Prólogo - Uma provação dada pelos deuses
— Você poderia dominar o exército de Lycaon e por essa terra em nossa posse com força bruta - disse levianamente. Uma mão na taça com a bebida feita pela criatura alva. Parado no batente ao lado da larga cama, o olhar fitando o início do dia além da varanda. Manhã delineava a silhueta da cidade dos plebeus.
— Hum? - ela, melodiosa. Dedos caindo-lhe sobre os ombros. O hálito chegou a orelha e pescoço de Níctimo. - E qual seria a graça? Vamos, jogue o jogo como um bom menino. Eu o confortarei alegremente quando perder.
Um leve desprezo quase cruzou o semblante do filho de Lycaon. Que colocou um sorriso leve no rosto e de esguelha observou a íris púrpura da criatura.
Era como olhar para o mar a noite. Uma imensidão pronta a afogá-lo.
''Se o mar fosse lilás e feito de desejos mundanos''.
— Nunca foi uma rainha, não é mesmo? Acredite, do jeito que a faria ser aqui, até reis teriam inveja do quão divertido seus dias serão.
Os dedos dela tencionaram em sua carne, pesados como alguém dezenas de vezes maior. Acima da alta cama punha a diferença de altura para seu rosto a um mirrado centímetro.
Mas ainda, quando a coisa surgira diante de si na noite anterior, por bons segundos pensou se tratar de um olimpiano.
Ela apenas parada e Níctimo... músculos a comprimir dolorosamente sob uma força invisível. Boca tomando a função do nariz. Cor sumida da pele.
Gramas balançando enlouquecidas no solo. Ventos fortes assobiando. Chão a tremer. Alguns soldados mortos sendo arrastados sobre poças do próprio sangue.
E também vira memórias. De futilidade, sangue, morte e... força. ''Soube de imediato. Apesar de não ser uma deusa, era algo sem precedentes entre os mortais... tão inimaginável quanto Aquiles''.
Rira na hora. Um som engasgado e trôpego minando o já escasso ar nos pulmões. Roxos surgindo na carne. Escuridão crescendo a partir das bordas de sua vista.
Aquele poder... e as informações, mesmo que vagas sobre ela, eram um presente. Uma provação certamente dada pelos deuses.
́ ́Conquiste esse poder. Dome-a a sua vontade e não haverão inimigos cujo potencial Bélico precisará temer'' algum nome entre os doze do Olimpo deve ter pretendido.
Ela cessou sua influência mística sobre o ambiente. E conversaram e chegaram a um entendimento.
A criatura o curou com um líquido feito do ar, como se fosse o próprio Dionísio ou Esculápio. Apresentou um nome que não fora o que ouvira no rompante das lembranças dela.
''Circe'' o contara.
Níctimo a levou ao aposento minutos depois. Durante a noite passada, com o Genos em festa e poucos olhos ao redor do palácio.
''Uma lâmina sem empunhadura. Puro aço afiado. Me cortará no menor deslize ao manuseá-la... como tantas outras''.
No quarto se entenderam perfeitamente bem. Aquilo seria mais que uma fria domesticação, o lycan percebeu e sorriu a qualquer que fosse o deus por trás daquela provação.
— Acha que sou mais fácil de lidar que seu pai, não é? - Agora, pela manhã. A realidade da situação definitivamente acertada. Ela beijou-lhe o pescoço. Sem pressa. Dando-o a agitação de um arrepio agudo, então sussurrou-lhe no ouvido. - Que fofo.
Quieto, Níctimo forçou os músculos a manterem-se relaxados. Falara demais ontem. Bebida, empolgação pós vislumbrar a própria mortalidade. As mãos, o corpo e a voz da criatura nublando sua racionalidade com luxúria.
"Como proceder...?"
"Não, ela notou. A guarda está alta, dispense rodeios".
Andou à frente, deixando a pequena criatura de pé sobre a cama.
— Se quer ouvir e compartilhar de meus planos terá que fazer sua parte. Se não como força bélica... - um sorriso genuíno subiu aos lábios. - Brinque com meus irmãos e irmãs. Com meu pai e suas rainhas. Seja amiga leal deles. E me conte tudo que tenha alguma relevância. Fraquezas, desejos, forças. Irei apresentá-la oficialmente em breve, até lá estude com meus livros nossos costumes e não deixe esse quarto.
— Pede tanto da pequena eu, mas o que oferece em troca? Seus mirrados devaneios?
''Talvez ela se saia melhor que Margaery''. Fitou a figura com dois longos chifres marcados de rubro no topo.
Mantê-la em movimento era perigoso. Sua lealdade não repousa em lugar nenhum que não no próprio prazer, e até dá-lo, se em demasia... a fará em algum momento perder de vista a necessidade de não comer, no sentido gastronômico da coisa, sua companhia.
́ ́Diálogo é o melhor modo de agradá-la. Vai satisfazer seu desejo por atenção e estima e por provocar. Mistura com copular, com desafiar algumas de suas vontades e a terei inclinada a meu lado''.
— Minhas intenções pelas de minha família. E a posição de rainha quando alcançarmos o topo. Além do mais... - virou por completo rumo a ela. O sol marcando-lhe a silhueta cor de cobre, o topo de casas subindo as costas e o azul e as nuvens compondo o plano de fundo. A mulher com olhos lilases ergueu as pálpebras um pouco mais. - Não lhe soa divertido ver a família real em seu íntimo? A julguei mal?
A boca dela abriu na face branca. Fechou. Tinha os cabelos negros penteados para trás, indo a altura da metade da garganta. Trajava roupão roxo e a mancha vermelha no topo dos chifres tinha o tom de vinho na sombra.
O olhar dela deslizou pelo peito, ombro e braço do licantropo. Até parar na taça intocada na mão dele.
Níctimo notou o notar. E bebeu o líquido. ''Se aquilo quiser me matar não será recusar sua bebida que mudará meu destino''.
Colocou todo o conteúdo para dentro. Meio amargo, forte. Prazeroso calor percorreu as veias do Lycan.
— E... isso era meu mijo - a pequena mulher, expressão neutra.
A fitou, silêncio pairou por dois segundos.
— Não, não era - a disse, devagar. Observando a face jovem e harmônica. Em busca dos lábios, dos olhos, da testa. Pelo menor movimento.
''O gosto não é exatamente o habitual, mas é vinho''.
Ela desceu da cama e se dirigiu a escrivaninha. Fora do campo de visão de Níctimo.
— Obviamente não era - o lycan falou em um tom ligeiramente mais alto que o corriqueiro. Passos rápidos levando-o para dentro do cômodo. - Não era mijo.
A criatura riu.
— Se você diz - ela. A mão agarrou uma taça na mesa, então virou para Níctimo e a estendeu a frente. As pernas afastaram-se expondo a metade inferior nua sob o roupão. - Que tal compararmos?
Ela fechou os olhos, a face pendeu de leve para cima. A luz refletia na umidade embaixo.
— Pelo bem da verdade entre nossas opiniões - o rosto dela passeou tenua e lentamente da esquerda a direita enquanto falava. - Sou uma pessoa muuuuito séria quanto à realidade dos fatos.
Níctimo observou por um momento.
— Se é uma averiguação que exige, posso fazer um esforço.
O sorriso dela era como se propunha sua atitude e chifres. Malicioso.
— Que príncipe diligente. Talvez eu o dê uma recompensa - ela, melodiosa. Abrindo o olhar para o lycan que se aproximou e ajoelhou a sua frente.
.
.
Passou o dia, depois da saída de Níctimo, lendo pergaminhos, livros e anotações em folhas avulsas.
Também olhou sacada a fora. Não era completamente diferente de Sangue Branco ou Semiramis.
E encheu garrafas vazias com vinhos doces e amargos, fracos e fortes. Escreveu poemas e curtas crônicas sobre a história que lera da família real de Lycosura.
Níctimo apareceu duas vezes com comida. Na segunda quase o impediu de sair ao pô-lo a saciar sua luxúria.
Metade da tarde passara quando decidiu ignorar o pedido para permanecer no aposento. Abriu a porta dupla e pisou no corredor. Largo, de teto alto, com piso branco de mármore. Os passos ecoaram sobre ele.
Vestida em uma túnica lilás, um pano branco atado na mão como um símbolo de paz. Estava em um lugar estranho, comer e matar pessoas seria um péssimo jeito de começar sua estadia. E já o fizera a três dos quatro sujeitos que receberam sua chegada.
''Não que eu me importe... na verdade, ficaria grata por comer algo decente''.
Andou por entre paredes simples, por salões azuis decorados com a temática de lobos. Passou por guardas e servos rápida demais para ser notada.
Caminhou por jardins e viu pessoas cujas características batiam com as informações em um livreto dado por Níctimo.
''Ah, fiz um conto sobre aquelas bonecas realmente falarem e começarem a matar as rainhas e príncipes um a um'' quando reconheceu a menina incendiária.
Parou em uma varanda. Não a do quarto do qual não devia sair. Uma atada a um corredor, com formato oval e de frente a um longo campo.
Sentada no curto muro separando o piso da varanda de uma queda ao chão quinze metros abaixo, admitiu.
''É... me perdi''.
Respirou fundo. Deitou-se de lado e observou o crepúsculo do anoitecer. Se perguntou que tipo de desculpa deveria dar. Talvez levar a cabeça de algum opositor ou uma fatia de bolo da cozinha.
''Mas então eu teria que achar a cozinha ou reconhecer um desafeto do príncipe nesse palácio absurdamente grande''.
Fechou os olhos. ''Deveria ter trazido aquele manuscrito descrevendo o lugar''.
O pisar tênue, quase inaudível, ergueu-lhe as pálpebras.
Virou-se, sem pressa, e fitou a pequena figura passando do outro lado do batente.
— Ei, criança - chamou. A garota continuou andando. - Menina, ei... hum... tenho doce!
Parou. Dois passos de sair diante da abertura para varanda. A face pendeu rumo a oni. Então o olho abriu-se ao máximo. A mão caiu sobre a empunhadura da espada. Pernas afastaram um tanto, dobraram um pouco.
— Quem, e o quê, é você!? - os braços enrijecidos. O corpo voltado a figura no parapeito. - Quais suas intenções aqui?
''O'' a boca da oni tornou-se por um momento. ''Esqueci que não devo ser uma visão comum por esse canto do mundo... seja isso onde for''. Então sorriu.
— Eu sou... Yamata - decidiu. Mesmo tendo repassado Circe a Níctimo. Mão com o pano branco atado caindo sobre o peito. - Sou uma oni. E não tenho nenhum particular interesse aqui. Eu juro, sou uma criaturazinha inofensiva que traz alegria e fortuna a onde quer que passe. Agora me arranje alguns sacrifícios humanos, tenho fome.
Riu.
A postura da garota manteve-se.
— Era uma piada... a menos que tenha um fácil em mãos com você.
— Saia, agora - ela respondeu. Firme e com gelidez.
Yamata fechou os olhos. Deixou as costas tocaram a pedra da amurada.
— Não seja assim, garota. Os pais não ensinam bons modos aqui?
— Saia - ela. Um passo à frente, a outra mão descida ao punho da outra arma.
A oni ergueu a pálpebra esquerda e a fitou. Silenciosamente. Dos fios escuros na nuca a unha do mindinho.
Delineou com olhar os traços finos do rosto. O dourado e verde e vermelho marcando a face de cor marrom. No contorno de símbolos que, na terra de onde a oni viera, eram associados aos dragões.
Reconheceu o olho de Hórus, a serpente alada que por vezes era confundida com o sol no céu antigamente.
— Não é uma criança e eu não sou tão paciente - falou, uma neutralidade ameaçadora no tom. Os pelos da humana se arrepiaram, o pomo de Adão subiu e desceu, os pés se afastaram mais meio milímetro. Então a criatura voltou a amistosidade. - Preciso de um guia, está disponível?
— Não, vá embora.
Yamata passou o resto da tarde seguindo Azineth.
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