Epílogo
Aguente firme
Estamos tão forte
Agora vamos lutar como um
Para sempre juntos
-Siren (Kat Krazy)
Ana Clara não conteve um gritinho de espanto. Os olhos da filha tinham a íris vermelha como sangue, antinaturais, assustadoras.
A menina direcionou o olhar diretamente ao padre, ignorando a presença do casal. Já não era ela. Sua voz não passava de um som gutural e arrepiante, beirando o cavernoso.
-Ele veio, finalmente - declarou. -Estava esperando por você, ratinho.
Em seguida, passou as mãos pelo rosto, arranhando-o e causando cortes razoavelmente fundos, de onde o sangue começou a escorrer. Suas unhas estavam enormes, mas ela se recusava a cortar. Em seus braços havia mais arranhões, Moacir observou, provavelmente de outros ataques como aquele.
Sakura riu, causando um arrepio na espinha de Bernardo, que apertou forte a mão da esposa. Lágrimas ameaçavam escorrer de seus olhos, mas ele prometera a si mesmo que seria forte, não fraquejaria agora.
O padre manteve-se calmo e sério, nada parecia afetá-lo. Tomou a Bíblia nas mãos novamente e abriu-a em Salmos 53. Leu calmamente, ignorando os protestos fervorosos do demônio que se apossava do corpo da criança:
-"Em Deus louvarei a sua palavra, em Deus pus a minha confiança; não temerei o que me possa fazer a carne."
Aos berros, Sakura debatia-se e esperneava. O demônio gritava, com aquela maldita voz monstruosa e aterradora, que não deixaria aquela alma em paz, enquanto Moacir apenas continuava lendo.
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Lilith mantinha seu sorriso de escárnio, deixando o rosto pálido ainda mais monstruoso e assustador. Continuava em frente a Sakura, derrubando todo o seu mundo - com o qual ela estava tão intimamente conectada - de uma vez.
Ela segurou o choro, tentando inutilmente não soluçar e olhou para ele. A hora chegara. Mesmo que ela não se sentisse preparada, seria agora ou nunca. Todos ali sentiam isso.
Antes que pensasse em se mover o demônio lhe atacou, rodeando-a e movendo-se ao seu redor. Girando, girando, girando. Ele ria, e cada dente afiado era uma afronta à garota.
-Oh, então você é a garotinha que pensa que pode me derrotar, uh? - zombou, e sua voz monstruosa arrancou-lhe um arrepio. -Não queridinha, não é assim que a banda toca.
Essa foi a deixa para que as chamas começassem. Um círculo perfeito se formou ao redor dela, impedindo-a de escapar. Labaredas dançantes, crepitando em volta da menina.
"Não!Não não não!" , era tudo que sua mente gritava. "Agora não, por favor."
Ele controlava-as, fazendo com que se aproximassem mais dela a cada instante, numa tortura lenta e penosa. Cada vez mais perto, mais quente, quase lhe lambendo a bochecha, quase queimando-a.
Sua mente dançou. A arma; o barulho; o cheiro e o fogo, intenso e vermelho. Cada vez mais perto, quente, sufocante. A fumaça escura, as pessoas levando-a para longe do pai...Tudo voltou de uma vez. O choro retornou, mais depressa e desesperado.
Suas lembranças começavam a sufocá-la, agora estampando as paredes do lugar. As cenas horríveis da pior época da sua curta vida passavam como um filme ao seu redor, para quem quisesse ver.
Lilith ria. Era ele. Ele quem estava controlando-a, fazendo-a relembrar aquilo tudo. Era um demônio afinal, ele podia. Ia massacrá-la com a própria mente.
Gael observava, sem reação. Ele sabia como era aquilo, já havia passado pelo mesmo.
Fora por isso que a ensinara a lutar com os poderes que tinha ali dentro, porque quando se tratava de Lilith, a batalha era muito mais mental que física.
O suor minava das mãos do moço, que tinha o peito cada vez mais apertado. Ele precisava fazer algo, precisava salvá-la.
Sakura levou as mãos ao rosto, desesperada. Por que pensara que poderia combatê-lo? Ele sequer trocaria um tapa com ela, era fraca demais.
Suas chances haviam acabado. Ficaria presa ali para sempre. Nunca mais veria Bernardo ou Ana Clara, que provavelmente seriam machucados pelo demônio. Era o seu fim.
Eis que ouviu-se um urro no que parecia ser muito distante. Um grito de determinação e fúria aproximando-se. A pequena tirou as mãos do rosto e espiou. Gael corria na direção do mostro.
Como um cavaleiro que resgata a sua princesa, ele vinha ao seu socorro. Ele a preparara, não a deixaria perder tão facilmente. Precisava daquilo tanto quanto ela, queria sair dali também. Agora ela se lembrava o porquê de ter acreditado em si mesma: Porque ele acreditara primeiro.
Gael pulou nas costas da criatura - tão alta e comprida - , chutando-lhe onde Sakura achou que fossem as costelas e gritando. Obviamente aquilo não feriu o monstro, mas o distraiu. Por alguns segundos, ela viu tudo ao seu redor voltar ao normal, assistiu às chamas deixarem-na brevemente, enquanto Lilith arremessava Gael no outro canto do lugar. Foi o suficiente para que ela se recuperasse.
Quando o corpo do rapaz caiu inerte, ela levantou-se e mentalizou que os galhos mortos da grande árvore haviam se transformado em poderosas algemas, agarrando Lilith pelos pulsos e calcanhares.
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Moacir se aproximou cautelosamente da menina, desviando de socos, cuspidelas e chutes, e pediu que os pais segurassem seus braços.
Ele colocou as mãos pairando logo acima de sua cabeça, fechou os olhos e recitou:
-"O que vendo todo o povo, caíram sobre seus rostos e disseram: Só o Senhor é Deus! Só o Senhor é Deus!"
A criança esperneava freneticamente, emitindo sons estranhos. Bernardo e Clara precisavam fazer cada vez mais força para prender-lhe os braços. Como se tivesse convulsões, debatia-se e gritava, balançando a cabeça de um lado para o outro. Ela não se parecia consigo mesma em nada, seu rosto assumira um semblante totalmente diferente, estava irreconhecível.
O padre fez o sinal da cruz sobre seu rosto e iniciou a oração do pai nosso, o que a deixou furiosa.
Soltou um grito aterrador - com a voz monstruosa - , que reverberou em cada canto do cômodo e fez as janelas trincarem.
Todos os presentes deram um salto e arrepiaram-se, encarando o vidro por um instante.
O medo invadiu o semblante do casal e Ana Clara sentiu o peito ser tomado de dor. Manteve o olhar fixo nas janelas quebradas, sem piscar.
-Eu vou matar cada um de vocês, vermes da Terra. - Lilith proferiu, enquanto Moacir continuava a falar.
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A criatura rosnou, debatendo-se. A árvore era forte, mas não ao ponto de detê-la.
Quando Lilith finalmente se soltou, com um puxão final nas algemas que envolviam seus pulsos, Sakura fez uma grande pedra do chão aumentar de tamanho, levantando-se como uma plataforma.
No topo estava ela, subindo cada vez mais. Ficou do tamanho do monstro, depois um pouco maior...E finalmente a fez parar, cerca de três metros do chão.
Um sorriso de satisfação estampava seu rosto. Ela estava conseguindo, estava mostrando sua força. Aquela sim era ela: A Sakura que luta, que dá tudo de si, e não a criança amedrontada que mostrara-se antes.
Lilith chegou mais perto, usando os tentáculos para erguer-se e ficar cara a cara com a garota. Então, deu uma baforada em seu rosto. O ar quente a fez dar um passo para trás.
-Renda-se - disse ele. - É sua última chance, criancinha insuportável.
Criancinha insuportável. Era o que aquela criatura achava dela. Sentindo a raiva se infiltrar em suas entranhas, olhou para Gael - desejando que estivesse apenas desmaiado - e então para Lilith novamente. Ele a estava subestimando.
-Não deveria acreditar no que as pessoas parecem ser. Deveria conhecê-las.
Dito isso, mentalizou com toda a sua força uma faca. Prateada, afiada e brilhante. Pequena, porém letal. Sentiu o cabo dentro de sua mão fechada, e então sorriu para o monstro.
Sakura avançou na pequena plataforma de pedra e brandiu a faca para frente, mas ele desviou. Antes que batesse contra o chão, ela fez os galhos da árvore formarem uma espécie de rede, entrelaçados como gigantes tranças. Aterrissou ali em segurança e desceu ao chão.
Lilith lançou um dos tentáculos negros em sua direção. Fumaça preta rodeava-o enquanto aquela coisa voava de encontro ao peito de Sakura. Foi por muito pouco que a menina conseguiu escapar.
Com a respiração acelerada e a mente bagunçada, ela mentalizou que do tronco ao seu lado saiam degraus, que apareceram instantaneamente.
O demônio continuava a lançar seus tentáculos, um de cada vez, enquanto ela subia pela árvore, desviando do melhor modo que conseguia.
"Esquerda, direita, esquerda, abaixa, direita, esquerda, pula." Era como um videogame, uma sequencia de movimentos que desencadeavam um golpe especial.
O último degrau chegava e a criatura começava a não alcançá-la mais. Por um momento ela quis apenas ficar ali, escondida para sempre, agarrada aos joelhos e gritando pelos pais. Esquecer aquilo tudo, acordar do pesadelo...Qualquer coisa, menos voltar a tentar ferir o monstro.
O medo marcava presença em todos os seus pensamentos. Não sabia o que fazer. As trevas voltavam a envolver tudo ao seu redor e ela mal conseguia ver onde pisava enquanto subia mais e mais na lateral da árvore.
Apertou mais a mão em volta da faca. Lembrou a si mesma outra vez do motivo de fazer aquilo. Desejou que Gael estivesse ao seu lado, em vez de lá embaixo desacordado.
Uma luz acendeu-se em sua mente como quando se risca um fósforo na escuridão. A ideia iluminou as trevas pelas quais havia sido cercada; sabia exatamente o que fazer.
Correu as últimas cinco soleiras com o coração saltando do peito. Os pés pareciam querer embolar-se, como se esquecesse de como andar. O vento que batia em seu rosto e balançava seu vestido preto rendeu-lhe um frio na barriga quando saltou do último degrau, quase em queda livre.
Ali debaixo Lilith a olhou, boquiaberto e sem reação. Aquela fração de segundo mudou tudo.
Ela mentalizou que era uma bailarina. Rodopiou numa pirueta perfeita – uma que causaria inveja até em Clara - , voltando a faca para baixo.
"Por Clara, Bernardo e Gael.", gritou mentalmente enquanto caía, fincando a faca nas costas da besta.
Lilith urrou e ela continuou caindo, com a faca cravada em seu corpo, fazendo um enorme corte de cima a baixo.
Aquela fumaça tenebrosa irradiou dali, espalhando-se pelo lugar enquanto a voz cavernosa do monstro reverberava em cada canto, num berro de dor.
Ela intensificou-se, cada vez mais escura, e já não se via mais o corpo da criatura. Quando Sakura chegou ao chão e a faca deixou o corpo da fera, tudo sumiu e o silêncio se instalou. Não havia mais demônio, ou sequer rastro de um.
A grande árvore voltou ao normal aos poucos, e os vermes nojentos da comida se foram.
Sakura sorriu. Havia conseguido. Ela derrotara Lilith e poderia ir para casa. Naquele momento, seu coração se acalmou, seu corpo relaxou e nada seria o bastante para descrever sua alegria.
Então um pensamento cortou sua mente: Gael. Precisava vê-lo e dar as boas notícias. Ele ficaria tão feliz.
Avistou-o deitado no chão. Correu em sua direção, com seu sorriso esvaindo-se aos poucos.
Ao ajoelhar-se ao lado do amigo, seu rosto já era uma careta de horror. Ela não podia acreditar em seus olhos. Aquela cena era amedrontadora demais para ser verdadeira.
O pescoço de Gael estava torcido num ângulo estranho. O sangue formava uma poça funda ao redor de sua cabeça e seu peito não subia nem descia.
Um arrepio percorreu sua espinha e a primeira lágrima rolou pelo seu rosto sem que ela se importasse em limpar. Afagou os cabelos do homem estirado no chão, sem vida.
A visão embaçada pelas lágrimas a irritava. Ela queria olhar para os seus olhos azuis, se despedir dele, gritar que aquilo era injusto e que ele deveria ser livre agora.
O nó que havia se formado em sua garganta não permitiu nada disso, então ela apenas encostou-se nas pernas dele - longe de todo aquele sangue – e chorou até adormecer.
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-Sakura? Sakura! – A voz de Clara soava muito distante.
A pequena abriu os olhos miudinhos. Sua visão estava embaçada, mas ela podia reconhecer os rostos dos pais. Cada parte dela doía, como se seu corpo estivesse coberto por agulhas.
Seu quarto não cheirava bem e havia um homem desconhecido guardando um crucifixo numa bonita mala de couro.
Mesmo que as coisas estivessem um bocado diferentes ela sorriu por estar de volta. Nunca ficara tão feliz na vida.
Sem dizer uma palavra sequer, ela ignorou toda a dor e abraçou Clara e Bernardo, apertando-os contra si como se pudesse prendê-los ao próprio corpo.
-São vocês! São vocês!
Clara chorou de alegria e alívio, apertando a filha sem acreditar que sua menininha voltara. Era realmente ela, depois de tanto tempo.
Bernardo deu-lhe um beijo na testa, girou-a no ar e sorriu para a esposa, negando-se a derramar as lágrimas que ameaçavam escorrer de seus olhos.
Seria o fim do medo dos Machado, das noites mal dormidas, de trancar a porta do quarto depois das oito da noite, de temer pelos animais da vizinhança e pela própria vida.
Tudo parecia perfeito, mas Sakura sentia falta de algo. Ela gostaria de dar um desses abraços em Gael, queria apresenta-lo para os pais e dizer que ele a havia ajudado, que era seu amigo e que sem ele não teria conseguido. Apenas queria que estivesse ali, que estivesse vivo.
E ela poderia estar maluca ou imaginando coisas, mas tinha certeza de que ouviu a sua voz naquela noite. Naquele exato momento em que todos choravam e se abraçavam, ela ouviu-o proferir uma única palavra em seu ouvido:
-Obrigado.
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E...Fim. 😍
O que vocês acharam, pãozinhos de mel?
Esse conto me marcou muito, gente. Vou sentir saudades demais.
Porém, Sakura e Gael sempre estarão aí, né non?
Mil perdões pela morte desse personagem incrível, mas ela já estava programada antes mesmo de eu conhecê-lo. 😳
🌟Deixem os comentários sobre a parte favorita de vocês! Nos vemos por aí.🌟
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