39. REENCONTRO
Julia olhava maravilhada para tudo ao seu redor. Nunca tinha visto uma floresta tão linda, e o ar era tão puro... Não era silencioso ali como na cabana de Kelpie, mas ela não poderia se importar menos, pois o barulho era de água, pássaros, insetos, música suave cantada por algumas ninfas empoleiradas em enormes pedras na base de uma montanha... Até o som das conversas entre os feéricos era harmônico e não a incomodava como quando estava no mundo humano.
Ela segurava na mão de Kelpie, que era guiada por Hellikon e Nory. Ao seu lado estava Kmry, em forma de loba, maior do que sua própria altura. Julia acariciava os pelos do pescoço da kaemera, sentindo-se segura e feliz por ter uma protetora animal. Nunca teve animais de estimação.
Passaram em frente a uma cortina de heras onde estava um homem de longos cabelos azuis e asas cinzentas de borboleta, segurando uma lança. Quando ele percebeu que ela o encarava, se aproximou, fez uma reverência e abriu a mão na frente dela, que ficou encantada ao ver surgir uma flor feita de gelo. O guerreiro entregou a flor a ela com um sorriso e voltou para o seu lugar.
— Quem é ele? Meu irmão também tem asas agora?
Nory deu uma leve gargalhada e respondeu:
— Não, princesa. Feéricos da espécie das ninfas não possuem asas. Aquele é um guerreiro do povo seelie. Faz parte do clã das fadas do inverno, por isso ele pode criar e manipular água em todas as suas formas.
— Como chove muito durante o inverno, essas fadas redirecionam a água em excesso para que não prejudique as plantações e seja usada em outras atividades — explicou Hellikon.
— Em Londres chove quase todos os dias — Julia comentou. — E no inverno cai neve.
As duas ninfas pararam de andar e encararam a menina.
— Neve? — Nory arregalou os olhos. — Eu achei que neve era coisa de contos para os brotinhos dormirem.
— O quê? Fora daqui, histórias para fazer crianças dormirem são contos de fada. Aqui são contos sobre neve? — Julia riu. — Que engraçado.
Sorrindo, Kelpie explicou:
— Em todos os territórios mágicos, o clima é o mesmo da Floresta Amazônica, alteza. Feéricos que nunca puseram os pés no mundo humano não sabem como é a neve. Diferente de você, que tem sangue humano, nós não sentimos frio, e o calor só aparece em caçadoras e guerreiros que treinam muito ou durante as caçadas. Ninfas aquáticas e fadas não suam, nem se fizerem atividades intensas. Nós percebemos a diferença de temperatura na comida e na água, mas isso não afeta a nossa temperatura corporal. Eu sempre serei fria, e tu sempre serás quente ao toque.
A menina assentiu, pensativa.
— Então o Josh não sente mais frio?
— Não — respondeu Hellikon. — E você também não sentirá quando passar pelo Desabrochar.
— O que é isso?
— Sua mãe não explicou, princesa?
— Ela disse que eu vou ser ligada à minha árvore e dormir, e quando acordar, eu serei como as outras ninfas, com poderes mais fortes do que eu tenho agora.
Hellikon e Nory olharam para Kelpie, confusas, e Hellikon indagou:
— Você tem poderes agora? Antes de passar pela hibernação?
— Sim. Todas as ninfas têm poderes, não é?
— Mas... — Nory se calou ante o olhar que Kelpie lhe lançou.
Ela iria dizer que não se desenvolvem poderes antes de passar pelo Desabrochar, pois é o tempo que o brotinho fica hibernando na árvore-mãe, recebendo os nutrientes das raízes e da terra, que o faz receber seus dons de ninfa.
O grupo chegou a uma enorme tenda coberta por folhas e com cortinas de hera, onde se viam várias fadas preparando poções, emplastos frescos e curativos. Algumas ninfas arrumavam macas rústicas, como se esperassem uma grande quantidade de feridos aquele dia.
Quando Kelpie ia perguntar, Hellikon fez um comentário sobre a quantidade de feridos que chegaram da caçada aos Cargs na lua minguante, e que provavelmente haveria muito mais na caçada aos fnekrs na lua nova.
É claro, Kelpie ficou tão exausta com o ritual para quebrar sua maldição que nem se deu conta de que dia era aquele. A noite anterior foi a transição da lua minguante para a lua nova, e aquela noite seria o ápice da lua nova, momento da caçada mais importante da tribo.
Em um canto, a Invta ensinava sua nova aprendiz, a fada mestiça que observava tudo com muita atenção.
— Com licença, senhora Oldra — Nory se adiantou e chamou a oréade. — Grradhy recebeu de volta duas de suas filhas hoje, e elas solicitaram ver a senhora e a Tnker Zorl.
A ninfa de cabelos brancos direcionou sua atenção para a náiade mais velha, percebendo que era muito antiga, talvez mais do que sua aparência denotava. A menina que segurava sua mão tinha brilhantes cachos escuros, pele clara como leite e olhos marrons como nozes.
Mas não foi a beleza singela da pequena dríade que lhe chamou a atenção, e sim a energia sem precedentes que emanava de seu corpo. Oldra nunca vira algo assim.
— Você a trouxe? — perguntou para Kelpie, que assentiu. — Há quanto tempo está assim?
— Pelo que sei, desde que sua mãe quebrou o selo do irmão dela, que também a protegia.
— Selo? — Oldra arregalou os olhos, fitando Julia e tentando comparar seu rosto, mas não se parecia com ninguém que conhecesse, exceto... — Por Gaia, ela é filha da princesa perdida com seu companheiro humano... Você está falando do selo feito no príncipe Darach, ele me contou sobre isso.
— Exatamente — respondeu Kelpie.
A oréade fez uma reverência para Julia e se abaixou para ficar na altura dela.
— Perdoe-me, alteza. Eu não sabia quem era você.
— Por que todos aqui me chamam de alteza ou princesa? Meu nome é Julia Lili Darach Wood.
— É um lindo nome. A forma como todos a chamam é por respeito, porque você é a herdeira do trono, e será nossa Grande Mãe quando crescer.
— Mas eu ainda não sou a Grande Mãe, então prefiro que me chamem pelo meu nome.
— Como quiser, Julia. Agora preciso examinar você, tudo bem? — A dríade balançou a cabeça e Oldra sorriu, tocando a testa e o tórax dela. — Você sente essa energia aí dentro?
— Sim. Ela fica se mexendo o tempo todo. Às vezes me machuca, e eu sinto alívio quando ela sai, mas isso machuca outras pessoas, então eu tento controlar.
— Você sente que está ficando mais forte?
— Sim. Mas quando ela cresce, eu sinto dor.
Oldra assentiu, preocupada, e olhou para Kelpie, que se dirigiu a Nory.
— Tu podes levar a princesa para comer alguma coisa na cozinha? Eu as encontro daqui a pouco.
A limneida segurou a mão de Julia e a conduziu para fora da tenda, seguida por Hellikon. Kmry se transformou em coruja para vigiar a menina de cima e Violet se afastou para deixar as anciãs conversarem a sós.
— Eu preciso que Zorl avalie a situação, mas imagino que você já saiba que essa energia é forte demais para o corpo humano dela. — Kelpie concordou com a cabeça e Oldra continuou: — A princesa Eileanach usou magia antiga que não conhecia bem, e a menina vai morrer se não for ligada à terra. Quanto maior fica a magia dela, mais debilitado fica o seu corpo. Eu preciso da autorização do príncipe Darach e da ajuda da Zorl para realizar o ritual de ligação o quanto antes. Quanto mais tempo ficar fora da terra, mais grave será a situação dela.
— Sim, eu sei. Quanto tempo tu achas que ela pode ficar acordada para aproveitar a companhia do irmão?
— Talvez duas semanas, mas eu não recomendo que fique mais de dez dias, ou a terra não terá tempo para estabilizar a energia antes do corpo se deteriorar. Ela vai ficar cansada e doente antes disso.
Kelpie suspirou.
— Eu explico para o príncipe a situação da princesinha. Quando a Tnker acordar, por favor, mande nos chamar. Além da pequena herdeira, eu tenho outros assuntos importantes a tratar com ela.
— É claro. Nós fomos direto para o assunto da menina e eu nem me apresentei. Me chamo Oldra.
— Eu sou a Kelpie.
Elas se cumprimentaram com um aceno de cabeça. Diferente dos humanos, e apesar de Joshua levar essa prática para dentro do bosque, não era comum feéricos se tocarem, a menos que fossem íntimos, então não existia aperto de mão.
— Desculpe-me, não quero ser invasiva nem indelicada, mas você foi embora há quanto tempo? Não parece ser mestiça e fala de uma forma diferente... Como meus avós falavam.
Kelpie sorriu tristemente. Oldra era a Invta, parte do Conselho Sagrado. Mesmo que não se lembrasse do seu nome, certamente saberia quem ela era apenas pela idade. Ela respirou fundo e se preparou para a rejeição, afinal, foi um monstro pior do que os monstros de Grradhy.
— Eu parti há mil e quinhentos anos, pelo lago.
Oldra arregalou os olhos. Tinha razão, ela não era só antiga. Era a ninfa viva há mais tempo, por quase cinco vidas feéricas. A náiade amaldiçoada pela única herdeira de Grradhy que foi apagada da história da tribo.
Para o povo, a história da égua devoradora de brotinhos era apenas uma lenda de terror. Só quem conhecia a verdadeira origem da lenda eram os membros do Conselho Sagrado. Oldra jamais esqueceria do dia em que foi consagrada a Invta da tribo, quando a lenda de sua juventude deixou de ser lenda e se tornou uma história real macabra e triste.
Sim, ela sabia agora quem era a náiade anciã à sua frente, mas sua experiência também lhe dizia que aquela ninfa merecia respeito e lamento, pois foi vítima de uma irmã feérica, não tinha culpa de ter se tornado um pesadelo vivo.
Se Kelpie estava ali como guardiã da herdeira real, era porque Eileanach fez o que nenhuma outra herdeira foi capaz de fazer. Ela quebrou a maldição.
— Vejo em seus olhos que sabe quem eu sou. Não se preocupe, meu único objetivo aqui é cuidar para que a Julia fique bem. Essa é minha missão até partir desse mundo.
Oldra balançou a cabeça negativamente.
— Você foi liberta por Eileanach, e mais do que isso, ela confia a vida de sua filha a você, então não há motivos para preocupação da minha parte. Seu passado foi apagado no momento em que foi recebida pelas Almas Ancestrais na entrada do lago. Esqueça quem você foi e se preocupe com quem será daqui para frente. Deixe a lenda continuar sendo lenda para assustar os jovens e lições usadas pelos mais velhos para ensinar. Ninguém precisa conhecer a culpa que você carrega. Seja bem-vinda de volta ao lar, filha de Poseidon.
Kelpie não conseguiu conter uma lágrima teimosa que rolou por seu rosto. Nunca esperou ter aceitação de alguém que conhecesse o seu passado e ainda a tratasse como igual. Aquilo era inesperadamente bom.
Oldra se aproximou, pedindo com os olhos permissão para tocá-la, e Kelpie permitiu, então elas se abraçaram.
— Agora vá encontrar sua protegida, guardiã. Quando Zorl acordar, você vai vê-la atravessar o centro com suas aprendizes, entre elas, a irmã da minha aprendiz. Elas são muito parecidas e Olívia é a única metade fada que a segue, você vai reconhecer pelos olhos azuis e os cabelos loiros. Zorl é uma melíade.
Kelpie assentiu. Melíades são ninfas dos freixos, e uma característica marcante dessa espécie é ter cabelos feitos de fileiras de folhas minúsculas ou cipós encaracolados.
Ela se despediu de Oldra por enquanto e foi encontrar Julia. A garota estava sentada no chão, com uma mesa viva na sua frente, cheia de frutas, pães, bolos, queijos e bebidas. Era um banquete que a princesa olhava de boca aberta, sem conseguir escolher o que comer primeiro.
Ao seu redor se ajuntavam grupos cada vez maiores de fadas, oréades, elfos e ninfas aquáticas, todos curiosos com a herdeira recém-chegada.
Julia era diferente de todas as ninfas da tribo, inclusive do clã das dríades reais. Foi por isso que Oldra a reconheceu. Ela relacionou a menina com seu pai, o companheiro banido de Eileanach. Os cachos escuros, os olhos castanhos e a atitude questionadora eram características de Hamish.
Hellikon, Nory e Kmry, agora em forma de gata, faziam companhia a ela, mas quando viu Kelpie se aproximar, Julia se levantou e correu para abraçar a náiade. Pegou-a pela mão e a fez se sentar para comer com elas.
A garota começou pelas frutas e as três ninfas adultas a acompanharam na refeição, conversando com ela e respondendo suas perguntas curiosas. Ela cheirou a perfumada flor de lótus que Nory tinha no lugar do cabelo, tocou nas algas macias do cabelo de Hellikon e questionou sobre as escamas e guelras que todas elas tinham.
Quando Julia já estava cheia de morangos, melancia, melão e bolos, ela suspirou e passou a mãozinha em sua barriga inchada, então passou a perguntar sobre os clãs e os poderes diferentes das ninfas aquáticas e terrestres.
O grupo ficou ali conversando até que Kmry se levantou do colo de Julia e miou alto, mudando para a forma de coruja e voando para o território dos carvalhos reais.
Não demorou muito a saberem o motivo da atitude da kaemera. Poucos minutos depois, ela apareceu em sua forma híbrida original, com um Joshua confuso e preocupado montado em suas costas.
Ele havia acabado de acordar, mal teve tempo de vestir sua roupa de guerreiro e foi quase arrastado por uma Kmry tão agitada que chegara a arranhar seu braço para apressá-lo.
Joshua coçou os olhos para ver se estava enxergando direito, então seu coração disparou ao ouvir a voz de sua irmã.
— Josh?
Ele saltou das costas de Kmry e correu para encontrar sua irmã no meio do caminho. O dríade tomou a garotinha nos braços e a girou no ar, ouvindo sua gargalhada, então a abraçou o mais apertado que podia sem machucá-la, e chorou.
Sentiu tanta saudade daquela pirralhinha intrometida! Nunca pensou que sentiria tanta falta da tagarelice e infinitas perguntas dela, ou de suas respostas impertinentes, ou mesmo de suas crises de choro, quando podia passar horas sentada no colo dele contando seus problemas de criança até dormir de tanto chorar.
— Julia! Como você... Cadê nossos pais? Como você chegou aqui?
— Eu vim pelo lago com a Nessie e a Kelpie, foi suuuuuuper legaaaal. Você tinha que ver, a Nessie é incrível e linda, e muito rápida! Papai e mamãe não puderam vir, me mandaram pra ficar com você depois que a mamãe curou a Kelpie e...
— Calma, calma, maninha. — Ele riu. Baixinha tagarela. — Respira. — De que Nessie você está falando? E quem é Kelpie?
— A Nessie, seu bobo! Que vive no lago Ness. Ela é uma kae... Ka... Kai-sei-lá-o-quê, sabe? Igual a Kimi.
— Quem é Kimi?
— Ela é a Kimi, bobão! — Julia apontou para a gata que estava na mesa comendo restos de bolo e frutas.
— O nome dela é Kmry.
— Foi o que eu disse, Kimi.
Ele bufou.
— Então o monstro do lago Ness é uma kaemera? Eu queria conhecer.
— Ela não é um monstro. É linda e é minha amiga, como a Kelpie.
— E quem é Kelpie? — ele repetiu.
Julia apontou para a náiade anciã ao lado de Nory e Hellikon.
— Saudações, príncipe Joshua. Eu sou Kelpie. Tua mãe deixou a Julia comigo até que ela pudesse ficar aos teus cuidados. Precisamos conversar sobre algumas coisas muito importantes. É de suma importância que tu ouças ainda esta noite.
Ele assentiu, pensado que ela falava como se estivesse vivendo no século errado. Ia colocar a irmã no chão e chamar a ninfa para conversar em particular quando Julia agarrou seu rosto com as duas mãozinhas e o fez encará-la.
— Você disse que quer conhecer a Nessie. Vamos agora.
— Mas Julia...
— Tudo bem, alteza, vá com ela — Kelpie interrompeu e garantiu: — Eu estarei esperando por ti aqui.
Quando ele foi para o lago carregando a menina, Kelpie murmurou consigo mesma:
— Aproveite enquanto podes. Tu passarás anos sem poder ver tua irmãzinha, e teu coração se quebrará quando souber disso, príncipe.
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