A filha perdida
— Você precisa tomar uma decisão logo, Kaira, tem que fazer a diferença quando está aí em cima!
Havia momentos em que a voz de Trey soava muito próxima, como se ele estivesse gritando em seus ouvidos com toda a força que exista nos pulmões mas, em outros, era como se Trey se encontrasse em outra dimensão, flutuando acima dela, em um mundo distante, com o som de sua voz vagando pelo ar, como ecos de alguém muito distante.
Aquele era um instante em que parecia que o homem estava segurando um megafone contra suas orelhas.
Um soco acertou o vão entre seus olhos, num ponto acima do nariz, e ela agradecia por isso e também pelo fato das luvas amortecerem gradativamente o golpe em sua pele. Foi acertada outra vez quando sua defesa foi facilmente quebrada, o golpe na bochecha a fez cambelar para o lado e depois um chute certeiro em seu abdômen a forçou contra a corda do ringue.
Kaira usou o impulso da corda ao seu favor, aproveitando-se do breve momento de elasticidade para ser lançada para frente e tentar acertar um punho em Breeze, mas falhou. A Nova Espécie foi mais ágil, impedindo-a com um único golpe forte na barriga.
Grunhiu, irritada por não conseguir fazer nada.
— Contra-ataque é uma idiotice contra alguém maior e mais forte, você não consegue, Kaira!
— Obrigada, Trey, você me estimula tão bem!
— É a minha obrigação.
— Vai, Kaira, acaba com ela! — Layla gritou, estava ao lado de Trey, cercada por outras pessoas que às observavam lutar.
Ao menos Breeze lutar, porque Kaira não conseguia revidar.
— Parece até mesmo que estão dançando ao invés de brigar.
Hunter comentou. Ele estava encostado no tablado, com os braços cruzados sobre o solo onde ela estava. Kaira queria ter a sorte de conseguir pisar em alguns dedos dele.
Breeze voltou para cima dela, atingindo-a no rosto algumas vezes com os punhos e depois sua barriga. Não havia literalmente nada que pudesse fazer, estava cercada pela fêmea enorme, presa em um canto, a única coisa que podia fazer era correr.
Mas correr parecia uma opção de covarde.
E correu.
Passou por baixo do braço de Breeze, rolando com as costas pelo chão do ringue, levantou-se e tentou acertá-la com um pé. Ergueu a perna direita, mirando na lateral da barriga da fêmea, acertou-a, mas quem disse que teve sucesso? Talvez não devesse ter feito aquilo.
Tarde demais para pensar.
A adversária segurou sua perna e o mundo girou com seu corpo, no outro segundo estava caída de costas e com Breeze em cima dela.
— Vem, Kaira! — Breeze provocou. — Não vai desistir, não é?
Levantou rápido, não era do seu feitio desistir; limpou o suor na testa com o antebraço e voltou para a luta, mesmo que com a respiração ofegante e quente, mesmo que com parte de seu corpo latejando, mas os golpes de Breeze não carregavam toda a sua força, caso contrário aquilo já teria acabado. Revidava como podia, com séries de socos e chutes, sendo que a maior parte deles eram impedidos. Breeze se defendia com facilidade.
Em um golpe ela estava novamente caída, embora tivesse sido rápida o suficiente para segurar o pescoço de Breeze e puxa-la consigo, manteve os braços presos daquele modo, esperando que de algum jeito pudesse mantê-la presa.
— Vai, Kaira!
— Mantém o aperto!
Ela o faria, não fosse o soco que atingiu a lateral da sua cabeça e a fez ofegar. Parecia que algo tinha se movido lá dentro. Um segundo de fraqueza foi o suficiente para perder a posição. De repente era ela que estava com o pescoço preso entre braços fortes.
— Já era, Kaira — Trey disse. — Desiste.
— Nem pensar — ofegou e grunhiu —, não vou desistir.
— Então arruma um jeito de sair!
Tentou dobrar o corpo e jogar Breeze por suas costas, para que caísse no chão, mas ela tinha o dobro de seu peso e altura. Tentou usar as pernas e cotovelos para acertá-la, tudo muito rápido, mas nada adiantava quando sua respiração estava entrecortada.
Seu rosto ardeu e até para respirar doía, como se houvesse brasas em seu peito.
— Bate logo, Kaira, desiste!
Naquele momento a voz de Trey estava distante.
O seu coração batia intensamente, ela podia o sentir na garganta e nos ouvidos, fazendo pressão por todos os lados, assim como o seu sangue.
Ela não queria desistir.
Sem forçar nas pernas ela caiu de joelhos, com a visão girando, com pontos escuros a cercando e só não alcançou o chão porque os braços ainda estavam apertando o seu pescoço.
— Bate logo, Kaira!
O fez, mesmo que contragosto, apenas por uma questão de instinto.
— Você aguentou bem — Breeze a soltou devagar, ajudando-a a alcançar o chão e deitar. — Tem uma vontade de ferro, Kaira.
— E um corpo de carne e osso — foi difícil falar enquanto recuperava o fôlego. — Fraco.
— Nós vamos aperfeiçoar isso, querida — a amiga riu, passando uma garrafinha de água para ela. Kaira pegou, estava sedenta. — Toma devagar ou vai ser pior.
Concordou, sorvendo o líquido aos poucos, sentindo-o queimar como fogo em sua garganta, mesmo que a água estivesse fria.
Trey subiu no ringue, passando entre as cordas e foi até as duas, a expressão divertida no rosto dele fez com que ela revisasse os olhos. Não era difícil imaginar o que viria em seguida. Ele sorriu ironicamente para Kaira, dizendo:
— Encontramos algo em que você não é tão boa.
— Aposto que você esperou muito por este momento, não é?
— Eu até mesmo sonhei com este dia, gracinha, vamos tirar uma selfie para deixar registrado. Precisamos de um nome para a foto — Trey fez uma careta como se estivesse pensativo. — Que tal: o dia em que Kaira tomou um pau?
— Que tal: quando você vai deixar de ser um babaca?
Breeze riu, levantou-se e foi até ele.
— Quer que eu tire a foto e te mande? — a pergunta, pronunciada em uma voz macia, quase num ronrono, fez com que Kaira apertasse as sobrancelhas.
Era o que estava imaginando?
— A foto que eu quero de você é outra.
— Ai, que nojo — reclamou, escondendo uma risada. — Vão flertar longe de mim.
Os dois riram e sairam juntos do ringue, afastando-se cada vez mais, até sumirem da sua vista.
Kaira voltou ao chão e acariciou lentamente as bochechas doloridas, a barriga também estava ardendo, mas não tanto quando doía no começo. Os seus músculos estavam acostumados ao esforço, mas queimavam, desejava muito tomar um banho quente para se aliviar.
— Você não foi tão mal.
Hunter estava em pé atrás da cabeça dela, com a mesma seriedade de sempre. As íris dos olhos dele eram tão escuras que era difícil as diferenciar das pupilas; a pele negra e perfeita reluzindo as raios de sol das imensas janelas de vidro.
— No entanto, se um dia tiver que lutar com alguém de verdade, para proteger a sua própria vida, vai morrer.
— Uau, obrigada, isso foi um elogio?
— Tenho certeza de que a sua língua não vai salvá-la, mas colocá-la em apuros.
Kaira revirou os olhos, levantou e recolheu suas coisas, dando as costas para o macho e indo em direção a Layla, que a esperava sentada do lado de fora.
— Os olhos são um ponto interessante, sabia?
Ela parou, curiosa e se voltou para ele.
— Quer dizer para que eu possa enfiar os meus dedos?
Hunter deu de ombros.
— Ou usar os dentes para morder.
— Não sou Nova Espécie.
— Ainda assim eles servem para morder e na hora da raiva tudo é mais intenso, não pense muito, apenas faça. Use tudo ao seu favor, principalmente a sua velocidade. Você é pequena e fraca se comparada a todos nós, mas pode usar as coisas ao seu redor, aproveitar-se do ambiente — ele se aproximou. — Você não conseguiu fugir daquela chave de braço.
— Pareciam mais dois pedaços de madeira ao redor do meu pescoço — brincou, mas ele não sorriu.
— Eu vou te mostrar como fazer, posso?
Ela concordou e largou as coisas. Hunter se aproximou mais, indo para trás dela, como um gigante e passou um braço por seu pescoço, firme e forte, mas não o suficiente para fazê-la sentir falta de ar.
— Olha para baixo — fez como ele disse, olhando os seus pés juntos. — Está vendo como as suas pernas permaneceram na frente das minhas?
— Sim.
— Se você fosse uma fêmea como Breeze ou até mesmo outro macho poderia curvar as costas e me jogar para frente com força e segurar o meu braço, até mesmo o quebrar, como tentou fazer durante a luta mas, como o seu peso não suporta o meu, você tem que tomar uma atitude diferente.
— Certo, me mostre.
— Passa a sua perna por trás da minha — fez o que ele disse, deixando sua perna esquerda atrás da direita dele. — Agora você empurra todo o seu peso para trás, levando o meu corpo com o seu, isso vai fazer com que caia sobre a sua perna. Tenta.
Kaira impulsionou o corpo com tudo, mas pareceu impossível o tirar do lugar, como se estivesse petrificado.
— Qual é? — resmungou. — Me ajuda!
— Eu te dei a mão e você quer o braço inteiro?
Rosnaria se pudesse, aquilo era um absurdo.
— Você tem mais de cem quilos e é enorme, tá achando que eu sou o quê, o Hulk?
— Tá bom — Hunter rosnou e diminuiu o aperto em seu pescoço, podia sentir que o corpo dele ficou mais relaxado. — Tenta agora.
Ela conseguiu quando tentou pela segunda vez e os dois foram ao chão, com o corpo dele sob o dela.
— Agora está vendo essa perna minha que ficou em cima da sua?
— Sim.
— Você vai entrelaçar a sua perna na do oponente, assim ele não vai poder girar para o lado — ela prendeu a perna dele. — Isso. Agora veja como meu corpo ficou todo exposto. Não consigo fechar as pernas e o seu adversário também não vai conseguir, então você pode acertar as genitais dele com o ombro.
— Assim?
Fez menção de acertá-lo lá embaixo, mas riu quando a expressão dele ficou tensa.
— É brincadeira.
Hunter não sorriu.
— Humpf… a reação da pessoa vai ser a mais previsível, ela vai querer curvar o corpo pela dor, uma atitude totalmente impulsiva, então você vai aproveitar e acertá-la com um punho, assim usando mais a força dela de vir para a frente do que a sua realmente.
— Entendi.
— Mas precisa ser rápida, se o seu adversário conseguir virar e fugir da sua perna... Já era.
Deu breves palmadas no braço dele, que a libertou logo após, os dois se levantaram.
— Obrigada pelo ensinamento, mestre.
— Eu só não quero que você se machuque — ele abriu um breve sorriso. — Agora você precisa tomar um banho.
— Estou fedendo?
— Não para mim, mas para Noble…
— Ah, entendi! — ela riu. — Não posso irritar ele ainda mais, então vou para a ducha.
Desceu do espaço de luta e pegou a mochila ao lado de onde Layla estava.
— Eu vou ir tomar um banho e nós já vamos.
— Tudo bem — Layla sorriu de uma maneira muito gentil quando cumprimentou Hunter, que passava ao lado delas. Ela colocou uma mecha de cabelo encaracolado atrás da orelha. — Oie.
— Oi.
A voz sem emoção do amigo fez com que Kaira escondesse um riso com a mão. Ele continuou caminhando até a saída, sem nem ao menos dizer adeus, mas ela já estava acostumada com o temperamento intenso e muitas das vezes frio. Não o culpava pelo modo como fora criado.
Layla se abanou quando ele estava quase saindo e sussurrou:
— Meu Deus, eu pagaria uma grana para ser treinada por um cara tão gostoso.
Kaira segurou a respiração naquele momento, sentindo que algo iria explodir dentro dela, então usou as duas mãos para tampar seus lábios, conforme seus olhos se enchiam de lágrimas.
Hunter se deteve na passagem e ele se virou lentamente, ela podia jurar que se a pele de Layla fosse branca a amiga estaria vermelha até o último fio de cabelo.
Ela deveria ter se esquecido de que Novas Espécies tinham uma audição maravilhosa.
Os dois trocaram um olhar demorado, como se o tempo por um segundo estivesse parado, a tensão estava tão explícita, intensa, rodeando ao redor deles quando ficaram em silêncio. Kaira podia jurar que vira divertidamente nos olhos do amigo sempre tão sério, enquanto Layla parecia querer cavar um buraco para enfiar a cabeça.
— Vejo você por aí, Layla.
A amiga balançou a cabeça, concordando, mas não disse nada, apenas segurou o cotovelo de Kaira, meio que se apoiando nela quando Hunter deixou, definitivamente, aquele espaço.
— Que vergonha! — Layla grunhiu. — Que vergonha!
Kaira finalmente libertou sua gargalhada, jogando a cabeça para trás e rindo com vontade. Apanhar por aquilo havia válido a pena.
🌡️
A mensagem que recebera alguns minutos atrás a fez mudar o caminho, deixar Layla no Centro Médico e seguir até a casa de Kismet. Era Noble, com palavras sérias e curtas. Sabia que o convite dele era apenas um pretexto para vê-la depois do treino, para garantir a si mesmo que não havia nada de errado… mas também existia outro propósito por trás daquela simples mensagem.
A casa onde Kismet vivia com os pais, Brawn e Becca, não era muito diferente da dela, com sua orgulhosa e clássica arquitetura americana, sem portão, grades ou muros, com dois andares e toda revestida em tábuas corridas e claras; a varanda na parte frontal da casa estava a um nível acima do solo e era acompanhada por uma escada que levava até a porta principal.
Kaira subiu os degraus e apertou a campainha ao lado da porta, certa de que não seria muito educado entrar na casa de Becca como fazia na de Tammy.
Um sorriso torto se abriu nos lábios dela ao pensar em uma piada sobre viver na Zona Selvagem.
— Kaira? — Brawn abriu a porta. — Kismet disse algo sobre hoje ser o dia dos rapazes.
Ela olhou para cima, fitando o rosto do macho. Ele era incrivelmente grande, com um cabelo negro e liso que caia por toda a sua coluna até a cintura, com uma aparência tão macia e brilhante que Kaira sentiu um pouco de inveja, era melhor que o dela. Os olhos dele eram azuis e intensos, como se fosse um céu noturno, felinos e extremamente sagazes, era fácil encontrar Kismet nas feições sensuais de Brawn.
Os dois eram super parecidos.
— Eu tô aqui só pela comida.
Ele sorriu e Kaira pensou na reação de Layla se o visse, com certeza se apaixonaria.
— Então entra, eles estão na cozinha.
— Obrigada!
Caminhou pela interior da casa quando o mais velho lhe deu passagem, deixou a mochila num canto próximo da cozinha e sorriu ao encontrar os amigos juntos.
O quarteto fantástico.
Forest e Kismet estavam entretidos em seus respectivos celulares, tão absortos em discutirem algo que ela revirou os olhos. Estavam viciados no jogo em que havia mostrado aos dois. Sentado na mesa, ao lado dos dois patetas, Salvation lia uma receita culinária em voz alta, enquanto Noble estava de costas, concentrado em algo no balcão.
— Oi, idiotas!
— Oi, Kaira — eles responderam em uníssono, menos Noble.
— Dia dos caras, Kaira — Kismet olhou para ela, reclamando em voz alta, como se alguém além deles devesse escutar. — Desde quando você é um cara? — ele sorriu maliciosamente. — Onde estão as suas bolas?
— Aposto que você estava pensando nisso desde o momento em que soube que eu estava vindo, não é? — ele balançou os ombros, desdenhando dela. — Por que tá tão incomodado? — provocou, querendo cutucar a fera por baixa da pele dele. Ou apenas sua masculinidade. — Você quer tanto assim ficar sozinho com eles?
Forest gargalhou alto, balançando a cadeira onde estava e continuou:
— Acho que ele está esperando o momento adequado para ficar a sós com Noble. Melhores amigos uma ova, tudo desculpa para ficar perto dele.
Kismet levantou, ainda sorrindo como quem pretendia aprontar e começou a caminhar lentamente até Noble.
— Como vocês descobriram que eu o amo? — ele agarrou Noble, passando os braços pelo pescoço dele e ronronou. — O dia dos caras é só uma desculpa para manter a namoradinha dele afastada.
Kaira riu ainda mais, sentindo sua barriga doer.
— Cuidado com a sua bunda, loirinho — Salvation brincou.
— Eu disse que a sua bunda era maravilhosa, Noble — ela provocou mais e todos eles riram, menos o alvo da brincadeira.
Um rosnado profundo e ameaçador preencheu a cozinha e Noble olhou para eles, sem virar o corpo, apenas os observando por cima do ombro.
— Juro que se não tirar essas mãos de mim agora mesmo, vai precisar construir outra cozinha para a sua mãe — ele ameaçou Kismet e sorriu de tal forma que Kaira segurou a risada. Parecia realmente assustador com aquele sorriso assassino. Ele olhou, lentamente para as mãos do melhor amigo, e depois para os olhos dele. — Tira a pata.
— É — ela concordou, fingindo estar enciumada e se aproximou dos dois. — Tira essas mãos do meu companheiro.
Kismet se afastou rindo e Kaira tomou o lugar em que ele estava, abraçando Noble por trás, apertando os braços ao redor do corpo maior. Beijou as costas dele.
— O que vocês estão fazendo?
— Asinhas de frango empanadas e caramelizadas, acompanhadas com molho apimentado — Salvation respondeu, voltando sua atenção para a receita. — Quer ajudar?
— Claro, o que preciso fazer?
— Corte alguns ingredientes para o molho enquanto Noble lida com a carne.
— Okay!
Trabalhou ao lado de Noble, provocando-o a cada gesto que fazia, roçando os dedos na pele quente, movendo-se ao redor dele, ousada, murmurando atrevimentos sem se importar com os outros, os quais faziam com Noble segurasse os sorrisos apenas para si mesmo.
Quando os dois terminaram e tudo ficou pronto, Forest e Salvation pegaram tigelas e bebidas, levando tudo para a sala com eles. Kismet ficou para trás, esperando.
Noble segurou a sua mão, olhando-a no fundo dos olhos, passando uma mensagem silenciosa, usando do fato de que se entendiam tanto que não precisavam usar palavras.
Fique.
— Você pode ir, Kismet.
— Eu vou sim, mas não porque você mandou e sim porquê eu quero.
Kaira riu e Noble suspirou fundo, a paciência dele a surpreendia sempre.
— Como ninguém bateu nele ainda? — indagou, observando o amigo de longos cabelos escuros e pele bronzeada se afastar e deixar o cômodo.
— Eu bati — Noble sorriu, um sorriso selvagem e belo. — E ele é igualzinho a você — ela ergueu as sobrancelhas, esperando uma explicação e imaginando qual seria. — Nunca se deixa ficar por baixo.
— Mas eu fico por baixo — retrucou audaciosa, empurrando-o devagar em direção a bancada, pressionando seus dedos contra a peitoral forte e quente por baixa da roupa. — Não está mais irritado comigo?
Noble balançou os ombros.
— Não estava irritado.
— Estava sim!
Ele não disse nada, apenas levantou os dedos e acariciou um ponto dolorido em seu rosto. Os olhos dourados se estreitaram e ela pensou no quanto ele se sentia irritado por aquilo, por ela estar fazendo algo do qual fora contra desde o início mas, que ainda assim, aceitara.
— Espero que você a tenha socado de volta e com muita força.
Ela negou, balançando a cabeça e abriu um sorriso torto.
— Eu nem ao menos fiz ela ofegar.
— Droga, Kaira — rosnou. — Não faz ideia do quanto eu odeio isso.
— Sei sim — segurou os ombros dele. — E você disse que iria ficar do meu lado.
— E eu vou!
— Ótimo! — pressionou os lábios nos dele rapidamente. — Agora vamos comer, tô faminta!
— Quando não es—
Tampou a boca dele antes que terminasse.
— Não ouse!
Eles comeram na sala, não tinha ficado nada mal, Kaira se vangloriou pelo gosto excelente do molho e Salvation disse que na verdade o mérito era dele, por ter lido as instruções. Ela achou justo.
Assistiram ao jogo.
Noble se moveu minimamente ao lado dela, com o braço sobre seus ombros, quando a porta da casa bateu, alisou os dedos ao redor da sua pele, apertando-a, Brawn estava saindo e eles trocaram um olhar. Kismet abaixou o volume da televisão e todos ouviram quando o carro deu partida e se distanciou.
Estavam sozinhos.
E agora podiam colocar os seus planos em ação. O jogo era apenas um pretexto para que estivessem todos no mesmo lugar sem que ninguém pudesse os ouvir ou ver.
Forest foi o primeiro deles que se levantou, tirou as tigelas de frango da mesinha de centro e abriu o grande mapa da Reserva. Kismet desligou completamente a TV e sentou no chão, ao lado direito da mesinha, assim como os outros se distribuíram ao redor dela, apenas Kaira ficou em cima do sofá.
Ela observou bem os detalhes na planta; o Centro Médico, o hotel, a academia de onde viera mais cedo e os espaços abertos onde costumavam praticar esportes, como o futebol americano. Árvores e rio, os caminhos que a água trilhava como uma serpente na terra, declives e aclives do solo, as casas ao redor da Reserva, os muros imensos e as ruas.
Tudo registrado naquele imenso pedaço de papel.
Kismet pegou uma caneta escura e ela esperava que começasse a falar sobre o seu plano e escrever, mas fez ao contrário, passando-a para Noble, o qual empertigou os ombros antes de começar a explicação.
Eles queriam pegar o traidor, aquele que levara um Nova Espécie embora em Homeland, mas que poderia estar ali, afinal, quem seria idiota para roubar duas vezes no mesmo lugar? Ela tinha sido a primeira a apoiar a ideia de Kismet, relevando seus momentos e diferenças, justamente porque desejava, desesperadamente, que alguém fizesse algo.
Em relação a desaparecimentos e buscas, cobiçou, por um milésimo, despejar tudo o que sabia em Kismet, porque era alguém que pensava como ela.
— O plano inicial era usar as torres de vigia ao nosso favor — os pontos estavam marcados com preto, no alto de cada uma das quatro construções elevadas que se erguiam acima do limite dos muros, locais onde guardas solitários ficavam e vigiavam durante a noite. — Um de nós ficaria no alto, observando a isca, enquanto os outros dois esperavam no menor nível do muro, mas eu tenho algo melhor.
— O quê? — Salvation perguntou.
— Vamos usar o espaço escuro perto do portão leste ao nosso favor, aproveitar que conheço aquele território. Não há multidão lá e os guardas então em menor número, em sua maior parte despreocupados, apenas lidando com entrada e saída dos trabalhadores humanos, o que torna tudo mais fácil para o sequestrador, a estrada sempre está vazia e ainda tem a floresta ao redor, adequada para esconder um corpo e esperar por carona. Vamos atrair quem quer que seja o traidor assim, entregando uma vítima com facilidade.
— Vão nos substimar — Kismet comentou e todos concordaram. — Eles sempre fazem isso, achando que somos selvagens idiotas.
Kaira se inclinou para frente, observando o ponto que ele marcou perto do estacionamento dos trabalhadores, próximo do portão na área leste. Noble sempre patrulhava aquele caminho e o muro próximo, onde tinham menos humanos.
— E se não aparecer ninguém? — Forest perguntou, virando o mapa para ele.
— Então quer dizer que o nosso inimigo nos conhece mais do que imaginamos e que é alguém que está aqui há muito tempo, o que torna tudo mais difícil, porque conhece nossos hábitos diários, caminhos, horários… — ela respondeu, mexendo distraidamente nos fios dourados de Noble, que encostou a cabeça em seu joelho. — Quem vai ser a isca?
— Eu — Forest disse de imediato e ninguém discordou.
— Vou ir atrás de qualquer um que aparecer e tentar pegá-lo — Noble garantiu. — Aquela floresta é meu lar e ninguém vai passar por mim.
🌡️
Ele não sabia qual situação o deixava mais tenso.
Kaira, que há semanas ignorava Aaron em todos os lugares que eles estavam, decidida a esquecer o homem e fingir que ele não existia ou o rapto de Novas Espécies.
Conseguia lidar mais com os planos de proteção e supervisão do que com uma fêmea cabeça dura.
Aaron, pessoalmente, chegara até Noble para perguntar o que estava acontecendo com Kaira, deixando-o sem saída além da mentira. Inventou qualquer besteira sobre ela não saber lidar com desconhecidos, além de ter citado que ela possivelmente era desconfiada por viver na Zona Selvagem.
Uma ou duas mentiras contra uma verdade absurda? Qual deveria escolher? Dizer que, por motivo algum, ela escolheu o ódio contra um pai que nem ao menos conhecia?
Ele relevava o estado de nervos de Kaira quando se tratava do pai biológico dela, porque a cada vez que ela ficava pálida ao ver o homem pela Reserva, Noble se lembrava do quão triste e raivosa ela parecia ao mesmo tempo quando falava sobre o homem quando eram crianças.
Kaira nunca chorara, lamentando-se por não ter um pai, seguira em frente, corajosamente, e aceitou Leo sem se importar com o sangue em suas veias ou suas diferenças.
Sem preconceitos.
A admirava pela bravura, pelo acolhimento e por ter preenchido seu mundo com sentimentos.
E ele precisava retribuir Kaira de algum modo, aceitando aquele comportamento hostil e hesitante entre os dois, simplesmente porque aquela relação não era da sua conta e odiaria acabar com a confiança dela.
Observou-a se afastar com Layla e Hunter, caminhava entre os dois, fazendo gestos escandalosos e falando alto, gargalhando sem se importar, deixando claro seus posicionamentos e gostos, fazendo com que aqueles ao seu redor a aceitassem como era.
Uma vez a avó dela dissera para Noble, pelo telefone, que Kaira era como um furacão, intensa em sua paixão, devastadoramente bonita e ousada e, que se ele conseguisse chegar em seu centro e tocar seu coração, seria recompensado com o mais belo dos arcos-íris.
Ele acreditava naquilo até então e ganhava o mundo sempre que ela sorria.
— Aqui, querido, o que acha dessa?
Noble quase caiu para trás quando sua mãe enfiou uma camisa na frente do seu rosto, por um segundo não rosnou para ela, temendo que seu pai acabasse com ele depois.
— É, querido — uma voz feminina soou muito próxima dele, em uma provocação, ele conseguia reconhecer o veneno daquela fêmea em cada palavra, e então ronronou. — O que acha?
— Deixa ele em paz, Kit!
A fêmea mais velha riu e se afastou, não antes de piscar para ele e sumir entre as outras fêmeas reunidas naquele espaço, próximas da fachada de uma casa. Ele não sabia quem morava ali ou porque haviam tantas roupas, mas acompanhou sua mãe por insistência de Valiant.
Breeze mandou a outra embora e apontou outra camiseta para Noble.
Ele não era um fã da moda, dificilmente olhava as roupas compradas por sua mãe e usava aquilo que estava em seu armário. Fácil e prático.
Se sentia mais confortável no uniforme escuro da ONE.
Afastou-se delas quando começaram a discutir sobre tecidos e cores, imaginando que poderiam passar horas daquele modo e quem cruzou seu caminho era justamente o alvo de seus pensamentos anteriores.
— E ai, Noble — o homem cumprimentou, sorrindo e mostrando os dentes brancos. — Como vai?
— Oi, Aaron — era difícil o ignorar como Kaira fácil, simplesmente porque ele era um cara legal e divertido. — Bem e você?
— Muito bem, estou indo verificar os sistemas de segurança novamente — o semblante dele se tornou sombrio e Noble assentiu, para que ele continuasse. — Quero pegar o desgraçado que passou pelo meu firewall.
Noble se interessou por aquilo.
— É você quem lida com isso?
— Em partes sim, mas não completamente, preciso estar disponível sempre que precisam de mim, viagens e missões, quando querem alguém para obter informações, então não posso dizer que coordeno tudo, embora gostaria que fosse — ele suspirou, tirou um cigarro do maço e apontou para Noble. — Posso?
— Vá em frente — deu de ombros. — Obter informações é um modo mais simples de dizer que você é um espião?
Aaron gargalhou.
— Com certeza, rapaz.
— E o que você sabe sobre o sumiço em Homeland?
Fumaça se dispersou pelo ar e ele deu de ombros.
— O mesmo que todos.
Simples e rápido, ele não hesita antes de responder, está blefando ou escondendo algo? pensou.
— Justice deve estar correndo atrás do prejuízo.
— O homem está, mas é difícil com a empresa jornalística em cima dele o tempo todo, aqueles merdinhas… piores do que abutres.
— E o que eles querem?
— Qualquer informação de Novas Espécies é como ouro lá fora, garoto — Aaron tragou. — Se quer um conselho, Noble, mantenha os olhos abertos e cuide dos seus. O tempo está passando, os líderes envelhecendo, o que as pessoas do outro lado do muro vão pensar quando um rosto jovem como o seu aparecer na frente das câmeras? O segredo de vocês não vai demorar a findar e, quando acontecer, a responsabilidade cairá nos seus ombros, nos de seus amigos — a fumaça que serpenteou em frente aos olhos de Noble parecia mostrar seu futuro, refletindo naquelas palavras. — Se eu tivesse alguma tendência suicída diria isso ao homem, mas não sou corajoso o suficiente para bater de frente com Justice.
Ele queria fazer outra pergunta, saber mais, mas foi interrompido.
— Noble, olha essa camisa, não é bonita? Melhor do que aquela outra — sua mãe veio em direção aos dois e sorriu, erguendo a peça branca. Ela parou e encarou Aaron. — Uh, quem é o seu amigo, filho?
Aaron estendeu a mão antes que ele pudesse dizer algo, sorrindo como se fosse flertar. Noble desejou o socar por olhar para sua mãe daquele modo.
— Aaron Morgan, prazer.
— Tammy North — ela abriu um sorriso bonito e os olhos claros brilharam em curiosidade. — O prazer é meu. Fico muito feliz que você esteja aqui, deve estar muito orgulhoso, Aaron!
— Como? — o sorriso nos lábios dele fraquejou brevemente, conforme seus ombros pareciam tensos.
Noble não entendeu na hora, mas a próxima frase que sua mãe soltou o fez sentir que seu coração fosse sair pela boca.
— Pela Kaira, oras, é uma garota excelente e você vai ver que uma ótima filha também.
Noble estapeou a própria testa, será que ela não podia se conter nem por um segundo?
— Mãe!
Tammy o olhou e talvez tenha visto o desespero em seus olhos, ou a careta exagerada que parecia implorar pelo silêncio da parte dela. Não saberia dizer, mas algo em sua feição deveria mostrar que aquilo foi um erro.
— Ah… eu deveria ter ficado quieta?
— Sim, mãe.
— Droga — Tammy bateu o pé. — Nisso que dá me contar as coisas pela metade, bem feito, arrume a confusão agora!
— Hã… Kaira... minha filha?
Os dois se voltaram para Aaron, que estava pálido e com a mão ainda erguida, o cigarro caira no chão e parecia que ele seguiria o mesmo destino. Ele deu um passo para trás e Noble pensou que o homem realmente iria cair, no entanto não aconteceu. Aaron se firmou no chão, os minutos tensos de silêncio correndo entre eles, o tempo mudando assim como as expressões no rosto dele.
Num instante estava pálido, exasperado, no outro parecia um novo homem, decidido e forte, o que o fez pensar que havia muito dele em Kaira.
E estava certo.
— Me leva até ela agora!
🌡️
Kaira havia deixado Layla e Hunter sozinhos e foi até o seu carro no estacionamento do Centro Médico, estava na frente do veículo quando uma voz chamou sua atenção. A conhecia muito bem.
— Jericho!
Pulou nos braços do amigo de olhos castanhos avermelhada, abraçando-o com força.
— Que saudade!
— Você nunca mais veio até mim — ele fazia uma reclamação, embora sorrisse. — Me trocou por aquele filhote fujão.
— Que mentira, nunca o troquei — Jericho desceu os olhos até o colar em seu pescoço, caçoando dela. — Tudo bem, mas olha!
Mostrou o zíper da mochila que carregava consigo para todos dos lados, o pingente pequeno e primata ainda estava lá, sempre nos mesmos lugares que ela.
— Está sempre comigo — sorriu. — No meu coração.
— Você também está no meu — o sorriso dele era gentil, do tipo que a derretia.
— Almoça comigo? Estava mesmo indo pegar o carro para ir até o refeitório.
— Eu não vou chegar nem perto desse carro — Jericho cruzou os braços.
— Por que não?
O grande Nova Espécie sorriu de uma forma que fez Kaira segurar a risada; era a reprodução de uma careta que parecia misturar repulsa e náusea, Jericho mostrou os dentes em desagrado e o som que ele fez parecia o soar de um tambor, forte e intenso.
— Não quero ficar no mesmo lugar onde você foi deflorada.
— Deflorada? — ela riu. — Desde quando você usa essa palavra?
— Desde quando eu soube dos seus planos para a minha velha caminhonete — Jericho rosnou. — Não posso dizer que gostei.
Kaira gargalhou.
— Quer ir a pé, sério?
Ele confirmou e ela apenas aceitou.
O almoço ao lado dele foi tranquilo e divertido, enquanto Jericho contava sobre as aventuras de Luck e Anna, Kaira ficava tão feliz pela felicidade dele.
Não brincava ao dizer que Jericho era incrível, inteligente e humilde, um macho que sempre ajudava à todos, principalmente seus amigos.
Tinha orgulho de ser amiga dele.
— Então, eu disse para ele que pudes—
Ela se calou no meio do que dizia, arregalou os olhos e sentiu falta de ar.
O que Noble estava fazendo com Aaron? Por que os dois estavam caminhando, decididos, em sua direção?
— Eu juro que não falei nada — Noble se defendeu assim que chegaram na mesa onde estava. — Minha mãe que contou, por favor, entenda que não é minha culpa. As nossas mães estão sempre fofocando… ela sabia, então… eu soltei algumas coisas e—
— Kaira…
Não se importou com o que Noble dizia, incapaz de prestar atenção em qualquer coisa além de Aaron, olhando-a por inteira, perscrutando-a com atenção, com avidez.
Será que procurava semelhanças?
Detalhes que poderiam mostrar que ela era dele?
— O que está acontecendo? — Jericho perguntou, sério, e ela esperava que o amigo pudesse amendrontar Aaron, mas ao invés disso o homem sentou na frente dela. — Você o conhece?
— Infelizmente.
— Eu sou Aaron Morgan — eles trocaram um breve olhar. — O pai dela.
Pai.
A palavra a fez sentir fogo correr embaixo das veias, com raiva, rancor, tristeza e frustração. Ele não tinha o direito de dizer aquela simples palavra. Queimava como fogo.
O ódio.
Por que se sentia daquele modo? Perdida, mas raivosa.
Pai.
Parecia uma piada de mal gosto.
Pegou o copo de suco que estava sobre a mesa e despejou nele de uma vez.
— Cala.a.boca — grunhiu, apertando o plástico entre seus dedos. Os olhos arregalados, a boca aberta, todo aquele conjunto exasperado e surpreso alimentou aquela fera dentro dela, aquela criança que havia ficado para trás no dia dos pais na escola, a solitária que não cantava aquela música tola e idiota. — Vai embora.
Aaron limpou os olhos castanhos, afastou todo o cabelo molhado para trás.
Todos estavam em silêncio, esperando algo, uma reação.
E o que ela ganhou daquele homem a fez levantar e começar a caminhar até a saída. Pena. Dó. Compaixão.
Preferia o ódio.
Aquele que queimava em seus olhos, em sua garganta, aquele que segurava as lágrimas em seus olhos.
— Por favor, Kaira, me ouça… eu sou seu pai, acho que mereço ao menos uma chance! — ele disse, correndo atrás dela, fazendo-a rir ironicamente. Aaron realmente acreditava que conseguiria alguma coisa com chantagem emocional? Ele não sabia nada sobre ela. Pai? Deveria se sentir envergonhado por proferir aquilo. — Espera!
Aaron a agarrou pelo braço e ao mesmo tempo um rugido soou alto pelo refeitório. Kaira se virou a tempo de ver Noble empurrar o homem para longe, com a feição feroz.
— Sem violência — Kaira resmungou, puxando a mão dele. — Vamos embora, não quero chamar atenção — ela abriu um sorriso falso e acenou para todos que estavam ali, prestando atenção nos três. — Não mais.
— Eu faço o que você quiser, Kaira.
Suma.
Ela realmente cogitou dizer aquilo, sendo guiada pela loucura, mas algo se agitou dentro dela, pensando que poderia brincar com o homem. Fazê-lo sentir o mesmo que ela.
Jogar em seus ombros o peso de ter alguém perto e ao mesmo tão distante.
Sangue do seu sangue, apenas.
Sorriu maldosa e aquelas lágrimas em seus olhos não escorreram, queimaram junto com o sarcasmo em sua voz.
— Hmm… lembra do Lago Tahoe, Noble?
— Sim, por quê?
Ela sorriu para o homem, satisfeita com a ideia.
— Nos arranje uma viagem até o Lago Tahoe e talvez, só talvez, eu fale com você.
🌡️
Agora todos sabiam quem era Aaron Morgan e o que ele significava para ela.
Manteve aquele acontecimento no fundo da gaveta, escondido nas memórias com as quais não se importava ou lembrava, ignorando todas e quaisquer menções a Aaron.
Não era difícil.
Sentiu raiva de Noble, de todos na verdade, mas não ousou despejar nada sobre ele. Não quando era o companheiro quem lambia suas feridas e estava ao seu lado enquanto elas cicatrizavam.
E, além de Aaron, outras coisas a preocupavam.
Outro Nova Espécie sumira em Homeland, sem rastros, sem cheiro, sem imagens, como se nunca houvesse existido.
Desaparecido.
Aquela palavra se enrolava em sua língua sempre que falava, carregando consigo um gosto amargo e frustrante.
— Nós subestimamos o inimigo ao pensar que ele não atacaria duas vezes no mesmo lugar — Kaira murmurou, apenas as chamas da fogueira no meio da clareira iluminavam seu rosto. O semblante sério, carregado, os ombros curvados, cansada de tudo o que estava acontecendo. Ela tremeu e os pelos de seu braços ficaram arrepiados, não por causa da brisa gélida, mas pelo que ainda esperava acontecer. Pelo futuro. — Aliás, por que alguém seria idiota de levar um Nova Espécie da Reserva ou até mesmo da Zona Selvagem? Nós não pensamos direito. Foi burrice subestimar alguém que não conhecemos, nada além de um fantasma em nossos pensamentos.
As mãos de Noble envolveram seus ombros e ela se apoiou nele, compartilhando do calor da pele dourada.
— Infelizmente, vou ter que concordar com Kaira — Kismet rosnou e mexeu na lenha em chamas com um graveto, o laranja e amarelo refletindo em seus olhos. — Por que levariam alguém daqui? Seria mais difícil de o controlar, um semiselvagem ou selvagem, tanto faz, nenhum médico gostaria de lidar com os machos de dois metros de altura, com garras e dentes extremamente afiados.
— Eu gostaria de ter um manso em minhas mãos — Forest murmurou, olhando para o nada, como se não estivesse falando com nenhum deles. — Mais fácil para controlar, manipular e machucar. Menos perigoso.
Um tapa acertou a cabeça do loiro. Era Salvation, mostrando as presas numa careta.
— Cala a boca.
— Tudo bem, nós não pensamos muito em Homeland — Noble tomou à frente, silenciando os dois que começavam a discutir. — Mas este é o nosso lar, o que podemos fazer por Homeland além de torcer para que Justice faça o trabalho dele? — ela queria discordar, dizer qualquer coisa que fosse contra, mas o quê? Não tinha nada que pudessem fazer. — Vamos manter o plano, continuar vigiando, atentos — ele abriu um sorriso sinistro perante o fogo. — Um raio cai três vezes no mesmo lugar?
Kaira esperava que não ou o destino estaria sendo muito, muito irônico.
Eles continuaram em frente, com o plano funcionando, com Forest servindo como isca enquanto os outros ficavam afastados, esperando alguém cair na armadilha preparada na escuridão.
Ela só participava disso em ideias, enquanto seguia com a faculdade e faria um ano desde o início do curso. Nem parecia que os meses passaram tão rápidos, que logo faria outro aniversário, que estaria mais velha, embora não tão sábia quanto gostaria.
Treinava luta com as fêmeas, como fugir de golpes com Hunter. Noble estava ensinando ela a rastrear na floresta, a ser como ele, um predador, gostava daquelas aulas, especialmente de quando os dois acabavam nus e fazendo amor.
A vida continuou como sempre, mesmo que tudo tivesse mudado.
— Até a próxima! — acenou para Layla e Hunter, os dois ficaram na academia quando ela saiu. — Não esqueçam a proteção, quem ama cuida!
Correu pelo caminho da pedras na frente do prédio, pretendia chegar no carro antes que começasse a chuva, as nuvens no céu estavam escuras, tudo estava tão bem… até que cruzou com ele.
O sorriso em seu rosto se desmanchou.
— Aaron?
— E ai — Aaron jogou um cigarro para longe. Ela não sabia que ele usava aquela droga. O cheiro ruim da fumaça chegou até o seu nariz. — Como vai, garota?
Ela não respondeu, sentia-se desconfortável sob o olhar dele, talvez até mesmo envergonhada pelo que fizera e por isso desviou a direção, seguindo reto para o estacionamento quando ele a segurou pelo braço.
— Eu consegui o que você queria.
— O quê?
— A viagem.
Ela pensou no que o fez conseguir aquilo tão rápido.
O desespero para conhecê-la?
Permitiu-se sentir empatia pelo homem… ao menos parte dela sentiu.
Os olhos castanhos brilhando em expectativa, meio avermelhados, envoltos por bolsas escuras de olheiras, o cabelo desgrenhado, com mechas da cor dos dela.
Eram tão parecidos.
Seu pai.
Bastava a ela dar uma chance ao homem, mas queria?
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