me bater de novo eu vou revidar — piscou e a soltou. — E quando eu te tirar daqui vai ficar me devendo uma gelada.
— Tudo o que você quiser, se conseguir...
Kaira acenou e saiu da sala, ela precisava de algo para fazer. E de uma bebida forte.
🌡️
Acompanhou a gravidez da número dois dia após dia enquanto secretamente prestava atenção nas conversas que rolavam sobre tarefas ou quaisquer outros trabalhos.
Nate e Jason ainda pareciam furiosos com Paul, principalmente porque agora o trabalho da segurança deles parecia porca.
— Como se sente? — perguntou a número dois que, lentamente, levantou os olhos e a encarou. — Enjoada? Cansada? Dolorida?
— Bem.
Kaira olhou para Elias e estranhou a reação dele com a fêmea, ele nunca estava próximo da número dois.
— Ela está falando a verdade?
Ele apenas acenou e Kaira respirou fundo, lidar com os dois era difícil, principalmente porque não confiavam nela. Nunca sabia se estavam falando a verdade.
— Vou levá-la para uma porção de exames mais tarde — disse. — Então esteja preparada.
Mais tarde, depois do almoço, Kaira e outros dois guardas sairam daquele andar para a enfermeira com a número dois presa com correntes. Duvidava muito que ela fosse capaz de algo, pois estava magra e parecia com medo até do elevador.
Ela olhava com curiosidade e assombro para tudo e todos, principalmente para as outras mulheres que também passavam pela enfermeira todos os dias.
— Sente-se.
A fêmea sentou e colocou as pernas sobre a maca, deixando a barriga exposta. Helena se aproximou e começou a fazer os exames nela, usando o ultrassom.
— Tá tudo bem? — Kaira perguntou baixinho.
— A mesma coisa da última vez, ótima...
— Que bom. Eu tenho um formulário para entregar, então termine os exames e vá preenche-lo.
Depois de fazer todos os procedimentos básicos e disponíveis naquele momento, Helena se aproximou de Kaira e murmurou:
— Eu devo preencher as linhas com verdades ou mentiras? — perguntou. — Talvez Nate e os outros percam a esperança caso eu diga que a gestação não vai bem.
— E então eles vão cortar a comida que vem dando a número dois e Elias, vão tirá-lo dela e levá-lo para outra cela, talvez até coloquem outro homem com ela para forçar outra gestação, nós não sabemos — disse impaciente e estendeu o papel para Helena. — Mentir sobre esta gravidez não é uma opção, não quando queremos que a bebê nasça, então faça tudo direito.
— Tá! — Helena arrancou o papel da mão dela com força. — Voltou a ser a idiota de sempre?
— Os homens estão nos olhando.
Helena olhou para trás e bufou.
— Desculpa...
— Faça o seu serviço que eu faço o meu — disse alto e de forma grosseira, para eles ouvirem. — E anda logo, Nate e os outros não estão muito paciente!
Helena preencheu os papéis e Kaira os pegou.
— Vocês levam a número dois de volta para a cela — disse para os homens. — Eu vou levar o formulário para Nate dar uma olhada.
Kaira saiu da enfermeira e demorou para chegar na sala de Nate, já que passou pelo próprio quarto antes e enviou tudo o que sabia para seu drive pessoal, só então foi encontrar o carrasco.
— Nate — a porta dele estava entreaberta e ela chamou. — Posso entrar?
— Claro!
Nate estava acompanhado de Jason, ambos a olharam e sorriram.
— Eu trouxe o formulário sobre os exames da número dois.
— Coloque sobre a minha mesa — ela o fez rapidamente. — E como ela está?
— A gestação está ocorrendo perfeitamente.
— Sim, sim, mas e quanto ao humor?
Kaira franziu o cenho.
— O que isso tem a ver?
— Eu estava lá quando as gêmeas nasceram — Jason se pronunciou pela primeira vez em tempos. — A Espécie que era a mãe delas parecia muito bem disposta a gravidez emocionalmente. Ela queria ter filhos, estava feliz...
Kaira mudou o peso de uma perna para a outra e colocou a mão na cintura.
— Você quer dizer que ela tem que estar pré-disposta para ter uma gravidez de sucesso? — perguntou séria e ele deu de ombros. — Você disse que conheceu a mãe delas?
— Sim.
— E ela está morta?
— Sim.
Kaira mordeu os lábios.
— É uma pena, poderíamos aprender algo com ela... e o pai das gêmeas?
Jason olhou para os fundos dos olhos dela.
— Sou eu.
Kaira endireitou as costas, dividida entre o assombro e pena. Porra, não podia ser... aquele monstro era o pai biológico de Aurora.
— Você é pai da número dois? — perguntou para ter certeza e ele concordou, então teve noção do que havia acontecido. — Você a iludiu, não é?
Ouvira muitas histórias de Espécies que criaram laços com pessoas que apenas queriam usá-los, isso porque não tinham nenhuma ideia de que era tudo para um propósito.
Era doentio.
Droga, ele era o pai da Aurora. A informação, nova e chocante, deixava-a meio tonta.
— Ela se apaixonou e deixou que eu fizesse tudo — ele sorriu maliciosamente. — Fiquei surpreso quando as gêmeas nasceram, mas elas me ajudaram nos negócios. Graças a número dois eu consegui muitos empréstimos com a promessa de que ela poderia oferecer uma linhagem de fêmeas. A mãe dela morreu há muito tempo nas mãos de um comprador, embora também tenha rendido muito a nossa sociedade.
Aquele homem; péssimo, horrível, doente... era pai da doce e linda Aurora.
Era inacreditável.
— Então você supõe que a número dois não que ter a bebê?
Jason concordou novamente.
— E você vai convencer ela, Kaira.
Ela riu naquele momento, de verdade e com vontade.
— Como posso convencer alguém a ter um bebê quando eu mesma não quero?
— Mentindo — Nate disse. — Você já deve ter percebido que ela é carente de afeto. Vamos tirar Elias da cela, ele não tem tratado ela como nós esperavamos, na verdade ele tem ignorado a Espécie, deixando-a deprimida e sozinha nessa fase. Vamos deixar ela em uma cela maior e melhor, numa área isolada, e você vai passar um tempo com ela.
— Ela não vai acreditar...
— Ela vai — Jason concluiu sério e suspirou. — Mas agora devemos falar de outro assunto.
Kaira se preparou para sair.
— Vou passar notícias se tiver algum avanço.
— Espera! — Jason a fez parar. — Você fica, já que vai participar da missão.
Estreitou os olhos.
— Qual missão?
— Um dos nossos patrocinadores negou uma proposta hoje cedo.
Kaira se animou por dentro, feliz que tudo estivesse dando certo.
— Qual proposta?
— Eles deveriam transportar suprimentos como carne e outros alimentos, medicamentos básicos, alguns equipamentos eletrônicos de segurança.
— E o que os impede de trazer tudo, sendo que podem ser transportados separadamente? — perguntou, confusa.
— Eles tem uma proposta melhor do que a nossa, além de que acham que nossa segurança é falha e não pode arcar com consequências.
— Quais consequências?
— Caso eles sejam pegos — Nate respondeu por Jason. — Não querem ser presos com nenhuma das cargas.
— Mas eles são uns tolos — Jason riu. — Acham realmente que o que aconteceu nos afetou.
— Mas nós perdemos a confiabilidade de alguns dos nossos patrocinadores, Jason. Eles não foram os primeiros a dar para trás.
O homem apenas riu mais alto e fitou Nate com escárnio.
— Lembre-se, jovem, de que um político hábil é capaz de causar mais devastação do que os nossos relés patrocinadores... e também de ajudar. Tudo está bem, não se preocupe.
Kaira segurou a vontade de perguntar qual político. Ela sabia que muitos se envolviam com esquemas sujos, mas aquilo que faziam ali... era um inferno.
— O nosso amigo de terno vai dar um jeito em tudo.
🌡️
Noble estava vivendo em altos e baixos.
Até algumas semanas atrás se sentia ótimo, até mesmo trocara mais do que uma dúzia de palavras com Kismet. Estava bem humorado e disposto, lendo seus livros, treinando e trabalhando.
Mas naquela semana em específico, chuvosa e fria, o desânimo o abateu e, mesmo que tímido, voltou a visitar a doutora Joyce.
— Noble! — ela sorriu e bateu no espaço do sofá em frente ao dela. — É bom ver você, faz tanto tempo desde a última vez que me visitou.
— Oi — Noble sentou no sofá branco e encolheu os ombros. — Eu pensei que nunca mais voltaria.
Joyce cruzou as pernas e o olhou atentamente.
— Por quê?
— Naquela época pensei que houvesse superado todos os meus problemas.
— Problemas são passageiros, Noble — Joyce sorriu amavelmente, como se estivesse falando com uma criança. — E ironicamente eternos, só mudam de nome e endereço.
— É, acho que sim...
— Agora por que não me diz qual o problema da vez?
Ele suspirou e começou a falar sobre tudo; Kaira, Kismet, a relação de Espécies e Humanos. A proposta de Justice. Heaven e sua vontade de o odiar também, mas o peso de saber que era um dos seus.
— Eu me sinto completamente sozinho, como se tivesse um vazio no meu peito. Fico reconstruindo momentos bons na minha cabeça e quando algo bom acontece, só penso em contar para ela... mas ela não está aqui e isso é tão desanimador que dói fisicamente, como se estivesse apertando meu coração de verdade.
— Você deveria aceitar a proposta de Justice.
— Não consigo cuidar nem de mim, quem dera ensinar os outros.
— Talvez você só precise de algo para ocupar a cabeça, foque no presente e dê mais atenção aos pontos que precisa melhorar, mas seja paciente com a sua dor, Noble — Joyce sorriu amigavelmente. — A linha tênue entre nossos sentimentos é muito sútil, complicada, que só se compreende com o tempo, com cada situação que estamos vivendo.
Noble respirou fundo, sentindo-se muito melhor por poder compartilhar seus sentimentos.
— Obrigado por me ouvir, doutora.
— Mesmo horário na sexta?
Noble lançou a ela um olhar despreocupado.
— Talvez...
Ela riu.
— Volte, Noble, não há vergonha alguma em passar alguns momentos comigo.
Ele concordou e saiu da sala, dando de cara com um Vengeance, sentando e esperando sua vez. Pretendia passar reto e ir embora, quando a voz do macho, rouca e séria, preencheu todo o corredor vazio.
— A saudade que sente pela sua companheira nunca vai passar. Eu te entendo, uma hora você pensa nela e fica feliz com a lembrança e então tudo desaba — ele olhava para a parede com seus olhos azuis e tristes. — Porque sabe que ela nunca mais vai voltar.
Noble o olhou com o canto da visão e suspirou, não sabia o que dizer para ele.
Não sabia nem o que fazer.
O celular dele vibrou e Noble atendeu a ligação de primeira. Era Aaron.
— Alguma novidade?
— Temos algo quente, Noble. Vem para cá e eu te conto tudo.
🌡️
A nova cela da número dois era espaçosa e arejada, com uma cama de solteiro simples, vaso e pia, tinha um espelho também, mas Kaira duvidava muito que a Espécie fosse passar o tempo livre apreciando a própria imagem.
A fêmea estava deitada de costas para a porta.
Kaira apertou o botão automático e a tranca abriu, entrou e não se importou em fechar a cela. Não havia para onde a Espécie correr de qualquer forma.
Deu a volta na cama e a observou, estava com os olhos fechados e com uma mão sobre o ventre.
— Preciso levantar para outro exame? — ela perguntou baixo e sem olhar para Kaira.
— Não, na verdade eu estou aqui para fazer companhia para você.
A resposta fez número dois sentar lentamente e a encarar com dúvida.
— Por quê?
Kaira tombou o rosto para o lado e sorriu verdadeiramente.
— Posso sentar nos pés da cama? — número dois concordou e Kaira sentou, a fêmea encolheu as pernas, pressionando os joelhos nos seios. Ela olhava para Kaira com curiosidade, principalmente para o livro em suas mãos. — Você sabe o que é isto?
— Um livro.
A resposta surpreendeu Kaira.
Ainda não sabia o quanto a número dois fora educada, geralmente eles aprendiam a ler um pouco para responderem melhor a testes, então imaginava que ela soubesse uma coisa ou outra.
— Você sabe ler?
Número dois balançou os ombros.
— Um pouco.
— Consegue ler o título?
Estendeu o livro e vagarosamente a Espécie se moveu para pegá-lo. Ela testou o peso em suas mãos, passou os dedos pela lateral e depois o virou, olhando para a capa.
— Onde... — murmurou. — O-Onde as... onde... — ela estreitou os olhos e soltou um som fino e estranho, como uma gata irritada. — Eu não conheço essas outras duas palavras.
Kaira se moveu para perto dela e apontou para o desenho na capa.
— Sabe o que é isso? — a fêmea negou. — É uma árvore. Repete.
— Vore.
— Árvore — disse pacientemente. — Ár-vo-re.
Número dois tentou mais algumas vezes, até conseguir e sorrir.
— Árvore!
— Sim — Kaira sorriu, mas não tão feliz quando a Espécie, seu coração estava pesado e dolorido. O que fizeram para ela, presa e abusada desde a infância, não era algo que se esquecia facilmente. — E a segunda palavra vem de cantar. Repete comigo: cantam.
— Cantam.
— Conseguiu de primeira, muito bem! Agora leia tudo.
— Onde as árvores c-cantam — murmurou e lançou um olhar em dúvida para Kaira, ela acenou em concordância. — Onde as árvores cantam!
— Exatamente, você acabou de aprender duas palavras.
Em um gesto rápido e quentinho, que mostrava alguma confiança, número dois se moveu para perto dela, até que seus ombros se tocaram.
— O que são árvores e cantam?
Kaira começou a explicar, prestando atenção nos gestos e expressões da Espécie curiosa e ingênua. Jason estava certo, ela estava carente e qualquer um poderia facilmente conquistar seu afeto.
O que fazia Kaira se sentir péssima.
Estava ali pela Espécie, mas também queria o mesmo que os outros... que a gravidez chegasse ao fim e bem.
(...)
A calça tática, com um reforço bélico extra, confortável e escura envolvia as pernas de Kaira como uma luva, terminando em botas escuras e de cano alto. Levava consigo uma lâmina de quinze centímetros no coldre do lado esquerdo da calça e uma pistola semiautomática no lado direito, caso tivesse que usá-la.
Esperava que não.
Apesar de querer ver todos aqueles homens mortos, acreditava muito na justiça dos Espécies. A prisão Fuller esperava cada um daqueles idiotas, além de que havia feito um juramento, um voto que não podia quebrar.
Não podia praticar atos que colocasse em risco a integridade física ou psíquica do ser humano, precisava obedecer os preceitos da ética, da legalidade e a da moral.
Aqueles eram votos que queria honrar.
Terminou de vestir o colete balístico por cima da camisa de mangas longas e então estava preparada. Passou as mãos pelo cabelo, tirando algumas mechas da testa.
— Kaira — Nate a chamou e quando ela se virou o pegou a olhando de cima a baixo. — Uniforme militar combina muito bem com você.
O ignorou completamente e foi em direção a mesa, onde estava a pequena maleta médica. Inclinou-se para mexer em tudo, estava tranquila colocando cada coisa no lugar quando mãos agarraram sua cintura.
— Me solta! — se virou imediatamente, empurrando-o com as duas mãos. — Qual o seu problema, porra?!
— Vamos lá, amor — Nate sussurrou. — Eu não sou tão ruim de se olhar e você tem um belo traseiro... nós estamos aqui e ainda temos um tempo de sobra antes de sair, achei que juntos podíamos sabe, dar uma relaxada — ele se aproximou novamente e tocou seus ombro, massageando-a por cima da roupa. — O que acha? Seja minha.
Kaira ergueu os olhos, fitando-o diretamente, como se pudesse ler a alma dele, cada erro e pecado. Simplesmente não era capaz de o perscrutar sem pensar em quantas vidas havia atrapalhado.
— É a última vez que vou dizer — murmurou sem desviar o olhar. — Eu nunca — lentamente disse a última palavra — vou me deitar com você. Eu nunca vou beijar você. Eu nunca vou desejar você. Eu não quero, eu não gosto e muito menos preciso de você — pegou as mãos dele e as afastou de si. — O meu corpo não vai ser tocado por quaisquer mãos, minha pele, os meus lábios e o meu belo traseiro nunca vão precisar do seu toque.
Ele estreitou os olhos, o ego claramente atingindo quando aquele sorriso falso sumiu de sua feição.
— Eu nunca vou ser sua, nem de ninguém.
— Você fez sua escolha, Kaira.
— E acredite, Nate, vou lidar com as consequências.
Ele deu as costas a ela e, antes de sair, pode ouvir um resmungo:
— Puta egoísta.
Kaira soltou o fôlego e respirou profundamente, sentindo a adrenalina em suas veias.
— Espero que tenha aprendido, otário.
Tocou o colar gelado e o beijou, rindo sozinha e ainda meio cheia daquela sensação incrível de colocar um homem idiota no seu devido lugar.
Apenas um macho com honra poderia toca-la, um guerreiro superior, apto e corajoso.
🌡️
Noble estava sentado no pátio atrás do refeitório da Reserva, havia acabado de jantar e observava as estrelas no céu escuro. Não pretendia voltar para casa naquele dia, não quando sua mãe o esperava com um olhar de pena e seu pai querendo uma resposta: se aceitaria ou não a proposta de Justice.
Puxou o celular e olhou as mensagens.
Kismet tinha chamado ele para correr, ignorou. Salvation e Leon trocavam figurinhas no grupo e Forest também havia mandando uma mensagem, chamando-o para almoçar.
Respondeu Forest e guardou o celular, no exato momento em que Aaron e Andrei saiam do prédio; o primeiro falava algo no telefone e nem notou Noble sentado no chão, enquanto Andrei parou e o encarou.
— E ai.
— Oi.
Andrei enfiou as mãos no bolso e se aproximou, sentando ao lado dele. Noble imediatamente fechou a cara, ele não gostava daquele cara.
— O rosbife tava bom pra caralho.
Não respondeu, ignorando-o e olhando o céu.
— E tinha aquele bolo de chocolate, hmmm... delicinha.
Novamente ficou em silêncio.
— E um sorvete... era do que mesmo? — Andrei pensou por um segundo. — Framboesa?
Noble respirou fundo, impaciente e disse tudo de uma vez:
— A picanha recheada com bacon e queijo estava muito mais gostosa do que o rosbife e eu não como chocolate, se toca — zombou. — E o sorvete era de morango.
E ele se lembrava do sabor porque Kaira odiava quando o serviam.
— Parece que o gato não comeu sua língua — Andrei retrucou com um sorriso.
— Eu sou o gato.
— Um gato bem manso, já que não aceita lutar comigo.
Noble segurou a risada e apontou para o rosto de Andrei.
— Você já tem uma marca bem feia na cara, não quero deixar pior.
Andrei sorriu nostalgicamente.
— Minha cicatriz não me constrange, eu gosto dela — ele tocou a marca que era fina e branca, começando acima da sobrancelha esquerda e terminando apenas no nariz. — Se não fosse por ela eu nunca teria conhecido as melhores pessoas da minha vida. Não estaria aqui.
Noble revirou os olhos.
— Parece que você quer me contar sobre ela.
— Você quer ouvir?
Balançou os ombros, dividido entre a curiosidade e o tédio.
— Eu venho de uma família de militares. Lutar e ficar ao ar livre sempre foi a minha vida, eu não me lembro de algum momento em que não estive sob as estrelas ao lado de uma fogueira ou em cima de um ringue. Quando eu era mais jovem gostava mais de praticar artes marciais do que ir a festas.
Irônico que Noble não gostasse dele, mas que ambos tivessem tanto em comum.
— Quando eu tinha dezoito anos estava curiosamente trabalhando na mesma empresa que Aaron, meu pai não queria que eu entrasse para as Forças Armadas e, sinceramente, eu não me importava. Tudo o que queria era ficar longe do velho. Acontece que houve um ataque, eu estava do lado de dentro na hora, próximo do Aaron e Lucis. Na época estava acostumado a trocar algumas palavras com Lucis, mas Aaron era praticamente um desconhecido — ele sorriu. — Um bando de sujeitos armados até os dentes entraram na minúscula sala dos arquivos, os filhos da puta explodiram tudo o que podiam, sério, não sei como não morreremos naquele dia. Foi a primeira vez que eu matei.
Noble entendia que era impossível esquecer a memória da primeira morte.
— Matei três deles, não pensei muito na hora. Foi como respirar, um instinto ao qual meu corpo parecia habituado. Quando me virei Aaron estava lutando com um cara e outro estava prestes ao esfaquear ele pelas costas. Porra — Andrei riu de repente. — Não sei o que deu em mim, mas em um segundo estava lutando e no outro havia me jogado na frente de Aaron, protegendo as costas dele.
— O cara era um covarde — Noble resmungou. — Odeio quem ataca pelas costas.
— Eu concordo com você, também odeio. Bom... depois daquele dia passei a carregar esta belezinha comigo.
— Eu acho ela até que maneira.
Andrei gargalhou.
— É charmosa, admita — murmurou maliciosamente, então ficou sério e encarou Noble. — Quando eu disse que queria lutar com você, não era um desafio. Não era uma provocação, não no começo — ele tombou a cabeça sobre a palma da mão. — O convite ainda está de pé. Acho que eu tenho muito para aprender com você e você muito a aprender comigo.
— Eu...
Respirou fundo, cansado de se sentir um inútil e indeciso.
Aquele não era ele, não era medroso e não se deixaria ser tomado e superado pela dor de perder alguém que amava.
Levantou-se num rompante.
— Podemos começar agora.
E enquanto caminhava ao lado de Andrei até a academia, mandou uma mensagem para Kismet, dizendo para os encontrar e depois para Justice.
Ele não tinha tempo a perder.
🌡️
Kaira saiu da van e caminhou na escuridão do pátio, com sua maleta em mãos e homens na sua frente e atrás. Olhava para todos os cantos no alto, procurando por câmeras ou qualquer coisa que pudesse dizer a ela que Aaron sabia do que estava acontecendo.
Mas não havia nada.
Nenhuma pista de que algo iria acontecer.
Jason parou e ela também.
— É esta porta.
— Parece tão pequeno — murmurou. — Não me parece que cabe muita coisa lá dentro.
— Esse é o objetivo — Nate respondeu de péssimo humor. — Enganar os olhos.
— Vocês dois — Jason apontou para os soldados atrás dela. — Vão na frente, abram a porta.
Eles fizeram o que Jason esperava e, o que encontraram, fez Kaira segurar a risada no fundo da garganta. Nate estava de boca aberta e Jason vermelho de ódio.
— QUE PORRA É ESSA?
O armazém estava completamente vazio.
— T-Talvez seja a porta errada, chefe.
— Não é a porta errada, seu burro — Jason grunhiu e Kaira entrou no armazém vazio, segurando-se ao máximo. — Nate!
— Sim?!
— Além de mim e você, quem mais sabia da localização?
Nate engoliu em seco.
— Paul.
A expressão de puro ódio no rosto de Jason fez Kaira ter — um pouquinho — de dó do homem e—
Seus pensamentos foram completamente cortados quando um carro preto acelerou no pátio e um tiro pegou na parede próxima dela. Kaira arregalou os olhos e se jogou no chão.
Que porra estava acontecendo?
— Era só o que me faltava — Jason se jogou na parede na frente dela, os dois bem próximos. — Quem são esses filhos da puta?
Um dos soldados, atrás de um pequeno muro e na linha de frente, disse:
— Eles usam o carro do nosso patrocinador!
— Claro — Jason puxou um revólver. — Já não basta terem negado o serviço, ainda me traem. Cretinos, vou acabar com eles.
Kaira ficou sentada e encolhida enquanto eles trocavam tiros. Será que eles realmente tinham sido traídos pela própria laia ou era coisa do Aaron? Não tinha como ela saber.
Ficou de quatro e rastejou até o murinho, abriu sua maleta e pegou seu estilete; não podia fazer nada contra armas, mas machucaria qualquer um que tentasse toca-lá.
Olhou brevemente sobre a proteção e, por idiotice, puxou Jason da mira de um homem de preto que estava prestes a acertar ele. A bala passou rente onde ele estava e perfurou a parede cinza.
Ambos trocaram um olhar e Jason acenou. Ele a puxou para se levantar e correr para atrás do muro, Kaira foi junto, mesmo que sendo arrastada. Olhou para os homens que estavam ao seu lado, verificando-os apenas por hábito.
— Alguém machucado?
— Não — Nate respondeu por eles. — Que droga nós fazemos agora?
— Eu derrubei dois — um soldado que ela não sabia o nome disse. — Tenho certeza.
— Derrubei um — Jason murmurou. — Faltam dois, pelo que posso concluir pelo tamanho do carro e quantos caberiam. Procurem-os com os olhos, agora!
Nate se inclinou e uma saraiva de tiros passou muito próxima.
— Um dos desgraçados está atrás do carro, o outro eu não vi.
Kaira segurou o bisturi com força em uma mão e soltou a maleta no chão, pegando a pistola que carregava consigo. Destravou, engatilhou e se sentiu mais confiante.
Fazia tempo que não segurava uma arma de verdade.
— Você sabe o que está fazendo com isso, sua idiota? — Nate parecia irritado. — Você é a enfermeira, não uma guerreira.
— Aposto que sei usá-la melhor do que você — retrucou calma e olhou para Jason, sem se importar com Nate. — Chefe — sorriu. — Eu posso seguir pelo muro à esquerda e procurar pelo outro, enquanto vocês fazem supressão no homem do carro. Eles não esperam isso.
Jason a olhou com dúvida.
— Você tem certeza? — perguntou. — Uma pistola não é um bisturi.
— E eu sei mil maneiras de matar com os dois.
Jason ergueu as sobrancelhas.
— Me convenceu... você vai no três.
Kaira concordou.
— Um... dois... — erguia os dedos conforme falava. — Três!
E os tiros começaram. Eles trocando bala com o homem do carro e ela correndo para a esquerda, levemente inclinada para frente caso precisasse escapar e pular. Apontava para o chão conforme corria no escuro, escondida pelas sombras e pelo muro do pátio.
Olhou para os muros menores, aqueles onde podia se esconder agachado e encontrou seu alvo. Estava de costas, olhando para o muro onde seu parceiro atirava e os outros estavam escondidos.
Ela olhou para a pistola e travou o gatilho, assim se a arma caísse ou fosse pega pelo homem, ele seria incapaz de atirar nela. Segurou a pistola pelo cano.
Uma coronhada poderia desmontar ele.
O que causava um desmaio não era o local do impacto e sim a aceleração e desaceleração do crânio. Era preciso fazer o cérebro "chacoalhar", causando uma torção na região chamada formação reticular, que mantinha alguém acordado ou dormindo.
Kaira tinha que acertar o local certo.
Agachada e em silêncio, praticamente se rastejou até o homem escondido. Próxima dele, Kaira ergueu a arma e, quando estava para o acertar, seu punho foi segurado.
Droga!
Ele havia se virado bem na hora, como se algum instinto estivesse o ajudando. O homem apertou seu pulso e Kaira gemeu dolorosamente com a dor, no mesmo instante ele tentou acertar o rosto dela, mas Kaira o segurou com a mão livre.
— Desgraçado!
Os dois brigaram, competindo para ver quem era o mais forte. Entre passos complicados e as cegas, Kaira perdeu a luta e caiu no chão. Ele era bem mais forte e alto.
Tentou escapar com seu coração batendo a um milhão e a respiração dolorida, até que ele agarrou seu pé e a puxou. Kaira não deixou por menos, chutou a coxa dele e depois o peito. Não adiantou, ele não se afastou, mas ao invés disso a ergueu e passou os braços ao redor do pescoço dela, em um aperto de ferro.
Kaira grunhiu e olhou para o chão, sua mente a mil, seu corpo pronto para aquela estratégia que um velho amigo havia ensinado.
Colocou um dos pés atrás da perna dele e jogou o corpo para trás, levando ambos novamente para o chão, seu corpo parcialmente sobre o corpo masculino. Entrelaçou a perna na dele, deixando-o preso e no momento com parte da cintura totalmente exposta, de modo que não podia fechar as pernas.
Acertou o pênis dele com o punho fechado.
— FILHA DA PUTA!
Ele curvou o corpo por causa da dor e então Kaira atingiu o nariz de em cheio com o cotovelo, que fez um som de algo quebrado e molhado.
Sangue manchou a mão dela e Kaira se levantou, meio tonta e sem forças, então pegou a arma e finalmente o atingiu. Ele desmaiou e ela caiu de joelhos, conferindo se respirava.
— Está vivo... ufa...
Os outros se aproximaram um pouco depois, Jason na frente e ofegante.
— Ele está morto?
— Não.
E então o homem fez algo que Kaira não esperava, deu um passo a frente e a sangue frio atirou no crânio do soldado desmaiado. Sangue respingou na bochecha dela, que apenas observava tudo boquiaberta.
— Agora sim — Jason triunfou. — Todos mortos, é o que mereceram por me passar para trás.
(...)
Kaira se limpou e colocou roupas leves, satisfeita por tirar o sangue daquele homem da sua pele. Foram tantas mortes, tantas perdas e tudo para quê? Por dinheiro?
A ganância era, para ela, o pior dos pecados.
Olhou-se no espelho enquanto penteava o cabelo e algo chamou sua atenção, na verdade não algo, mas a falta de um objeto antigo e dourado.
— Não... — seus olhos se encheram de lágrimas ao tocar o pescoço e não sentir seu colar. — Não, não, não!
O procurou na maleta e por todo o quarto, não o encontrando em parte alguma.
— Não — sentou na cama e cobriu o rosto com as mãos, sentindo que havia acabado de perder a última coisa que a mantinha ligada com a sua antiga eu. — Sou uma idiota.
Deveria ter caido na hora que Jason a arrastou... ou então durante a luta. Estava tão envolvida com a situação que não prestara mais atenção em nada.
— Droga...
Alguém bateu na porta e Kaira atendeu após alguns segundos, enquanto se recuperava. Era Nate, com a feição séria e ainda com a mesma roupa de antes, só que desta vez com mais sangue.
— Você está ferido?!
— Não — ele respondeu como se fosse um robô e Kaira sentia que finalmente estava conhecendo a pessoa por trás da máscara que ele criou. — Só passei para avisar que Paul está morto. Eu mesmo o matei, odeio traidores.
Kaira não desviou os olhos, mesmo que ele parecesse um pesadelo para qualquer pessoa.
— E odeio ainda mais pessoas mentirosas como você.
— Mentirosa?
Nate deu um passo a frente, quase a tocando.
— Enfermeiras não lutam como você fez, Kaira... estou de olho em você.
Ela estreitou os olhos quando ele se afastou. Paul estava morto e agora Nate não confiava mais nela, tudo porque não havia abertos as pernas para ele.
— Droga...
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