42. UMA DESPEDIDA DOLOROSA
Julia dormia profundamente, amparada pelos braços fortes de seu irmão.
Algumas horas antes, enquanto ela brincava com as kaemeras e as ninfas aquáticas no lago, Joshua teve uma longa conversa com Kelpie, e tão logo os outros componentes do Conselho Sagrado acordaram, Freesia convocou uma reunião na sala do trono.
Kelpie mostrou o livro de feitiços e contra-maldições que havia escrito com Eilean e o deu nas mãos da Tnker Zorl, explicando como a dríade real quebrou sua maldição, transformando-a novamente em uma náiade comum e dando a ela a responsabilidade de ser guardiã da pequena Julia até que seu corpo voltasse às águas onde foi formada.
Joshua ouviu atentamente a explicação de que seus pais não poderiam voltar para Grradhy até que ele fosse coroado e sua conexão com Freesia fosse selada. Só assim, com a garantia de um herdeiro num futuro próximo, Freesia poderia, como a nova Grande-Mãe, autorizar o retorno de sua sogra e a ligação de seu sogro com as terras mágicas.
Ficou surpreso ao constatar o poder de sua mãe e tudo que ela fez com Kelpie apenas para dar ao seu povo outra forma de defesa. E pensar que ele passou a vida toda achando que sua mãe era apenas uma simples professora de meia idade que criava seus filhos para se tornarem cidadãos de bem na sociedade londrina...
E a verdade era que ela os protegia de todo perigo sobrenatural enquanto se preparava para mostrar a eles a verdadeira natureza de sua família. Segundo Kelpie, mesmo que ele não tivesse voltado a Craobhan e conhecido Freesia, àquela altura, por causa da idade dele, Isla teria contado tudo sobre o mundo feérico. A diferença é que ele seria mais cético do que foi ao entrar no bosque pela primeira vez.
A reunião demorou cerca de duas horas, e embora se sentisse contente quando Freesia o tocava, seu coração estava pesado por causa do perigo que Julia corria devido ao poder desenfreado que cresceu nela nos últimos meses.
Não haveria treinamentos para o príncipe aquela noite, pois era uma caçada de lua nova e as caçadoras estariam ocupadas enquanto ficava para os guerreiros a função de proteger os territórios da tribo.
Joshua, por sua vez, tirou a noite de folga, pois desde que soube que sua irmã passaria anos hibernando e, portanto, ele não poderia vê-la, não quis mais se separar da menina. Ele mandou buscá-la no lago após a reunião e aproveitou cada momento com ela. Mostrou seus dons e ouviu a garota contar de quando a professora foi malvada e ela acabou, sem querer, controlando as árvores de todo o arredor da escola.
Os irmãos conversaram muito, contaram suas próprias histórias fantásticas, brincaram de pega-pega, esconde-esconde, e Freesia ficou extasiada quando sua pequena cunhada quis brincar de boneca com ela, apesar da menina só ter levado em sua sacola impermeável uma boneca muito usada e de cabelos endurecidos pelo tempo.
Os feéricos de Grradhy observavam sua futura rainha com um brilho de encanto nos olhos. Ela era como um sopro de ar puro que afastava a névoa de preocupação que a profecia sobre um grande mal havia deixado na mente do povo.
A pequena dríade representava esperança. Era mais um reforço de que o clã do carvalho real não havia sido exterminado. Que eles não eram apenas uma lenda. Eram a família original da realeza, descendentes de Marleg, a primeira Grande-Mãe da tribo, que protegeu o povo quando estava em grave perigo de extinção e garantiu que os feéricos daquela tribo pudessem viver em paz longe de humanos destruidores, estabelecendo, assim, uma forma de proteção que foi adotada por todas as tribos da Europa, Américas, Oceania, e algumas da África e Ásia.
A cada risada da herdeira real, o ânimo do povo se renovava. Eles estavam mais alegres, risonhos, e até os treinamentos em todo o território da tribo estavam mais proveitosos e divertidos.
Não foi grande surpresa para ninguém quando até as Amazonas e as Valquírias se aquietaram para observar a princesinha com seu irmão. Elas raramente ficavam próximas, uma rivalidade criada séculos atrás pelos ancestrais que viviam competindo entre si: Atenas e Áries, ou Ares, como queiram chamar, filhos de Zeus, um dos tocados originais que permitiu que seu novo poder mudasse o humano cheio de ideais que ele havia sido.
Mesmo assim, as enormes e letais ninfas da Floresta Amazônica sentaram-se quietamente na área de alimentação, quase ao lado das intimidadoras boréades aladas, apenas para apreciar a recém-chegada princesa da tribo europeia.
A bem da verdade, Julia era o legado de uma das poucas tocadas que não se infectou com o orgulho. Quando ainda eram humanos, os tocados eram tão puros de coração quanto aquela garota, por isso foram escolhidos para melhorar um mundo mergulhado em caos e perversidade, que estava a ponto de destruir toda a natureza, único meio de sustento que eles ainda tinham.
Os anjos escolheram pessoas de todo o planeta para juntos governarem o mundo com justiça, no entanto, o mesmo poder que os tornou diferentes dos humanos que se destruíam mutuamente, foi o que contaminou seus corações.
Da primeira e segunda geração de tocados, Zeus e seu irmão gêmeo Odin, Poseidon, Hades, Hera, Tyr, Vidar, Loki, Hel, Ares, Hécate, Éris e Gaia foram alguns dos que fizeram as maiores atrocidades por poder.
Então tinha Thor, Atenas, Apolo, Hermes, Deméter, Héstia, Afrodite e seus irmãos gêmeos Freya e Freyr, Dionísio, Nereu, Nix e tantos outros que fizeram coisas ruins, mas também ajudaram muitos humanos, por isso eram amados por alguns e desprezados por outros. Não odiados, apenas indiferentes.
Os únicos tocados que permaneceram puros como quando foram escolhidos pelos anjos foram aqueles que tinham maior ligação com a vida na natureza, a saber: Frigga, Pã, Ártemis, Éos e Reia, também conhecida como Cibele. Esses não buscaram a admiração dos humanos, apenas a coexistência harmoniosa com a natureza.
Quando o poder de Zeus se fortaleceu e ficou claro que ele não estava disposto a governar junto com os outros, Odin pegou sua esposa Frigga e partiu da Ásia para a atual Europa, seguido de uma parte dos tocados de segunda geração.
Assim como Zeus fez na Grécia, Odin se estabeleceu na Escandinávia, onde construiu seu império e estabeleceu seu poder, contando a própria versão da história onde seria o deus mais poderoso de Asgard.
Da Ásia e da Europa alguns tocados se separaram e partiram para outras partes do mundo, interferindo na história humana e deixando que os humanos criassem sobre eles histórias fantasiosas que explicassem seus poderes e sua origem.
Assim surgiram as mitologias mais diversas, e entre as mais famosas estavam a grega e a nórdica, que Joshua conheceu nos livros desde sua adolescência e agora estava conhecendo a verdadeira história de seu povo na prática, e descobrindo quantas mentiras foram contadas aos humanos e criadas por eles também.
A origem de todos os feéricos foi a mesma, no entanto, quando houve uma ruptura entre eles, cada um quis criar a própria versão da história, colocando-se como protagonista e fazendo as coisas mais absurdas por orgulho e ganância.
O resultado foi guerras entre si e com humanos, deturpação do propósito para o qual foram criados e uma segregação dentro da própria comunidade que fez surgirem monstros assassinos como a esfinge, as harpias e Caribde, que eram feéricos amaldiçoados. Surgiram também subespécies inferiores totalmente dominadas pela ganância e descaso com a natureza e a vida, como era o caso dos duendes e das fadas obscuras.
Olhar para a última herdeira de Cibele, cujo poder era dar a vida e governar a natureza, fazia com que todo o povo se lembrasse do propósito de sua própria existência. Os feéricos viviam no mundo para garantir que a natureza seguisse seu curso livremente, sem o risco de ser destruída pela humanidade.
Essa era a sua filosofia de vida. Tudo que vem da terra, volta para a terra. Tudo que surge da água, nela se dissipa ao fim. A vida é um ciclo constante, e o dever de cada feérico era garantir que esse ciclo sempre se completaria e recomeçaria, mantendo a ordem natural.
Julia olhava para todos com curiosidade. Eram como personagens de filmes de fantasia, exceto que ela se sentia parte daquele lugar. Havia chegado há apenas algumas horas, porém sentiu em seu coração que finalmente havia encontrado seu lugar no mundo.
A princesinha comemorou ao ver os poderes de seu irmão e o deixou boquiaberto ao provocar um pequeno terremoto no pátio central. Foi sem querer, é claro, mas o fato dela manifestar seus poderes sendo tão nova, não tendo passado pelo desabrochar, e ainda sem poder controlá-los, era preocupante para todos.
Um dos momentos mais fofos da noite foi quando Julia e Olívia se conheceram. A garota olhava embevecida para a jovem híbrida, e não resistiu a tocar os cabelos sedosos da loira. Olívia era realmente linda. Beleza e carisma eram características das antusas; delicadeza e simpatia eram próprias das fadas. Como híbrida, Olívia tinha tudo isso, além do seu sorriso natural e inteligência aguçada.
Ela conversou com Julia até que Korst se aproximou, assustando a princesinha por sua aparência intimidante. De fato, a cicatriz que descia pelo lado esquerdo de seu rosto até a cintura dava a ele um aspecto selvagem que não combinava com sua postura relaxada quando no meio de sua família.
O grandalhão se apresentou à garotinha, então deu um beijo na testa de sua irmã e pediu para conversar com Olívia. Desde a noite em que Korst declarou a todos seu vínculo com Olívia, o casal vinha conversando para se conhecer melhor.
Era um casal paradoxal, mas que se combinava de maneira curiosa: ela toda delicada e graciosa, sem muitas curvas, 1,75m de altura, pele alva, jeito educado e olhos azuis límpidos enquanto ele era todo musculoso, selvagem, de um jeito meio bruto, embora amável, medindo 1,98m, pele cor de caramelo e olhos violetas que estavam sempre turvos. Era como observar um urso e uma gazela se apaixonando.
Havia outros casais não acasalados se conhecendo. Sifor e Scott conversavam perto da cozinha enquanto comiam o que parecia ser um banquete de raízes e legumes. Scott ainda se mantinha a uma certa distância, mesmo que Sifor tenha se mostrado arrependido e pedido perdão a Joshua, Freesia e Olívia pelo que fez na noite em que Joshua desabrochou. Sifor ainda teria um longo caminho até conquistar o coração de Scott.
Violet passeava com Andory, que fazia um show com libélulas e joaninhas para ela, já que um de seus poderes era controlar insetos. Embora parecesse inofensivo, como fazer as borboletas dançarem com coreografia no ar ou lagartas desenharem corações em árvores, Andory também poderia fazer um enxame de vespas atacar incessantemente uma pessoa até que a dor fosse tão forte a ponto de causar choque e parada respiratória na vítima. Quando necessário, ele era realmente perigoso.
Naquela noite, Ronny não foi para o bosque porque sua esposa Brenda estava passando mal o dia todo. Logan e Scott foram escoltados por Sifor e outros três guerreiros, pois estava cada vez mais perigoso transitar fora dos limites da tribo. Parecia que as feras de Grradhy estavam se espalhando e caçando fora do controle natural delas.
Os amigos também ficaram rendidos pelo carisma de Julia, como era de se esperar. Até Orked agia como um anjo de candura com ela, embora vez ou outra lançasse provocações ao seu irmão de forma que a menina não entendesse, afinal, se teve algo que todo mundo percebeu, era que aqueles dois se amavam, e que a criança era uma ferrenha defensora do príncipe.
Depois do jantar, Julia foi ficando sonolenta e se aninhou no colo de seu irmão, que acariciou-lhe os cabelos até que a menina começou a ressonar baixinho, exausta da viagem longa até Grradhy e de toda a diversão que teve.
Joshua passou a noite toda com ela no colo. Não se incomodava de carregá-la assim, não sentia seu peso, pois seu novo corpo era dez vezes mais forte do que o corpo humano. Ele era resistente como um carvalho.
Por mais que Vctrya insistisse que ele poderia deixar sua irmã dormindo em uma das camas da sala de cura, Joshua se recusou a soltá-la. Ele ficou esperando o retorno de Freesia e das caçadoras, que saíram à meia-noite, quando a lua escureceu totalmente. Era sempre uma longa espera, mas agora ele tinha sua irmã para observar dormindo, e Kmry lhe fazia companhia.
Pela manhã, quando Julia acordou descansada e sem sentir nada por dormir no colo dele como um bebê, Joshua relutantemente a deixou aos cuidados de Kelpie, que havia dormido a noite toda. Quando Freesia chegou, ele esperou que ela comesse alguma coisa e ambos foram dormir.
E assim se passaram os dias durante a próxima semana. Joshua acordava às quatro da tarde, tomava um banho rápido e ia encontrar Julia e Freesia para comer, depois ficava com elas, assim como as amigas de Freesia e os amigos de Joshua, e também a família de Freesia, que fazia questão de dedicar um pouco de seu tempo para estar perto da futura rainha.
Julia desenvolveu um afeto especial por Nerysa, a Mstry da tribo e avó de Freesia. Ela adorava ficar ouvindo as histórias que a dríade contava. Korst também conquistou seu coraçãozinho e virou seu amigo, e ele sempre brincava com Julia junto com Joshua, Freesia e Olívia por pelo menos uma hora. Finalmente, Freesia sempre cantava para ela, e Julia já tinha até uma canção favorita.
Joshua ficava com sua irmã até a hora em que ela dormia, por volta das nove horas, mesmo horário em que Kelpie também se recolhia. Julia dormia na sala do trono, em um colchão pequeno e macio que Scott trouxe do vilarejo, feito por Dora Milne com quatro colchonetes empilhados, separados por largas camadas de algodão e encapados com um tecido costurado que mantinha o colchão improvisado todo junto.
Depois que a princesa dormia, o príncipe seguia sua rotina de treinamentos diversos, porém com um tempo um pouco reduzido para poder passar uma ou duas horas a sós com Freesia. Bem, quase a sós, pois apesar de Kmry agora ficar vigiando o sono de Julia e até dormindo com ela em forma de gata, Noktu raramente se afastava de Freesia, pronto para protegê-la de qualquer perigo, especialmente depois do ataque que sofreram dos blums na noite em que Violet foi aceita no bosque. Essa rotina só mudou quando Freesia foi para a caçada aos Blums no ápice da lua crescente.
Pela manhã, tão logo o sol despontava, Kelpie acordava com as outras ninfas aquáticas, pescava para ajudar a abastecer a cozinha e ia cavalgar nas montanhas. Quando Julia acordava, pouco antes das oito, Joshua se despedia dela com um apertado abraço e ia dormir, então Kelpie assumia a responsabilidade de cuidar dela o dia todo, até a hora em que Joshua assumia seu lugar para que a náiade pudesse socializar e treinar seus dons há muito adormecidos.
Os irmãos aproveitavam cada minuto de cada dia, pois Julia entendia que teria que ficar dormindo durante um tempo para se ligar à terra como seu irmão, porém ela não sabia que esse sono duraria anos, enquanto a angústia de Joshua crescia a cada dia por se aproximar o momento em que teria que se despedir dela para vê-la apenas dali a sete anos.
Nove dias se passaram, e Joshua novamente deixou todos os seus afazeres para ficar com sua irmã. Embalou-a no colo a noite toda e chorou silenciosamente quando a deixou aos cuidados de Kelpie pela manhã, sabendo que naquela noite teria que se despedir dela.
Aproveitou as últimas horas com ela ao entardecer do décimo dia, e quando ela sentiu sono, o Conselho Sagrado se reuniu no território dos Carvalhos Reais, bem como todos os amigos próximos e a família real vigente.
Cada caçadora, guerreiro e humano que ali estava, abraçou a menina e beijou-a na testa ou no rosto, e quando foi a vez de Joshua, ele desabou. Agarrou a pequena ninfa em um abraço de urso e chorou, chegando a soluçar.
Sem entender por que seu irmãozão agia assim, Julia tocou o rosto dele e falou:
— Tudo bem, maninho. Nos vemos em alguns dias, quando eu desabrochar.
Joshua chorou mais forte. Não tinha coragem de contar a verdade. Não queria que ela sofresse junto com ele. Ele beijou seu rosto e sorriu, embora o sorriso não alcançasse seus olhos.
— Vou sentir saudade, maninha. Eu te amo como as estrelas do céu.
— Eu também te amo — respondeu ela. — Do tamanho do mundo.
Dessa vez o sorriso dele foi verdadeiro. Com um último abraço, Joshua a deitou na terra.
Tnker Zorl murmurou um feitiço que cobriu o corpo da menina com uma névoa para que pudesse deixá-la nua sem que ninguém a visse, então Oldra, a Invta, deu a ela uma poção anestésica para que não sentisse dor quando o ritual começasse.
Freesia começou a cantar a canção que Julia mais gostava enquanto Zorl começava o ritual. Todos arfaram quando as raízes da árvore dela saíram da terra e se conectaram brutalmente às mãos, pés e coluna da garota, porém ela sentiu apenas um puxão estranho e fechou os olhos, adormecendo.
Joshua se abaixou e a beijou mais uma vez antes que as raízes a puxassem para dentro da terra, debaixo do carvalho que seria sua casa para sempre a partir daquele momento.
Olá! Sei que faz muito tempo que estou sumida. Comecei aa trabalhar como professora de ensino médio e isso tem tomado todo o meu tempo, por isso quase não posso escrever.
Este capítulo levou semanas para ficar pronto, de parágrafo em parágrafo, mas aí está. É um capítulo de transição. Sem a Julia em perigo, prepare seu coração para os desafios que o Joshua vai enfrentar.
Não sei quando vem o próximo, mas até lá, beijos no coração e... Tchau!
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro