1 - PEDACINHO DO MEU CORAÇÃO
"Take it!
Take another little piece of my heart now, baby"¹
JÁ ERA MADRUGADA QUANDO o show na casa noturna acabou. Não enchera como a gente esperava, mas conseguimos arrumar uns trocados para, pelo menos, voltarmos para casa. Enquanto as pessoas saíam, e nós da banda guardávamos nossos instrumentos, em algum canto era possível ouvir a voz inconfundível da Rainha do Rock, Janis Joplin. Eu conseguia reconhecer a canção e o álbum: Piece of My heart, no álbum Live With Winterland '68.
Ergui o olhar, fechando o zíper do estojo da minha guitarra, e observei as poucas pessoas deixarem o local. Eu estava começando a me cansar daquela vida; da vida de não ter reconhecimento profissional. Nossa banda estava formada a, pelo menos, uns cinco anos. Mas, antes de terminarmos o ensino médio, levávamos a música apenas com um hobby. Quando nos formamos, Scott e eu decidimos investir no nosso talento: a voz dele e minha maestria na guitarra.
Fizemos uma audição na garagem de casa; na ocasião, eu tinha dezoito, e Scott, dezenove anos. Eu fazia aulas de guitarra desde os dez, e meu irmão sempre teve uma voz afinada e harmônica. À época, tínhamos um baixista e um baterista amigo nossos, mas que não toparam levar a coisa toda para o lado profissional. Não amavam a música o suficiente e tinham outros planos para seus futuros, como ingressar em uma boa faculdade. Assim, deixamos a banda e resolvemos formar a nossa própria. Recebemos alguns candidatos, avaliamos suas performances, estilos e influências musicais.
Mike Smith — um cara de cabeleira e olhos pretos, porte médio e tatuagem de caveira no braço — ficou com a vaga de contrabaixista. Amy Patterson — uma ruiva sem papas na língua e corpo curvilíneo, por quem meu irmão se apaixonou logo na primeira semana — foi selecionada para ser nossa baterista. Por muito tempo a gente se reuniu na garagem pra fazer um som, conversarmos e nos conhecermos melhor. Tirando Mike, nenhum de nós podia beber, mas isso não nos impedia, aliás.
Por meses tocamos na garagem de casa sem termos um nome para nossa banda. Até que um dia, semanas antes do aniversário da nossa mãe, decidimos que era hora de um batismo. No quarto do Scott passamos muito tempo escolhendo um nome legal, que combinasse com um estilo que ainda não tínhamos (mas pretendíamos ter) e, lógico, que transmitisse a nossa essência.
Doktor Rock foi a nossa escolhida. De todos os critérios que propusemos para escolhermos o nome da banda, apenas o quesito "legal" se encaixava. Não tinha nada a ver com nosso estilo e nem nossa essência. Era bacana pra nós. E isso nos bastou.
Nossa primeira apresentação, digamos assim, foi na festa de aniversário da nossa mãe. Hilary Johnson nunca foi uma mulher de modéstia. Comemorar os seus 45 anos deveria ser algo realmente grandioso, que juntasse toda nossa família, amigos íntimos, apenas conhecidos e figuras importantes da cidade, a quem ela, como promotora, conhecia aos montes. Uma festividade imensa foi organizada em um dos maiores e mais caros salões da cidade. Como esperávamos, muita gente veio. Acho que esse aniversário da minha mãe só não foi maior do que o casamento dela com meu pai.
Enfim, fizemos nossa primeira apresentação, embora tenhamos sidos obrigados a tocar algumas músicas mais suaves. Hilary poderia ter um infarto se, por acaso, tocássemos alguma coisa mais para o lado do que realmente amávamos fazer: rock n' roll. Assim, montamos uma playlist completamente rock n' roll, no entanto, com canções mais românticas e suaves. Apesar disso, achamos válida a oportunidade de nos apresentarmos na frente de umas trezentas pessoas e mostrarmos nosso potencial. Tínhamos ensaiado muito. E estávamos confiantes.
A partir desse dia, começamos a divulgar nossa banda, falar para os amigos, participarmos de feiras e eventos, deixávamos nossos contatos em bares, boates, restaurantes... Tocávamos de graça em aniversários ou casamento de amigos próximos (como quando o pai de Mike se casou pela quarta vez) tudo no intuito de nos divulgarmos.
É claro. Ao longo do tempo nós conquistamos um público bacana, que nos acompanhava e nos divulgava, mas estava longe de ser o que a gente queria e buscava. E agora, quatro anos depois de decidirmos viver da música, contrariando todo o sonho dos meus pais, já era tempo de colhermos um pouco o fruto dos nossos esforços. Contudo, nada acontecia.
De quatro anos pra cá, a Doktor Rock amadureceu e muito. Ainda fazemos covers, mas também temos nossas próprias composições. Encontramos nosso estilo e nos esforçamos ao máximo para levar às pessoas o nosso trabalho. Mas elas parecem não querer nos ouvir. A nossa banda continua não somente no anonimato, como continua estagnada num único ponto, onde não avançamos; ao contrário, parecemos retroceder. Nosso público parece cada vez menor, embora haja muito empenho e afinco em nos divulgarmos, em fazermos um bom trabalho e um som legal.
E eu não consigo realmente entender qual o problema da Doktor Rock em crescer, nem que fosse um pouquinho. Nos últimos quatro anos, mesmo com todo nosso investimento em instrumentos musicais, divulgação e melhorias em todos os aspectos musicais que você possa imaginar, eu não conseguia ver um avanço, uma mudança boa. Nada.
— Ei, cara! — uma voz bradou, me tirando das minhas dispersões.
Virei-me no mesmo instante e me encontrei com aquele par de olhos suaves e amistosos de Joe Baker, o meu melhor amigo. Abri um sorriso meio fúnebre, sem muita animação enquanto ele se aproximava e me tomava em um abraço apertado.
— Que apresentação foda, amigo! De verdade! Foi incrível!
— Ah, eu sei. Foi mesmo uma coisa de outro mundo — devolvi, voltando-me para meus instrumentos. Analisei por um momento os pedais de guitarra, abaixei-me e comecei a guardá-los. — O público foi ao delírio! — ironizei, olhando-o por cima dos ombros com um sorrisinho pequeno.
— Ah, não seja assim, Jim. O pessoal gostou.
— Sim, a meia dúzia de pessoas na pista adorou o nosso show. — Então suspirei, meus pensamentos me reportando para as mesmas paranoias antes de ser interrompido por Joe. Como eu dizia, eu estava cansado. Cansado de não ver minha banda progredir profissionalmente. Isso me deixava em um nível de frustração que eu não sabia explicar.
Senti duas mãos fortes sobre meus ombros e, com uma força que só poderia vir de Joe, fui obrigado a me levantar e a encarar aqueles olhos de novo.
— Você e a Doktor Rock vão chegar aonde merecem em breve. Só seja paciente, Jim.
— Você fala assim porque a sua banda está ganhando reconhecimento. É sério que vocês foram selecionados para o Talent Rock?
O Talent Rock era um programa de televisão muito famoso. Inclusive, havia versões em mais de cinquenta países. E era o sonho de toda banda de rock participar de um reality show como aquele. Nós tentamos inscrever a Doktor Rock em duas ou três temporadas, mas nunca passamos das audições. Meu melhor amigo, que nunca levou a música muito a sério, no entanto, estava classificado para a próxima fase do programa.
— Sim, mas... Jim, isso é detalhe. Tudo ao seu tempo, cara. Tudo ao seu tempo. E, quer saber, eles ainda estão fazendo audições. Deveria inscrever sua banda de novo.
Olhei ao redor. Scott e Amy já tinham terminado de guardar os instrumentos e acessórios por quais eram responsáveis, e, agora, estavam trocando um beijo cândido em um canto, enquanto a guitarra dele estava ainda pendurada nos ombros, e ela, segurava as baquetas. Mike estava ao telefone, digitando mais rápido do que eu mesmo conseguiria. Pensei por um segundo na sugestão de Joe.
— Ah, não sei. Já tentamos algumas vezes. Não passamos.
— Mas isso foi antes, Jim! — Joe seguia me incentivando, com aquele seu jeito amigável e motivador. — Vocês evoluíram em tudo da última participação para cá. Vamos, me prometa que vai, pelo menos, pensar no assunto.
Eu lhe diria não, mas eu conhecia Joe o bastante para saber que seria insuportável se eu não desse o que ele queria ouvir. Então apenas concordei:
— Tudo bem, vou pensar no assunto.
Joe Baker abriu um enorme sorriso de ponta a ponta e me trouxe para um abraço meio desajeitado. Ajudou-me com o restante das minhas coisas e, depois de nos despedirmos dos demais integrantes, juntos seguimos até o Boca do Inferno, onde tomamos muitas cervejas e jogamos conversa fora até as oito da manhã.
Eu estava no meu quarto, sentado na frente do computador esperando-a ficar online. Já tinha pelo menos três dias desde o nosso último contato e — acreditem — isso era muito pra nós dois. Normalmente nos falávamos todos os dias, mesmo por apenas algumas minutos. Mas por causa do seu fuso horário, do estágio e dos trabalhos da faculdade que precisava entregar, e também porque eu andava ocupado (e dormindo) com os shows noturnos daquela semana. Por um milagre que só pode ser compreendido por Deus, fomos chamados para mais cinco shows durante a semana depois daquela noite no The Night Club, onde eu me encontrei com Joe e fui incentivado a inscrever a Doktor Rock novamente no reality show mais desejado da história; e isso já tem uma semana.
Por isso, a maior parte do meu tempo todo foi ocupada com ensaios e sono.
Vagando pelos meus pensamentos enquanto a esperava, eu tomei uma atitude meio precipitada: abri uma aba no navegador e acessei o site oficial da Talent Rock. Rolei o mouse pela página principal, vendo as bandas selecionadas para a próxima etapa, biografia dos jurados, playlist, lugares das próximas audições etc.
Meus olhos correram até o canto superior direito, no último tópico do site: Inscrições. Respirei fundo e não pude me frear. Cliquei ali e, um segundo mais tarde, estava encarando um formulário. As letras enormes logo acima, em vermelho, anunciavam que hoje era o último dia de inscrições. Meus dedos estavam ansiosos para digitarem as informações nos campos e agiam quase sem minha ordem. Mesmo eu querendo muito participar, deveria falar com a banda primeiramente.
Eles não vão se importar, minha mente acusou, atiçando mais os meus dedos, que agora já repousavam sobre o teclado e estavam prestes a digitar o necessário. A ação foi impedida porque o som de notificação de uma mensagem dela soou pelo sistema de som do computador. Troquei de janela rapidamente, e ali estava uma foto dela com um sorriso enorme de frente à sua universidade, os braços abertos e uma alegria contagiante. Corri os olhos até sua mensagem e sorri instantaneamente. Adorava o modo como só ela me chamava.
J.J! Finalmente você está online. Estava com saudades, sabia?
"J.J" são as iniciais do meu nome e sobrenome. Jim Johnson. As pessoas normalmente me chamavam apenas de Jim, mas Charlotte, desde que eu posso me lembrar, me chamava de J.J. E, sinceramente, eu amava o seu apelido para mim.
Nós passamos o resto da tarde conversando. Pelo menos, aos domingos, Charlotte tinha uma mania sagrada de não fazer nada nesse dia, não importa o quanto precisasse estudar. Era seu dia de descanso e não fazia nada além de relaxar. Contei-lhe sobre a sugestão de Joe em inscrever a banda no Talent Rock. A princípio, achei que ela fosse me desmotivar, me dizer para dar um rumo na vida, estudar alguma outra coisa que realmente desse um jeito no meu futuro: engenharia, medicina, advocacia.
Para minha surpresa, Charlotte me incentivou. Disse ser uma ótima ideia e que ela até poderia criar um logo para nossa banca (coisa que ainda não tínhamos) para ficar algo mais profissional. Enquanto digitava furiosamente e me bombardeava de mensagens animada com a ideia, eu voltei para o site do programa e pensei por mais um minuto inteiro até preencher a ficha e enviar.
Charlotte ficou eufórica. Ela sempre nos apoiou, na verdade. Mas, chega uma hora na nossa vida que a gente vai receber um "desista disso, tente outra coisa!". Mas não ela. Charlotte seria capaz de continuar nos incentivando mesmo se estivéssemos velhos gagás e falidos. Era a maior e mais admirável qualidade dela. E eu amava isso, também.
CHARLOTTE: J.J, eu preciso ir! Vou sair com algumas amigas. Falo com você amanhã.
J.J: Tudo bem, pequena. Vá lá e se divirta. Tome cuidado. Eu amo você.
CHARLOTTE: Tomarei cuidado. Eu também amo você.
Meio segundo mais tarde, ela já estava off-line. Sua ausência me deixou um pouco melancólico. Queria mais um tempinho para conversarmos. Não gostava de estar longe dela. E Charlotte estava em Londres, a estudo, já tinha bem uns dois anos. Consolava-me saber que, no Natal, mataria a saudade da minha pequena.
Enquanto isso, enquanto estivesse longe, do outro lado do oceano, Charlotte sempre estaria com um pedacinho do meu coração.
¹Pegue/Pegue outro pedacinho do meu coração agora, baby. Janis Joplin, Piece of my heart
https://youtu.be/iJb7cBfrxbo
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