02 - Olhares tortos
A aula da professora Claire Armont encerrou-se próximo das dez da manhã. Os alunos foram aos poucos sendo liberados. Da sala de Nicholas, apenas Austin, Cole, Eric e Tyler haviam sido selecionados. Os primeiros a irem para o vestiário foram cochichando entre si. Austin saiu e Nicholas foi logo atrás, sem apressar os passos.
O vestiário ficava do outro lado do campo. Era de concreto com pinturas em grafite e portas de vidro temperado. Nicholas passou pelo segurança e entrou no vestiário, seguindo um corredor direito. Ao passar pela limiar, os rapazes pararam de falar e ele caminhou até o armário reservado a sua pessoa. Eric rapidamente vestiu a camisa de treino e começou a piada.
— É verdade que você é?
Nicholas baixou um pouco a cabeça antes de virar o corpo e encarar o moreno lhe fitando.
— Sou o quê?
Eric ergueu as mãos em rendição e brincou.
— Calma... Não seja raivosa, leoa. Perguntei apenas se é bicha?
— Bicha? — Nicholas rebateu, educadamente. — Acho que o termo certo seria bissexual?
— Oh, sim, bissexual — gesticulou femininamente fazendo uma parte dos rapazes caírem na gargalhada. — Então você come mulher e vira a raba e fica de quatro por macho? — Erik Mecena provocou.
Austin permaneceu quieto, apenas ouvindo a conversa que de amistosa não tinha nada.
— Sim, é isso aí. Eu fico com homem e mulher, mas não é da sua conta.
— Tem razão — Erik torceu o nariz. — É da conta de todo mundo aqui. Não quero nem um veadinho olhando para o que não lhe interessa. Acho melhor dar o fora do vestiário e procurar outro lugar para se vestir, Andrich.
— Tem a sexualidade frágil, querido? — Ele perguntou. — Para ser bem sincero, nem um de vocês faz o meu tipo. Prefiro um homem mais velho, com músculos e um pouco mais de neurônios. E neurônios é algo que lhe falta, Erik. Agora sai da minha frente, ou vai se arrepender de ter cruzado o meu caminho.
Erik era insuportável demais para receber ordens e antes mesmo de Nicholas concluir sua frase, empurrou o garoto contra o armário, originando um burburinho entre os presentes. E forçando Nicholas contra o móvel, avisou:
— Eu costumo quebrar caminhos, Nicholas. Amo torcer as pernas das pessoas apenas para vê-las no chão, se contorcendo de dor. Isso me faz feliz, sabe? Então sugiro tomar bastante cuidado comigo, ou ficará para sempre preso a uma cadeira de rodas... E, bom, não parece nada confortável.
E o largou, buscando a proteção das canelas e deixando o vestiário. Os meninos encaravam a cena à distância, pois não interessavam absolutamente em nada numa rivalidade que, provavelmente, os levaria a ficar de fora da competição e muitos ali não estavam dispostos a perder a vaga. Nicholas ainda olhou na direção de Austin à procura de sua proteção, porém tudo que encontrou foi um rapaz determinado a manter o máximo possível de distância. Onde estava toda a sua liderança? Nicholas pensou.
Alex chegou no vestiário minutos depois, quando apenas o amigo encontrava-se pensativo sentado numa cadeira e com as caneleiras nas mãos.
— Está tudo bem com você? — Alec quis saber.
Nicholas suspirou fundo e assentiu.
— É, eu estou. Apesar de tudo, sou forte.
— Isso é bom, não é?
— Depende, Alec.
— Depende do quê?
— Sei lá, às vezes ser forte nem é tão fácil quanto se fingir de fraco.
Alec repousou a mochila sobre uma mesinha e sentou ao lado de Nicholas.
— O Austin te magoou?
— Oh, não. Fica tranquilo em relação a isso. Foi só o Erik.
— O Erik? O que ele fez?
— Nada, só mandou eu não trocar de roupa na frente de vocês e manter distância.
— O Erik disse isso pra você, Nicholas?
— Ele é inseguro, não tenho culpa, mas isso acaba aqui, tá bom? Acho que ele tem razão, entende?
— Não... Eu não entendo, aliás, eu não entendo os motivos pelos quais Erik agiu assim com você? Ele... Sempre foi gente boa... Ao menos, finge ser.
Nicholas ergueu-se. Estava visivelmente abatido. Olheiras podiam ser vistas, assim como uma leve palidez nos lábios.
— Bom, mesmo assim, da próxima vez vou me trocar no banheiro masculino. Isso vai impossibilitar não perder o controle e esmurrar a cara dele e como consequência, perder à vaga na equipe — Alec sorriu e levantou. Colocou uma mão no ombro esquerdo do amigo e apertou levemente. — Obrigado por se preocupar, porém não quero que seus amigos pensem mal de você só por andar e falar comigo.
— Que falem. Que inventem. A minha relação com você não vai mudar só porque tu é bissexual, Nicholas. Pelo contrário, me anima saber disso. Eu gosto demais da sua pessoa e ninguém vai me fazer pensar diferente. Agora, se puder, abra um sorriso!
Nicholas se esforçou e ele veio, tímido, mas veio.
— É isso aí!
Alec baixou a calça moletom, tirando-a por completo, assim como sua camisa e vestiu o fardamento para treinar. A roupa consistia em uma peça de calção poliéster preto, com uma camisa de mangas curtas nas cores alaranjadas e ornada levemente com o brasão da instituição. Já vestidos, eles saíram juntos do vestiário e caminharam em direção a quadra poliesportiva, onde seriam os treinos básicos. Elliot já estava comandando os primeiros atletas, e ao avistar os dois, apitou para que todos se aproximassem.
— Façam um círculo, agora!
E rapidamente um círculo se formou. Não tão bem estruturado quanto o professor desejava, mas servia como base para ficar no meio e receber toda atenção. Nicholas ficou entre Alec e Cody.
— Bem, meus caros atletas — começou Elliot, andando em círculos —, Há um ano participamos de um campeonato e o grupo frágil caiu antes do previsto, sem mesmo avançarmos para as quartas de final. Sim, parecemos os canarinhos em copa, com a única diferença de que não temos cinco títulos mundiais e uma camisa de peso, fora isso, a semelhança entre cair nas oitavas e passar vergonha na fase seguinte é peculiar. Neste ano, no entanto, temos a difícil tarefa de mudar as coisas a nosso favor se cada um aqui se esforçar. Se tiverem êxito e garra, nós estaremos na grande final.
Diego levantou a mão e o professor passou o direito à fala.
— O senhor vai aceitar o Nicholas no time depois de toda a repercussão negativa sobre ele?
— E por que não aceitaria, garoto?
— Sei lá... Talvez ele não esteja preparado para o sufoco. Conciliar o profissional com o particular
— E ninguém está.... Nem mesmo o senhor, Diego. Aqui não segrego atletas. Uma condição ou orientação sexual não me faz optar pela soberba, meus caros. Nicholas irá participar dos treinos e vocês irão respeitar a minha decisão — anunciou Elliot, em voz alta — E se alguém... Pode ser quem for, o desmerecer... Cairá fora do meu elenco, sem chances de perdão.
Erik ergueu o queixo e cruzou os braços.
— Posso dar a minha humilde opinião, professor?
— Não será necessário, meu jovem. Foco, beleza? No fim de semana haverá o primeiro teste, se cooperarem, estaremos na fase de grupos do Torneio... Se falharem, serão esquecidos no tempo. Agora, cinquenta flexões de braços e abdominais. Sem choros!
🥇🏆🥇
O treino acabou próximo do meio-dia. Todos estavam exaustos, mas Nicholas parecia bem mais fadigado. Ele sentou longe dos demais, logo na primeira fileira da arquibancada, do lado direito. Ao observar o amigo sozinho tomando o isotônico, Alec suspirou fundo e foi até Austin.
— Podemos conversar?
Austin hesitou de primeiro, mas cedeu em seguida.
— O que deseja, Alec?
— Um pouco mais de carinho e humildade de sua parte já seria um avanço.
— É lição de moral, agora? — Exclamou o rapaz, encarando o amigo. — Ele é diferente de nós. Você não percebeu?
— Ele é igual a gente, cara? Ele come, respira, dorme, sente dor, felicidade, gasta, economiza... E sorrir... Só não sei até quando. Eu tenho traumas, tu sabe?
Austin arfou.
— Tudo bem — disse ele, repousando as mãos na altura da cintura — Posso pegar leve, mas não mentir. E nem tomar raiva de outras pessoas.
— Você é um imbecil mesmo. Crescemos praticamente juntos, mas só agora percebi o quão insignificante tem se tornado — assegurou Alec. — Bem, acho que acabamos por aqui. Espero encontrar poucas vezes. E, que fique bem claro, Austin... Se aprontar com o Nicholas... Eu acabo com você... Sem dó... E sem piedade.
Alec sentiu uma enorme tristeza só por dizer aquelas palavras, mas não podia compactuar com os olhares tortos que o amigo vinha recebendo ultimamente. Devido a isso, caminhou para junto dele e ali ficaram até estarem a sós. O vento gritante batendo seus corpos e aquela cidade inteira de concreto ofuscando parte da vista.
— O que você disse a ele? — Nicholas perguntou, curioso.
Alec estava com os braços envolta dos joelhos e um olhar perdido no espaço. Conhecia Austin desde a infância e saber o que o melhor amigo se tornou era duro demais. Sofreu bastante na transição de Liam e não queria sofrer novamente. Por várias vezes encontrou o irmão caído quase sem vida no chão do quarto, tão pálido quanto Nicholas agora. Durante noites sofria com os choros que Liam engolia na tentativa de não cometer nenhuma loucura, mas pela manhã, sempre na hora do café, ele vislumbrava tristemente os hematomas deixados pela dor.
Alec olhava para Nicholas e só via um menino com tantos problemas para se resolver e ter mais um para atormentá-lo seria catastrófico a ponto fatal. Pensando nisso, foi que abriu mão da amizade tóxica de Austin e estava ali tentando medir os cálculos, soma e peso de algumas palavras.
— Disse apenas que... Eu não deixaria você sozinho neste momento e que ele deveria fazer o mesmo.
— E ele?
— Só ligou o modo foda-se e caiu fora.
A tristeza voltou a consumá-lo demasiadamente.
— Não quero que você se sacrifique por mim. Não quero que se afaste dos seus amigos, Alec.
Alec Clark esboçou um sorriso.
— Tudo o que eu preciso neste momento está bem aqui... Agora e comigo — talvez fosse uma das primeiras vezes que Alec vira tanta beleza em uma única pessoa. Admirou os ângulos do rosto de Nicholas e o quão belo ficava a cada dia. Consertou a garganta e levou sua atenção para outro canto. — E... Acho melhor voltarmos para o vestiário e tirar o cheiro de suor. Vamos?
— Tem razão. Ainda tenho consulta hoje.
Eram quase duas da tarde quando Nicholas chegou ao portão da mansão. Os ventos triunfaram levemente fazendo balançar as palmeiras esguias dos coqueirais que havia no entorno. Mas antes que percebesse o quão magnífico era aquele simples gesto da natureza, ouviu seu nome ser chamado e ao procurar o dono daquela voz rouca e solitária, achou um Liam Clark exuberante, trajando apenas um calção poliéster branco e uma camiseta regata da mesma cor. Os cabelos negros atrapalhados tornou-se o charme e as havaianas o objeto mais simbólico até então. Ele engoliu em seco. Uma. Duas. Três ou mais vezes, antes de processar tudo aquilo novamente. Liam se aproximou timidamente.
— Por favor, não hesite. — Disse o mais velho, calmamente — Precisamos conversar como adultos, Nicholas.
— Eu estou cansado, Liam. Pode ser outro dia?
— Não. Tem que ser agora, por favor. A tortura só aumenta. A ansiedade ultrapassa os desejos e a depressão eclode sob meus ossos. É terrível a sensação de ter e não o possuir. Somos namorados...
— Ficantes!
— Ficantes? Então somos a porra de ficantes? Nossa... Eu sou mesmo um idiota de acreditar que algo entre nós daria certo.
— Você me pressiona, cara. E eu não aguento. O melhor a se fazer agora é deixar as coisas como estão: você com sua vida cheia de pernoites e eu com a minha, com indecisão e segredos absurdos.
Liam abaixou a cabeça. Sorriu e ergueu o queixo.
— Está terminando comigo?
— Nós nunca tivemos nada. Só amizade.
— Ok. Pega a porra da sua amizade e enfia no escambel.
Liam dobrou o corpo e entrou na sua casa que ficava do outro lado da rua. Nicholas respirou fundo e passou pelo portão com um problema a menos para se resolver. No entanto, não queria que as coisas com Liam chegassem a tal ponto, sobretudo porque supria um sentimento pelo rapaz, mas a maré a qual chegara em suas praias foi alta demais. Viu-se afogando entre pensamentos como em outrora, cercado de incertezas e vaidade, o alinhamento imperfeito entre o ser o querer.
Tudo o que Nicholas não precisava naquele momento era gastar seus pensamentos e foi pensando nessa possibilidade que tomou uma decisão: desejava conhecer a sua mãe. Só estaria salvo do inferno se a visse. Porém, qual seria custo?
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