25. POLÍCIA ESPECIAL
Londres, 2005
Algumas semanas se passaram desde o acidente na escola. Isla decidiu ensinar sua filha a se conectar com a natureza. Sabia que a menina precisaria hibernar e passar pelo desabrochar antes de ter seus poderes no nível máximo, porém o pouco que ela já conseguia usar poderia fazer um estrago, então ela precisava treinar.
Todos os dias Julia passava pelo menos duas horas na estufa com sua mãe, aprendendo a manipular raízes e galhos, deixando as pétalas das flores viçosas e brilhantes, ajudando as plantas a crescerem e se desenvolverem para ficarem mais bonitas...
— Tem muito a ver com os seus sentimentos, minha florzinha — Isla explicou. — Quando ficamos com muita raiva, as plantas tendem a seguir nossos instintos de ferir quem está nos ferindo. Se estamos com medo, elas vão se proteger de qualquer maneira, até podem se tornar armas letais. Se estamos alegres, elas podem dançar conosco ou simplesmente se moldar para nos acomodar em seus galhos e troncos.
Ela mandou a menina se sentar perto de uma roseira alta com rosas de todas as cores possíveis.
— Não tenha medo dos espinhos. Confie que a roseira não vai te machucar, porque quando nós amamos a natureza, ela nos corresponde.
A menina respirou fundo e acariciou as pétalas de algumas rosas antes de se sentar perto das hastes espinhosas. Ela inalou o perfume delicioso das flores e sorriu, fechando os olhos. Em alguns segundos, sentiu como se algo macio se moldasse ao seu corpo, aninhando-a em um abraço.
Surpresa, abriu os olhos e viu sua mãe sorrindo, foi então que notou que as hastes das rosas retraíram seus espinhos e se moveram para formarem uma proteção macia para ela. Sorrindo, ela se deixou relaxar e acariciou novamente as flores.
Isla deixou que a filha aproveitasse o carinho das flores, pois diferente do toque humano que a incomodava, o toque das flores era muito bem recebido pelo corpo da pequena dríade mestiça.
Hamish apareceu na entrada da estufa. Era sábado, ele tinha folga do trabalho. Admirou sua filhinha naquele momento que tanto o lembrava dos momentos que passou com Isla no bosque antes de ser exilado, e suspirou, pensando em seu filho. Faltavam apenas duas semanas para o aniversário de vinte e cinco anos dele e o peito de Hamish doía por não saber se Joshua estava bem.
Três semanas antes, Isla ligou para ele no trabalho, dizendo que sentia uma angústia muito grande, que algo devia ter acontecido com seu filho, pois não sentia mais a energia vital dele quando se conectava à parte de seu carvalho que estava na estufa.
Menos de uma semana mais tarde, eles receberam a visita do chefe do Joshua junto com um ruivo grandalhão que Hamish não precisava perguntar para saber que era de seu país natal. O homenzinho careca falou primeiro, explicando que houve um acidente na segunda excursão do grupo no bosque. O ruivo que se apresentou como Aindreas Hunter completou o relato dizendo que, infelizmente, dois homens do grupo morreram, um ficou ferido e Joshua desapareceu, provavelmente estava morto também.
Isso abalou o casal, que decidiu esconder o acontecido da pequena Julia a todo custo, pois em um surto de dor, a menina poderia destruir todo o prédio onde a família morava e atrair atenção indesejada para eles. Na verdade, Hamish estava surpreso que ninguém houvesse percebido de onde partiu a destruição da escola onde ela estudava.
Depois de chorar muito, Isla procurou consolo nas raízes de seu carvalho e sentiu um fio de energia que vinha do bosque, como se Joshua estivesse no território dos carvalhos reais, tentando se recuperar. Ela sentiu o quão debilitada estava a energia dele, quase esgotada, mas ainda havia esperança, ele lutava para viver.
Isla se conectava às raízes todos os dias para sentir a energia de seu filho. Não entendia o que havia acontecido nem como ele ficou tão ferido a ponto de quase morrer, mas sabia que as ninfas o tinham resgatado e feito a ligação dele com a sua árvore-mãe, pois isso era algo que ele jamais poderia fazer sozinho. Não havia certeza de que ele sobreviveria, ela sabia apenas que ele estava lutando, ficando mais forte a cada dia, ainda que fosse pouco para garantir sua vida.
Vendo seu esposo pensativo a contemplar sua filhinha, Isla se aproximou dele e lhe acariciou a barba espessa antes de beijá-lo com amor.
— Você está pensando no Joshua? — ela perguntou.
— Sim. Mesmo que ele sobreviva, o fato de estar agora ligado à terra, significa que nunca mais verei meu filho.
— Você sabe que não é assim, querido. Eu saí de Grradhy e estou viva depois de duas décadas e meia, ele também poderá fazer isso se quiser.
— Essa é a questão, Eilean. Ele vai querer voltar para nós em algum momento? Vai tentar nos ver, mesmo correndo o risco de ser banido? Você pode apresentar ao Conselho Sagrado suas justificativas para fugir do bosque e ser aceita de volta, mas eu fui exilado por me recusar a abandonar minha mãe em Craobhan e passar pelo ritual que me tornaria parte da sociedade feérica. Se o Josh não quiser sair, não poderei ver o rosto do meu filho de novo.
Isla apertou as mãos de seu marido e beijou-lhe os dedos.
— Faz muito tempo que você não me chama assim, com a forma do meu nome em feérico... — Isla suspirou ao ver a tristeza nos olhos dele. — Hamish, não adianta sofrer por antecipação. Se tem alguém capaz de achar uma solução favorável a todos nós, é o Joshua. Além do mais, você não tem nenhum vínculo com o mundo humano agora. Se decidirmos voltar, tenho certeza de que seu exílio pode ser revogado, afinal, Julia é a herdeira do trono e nunca iria querer viver longe de você.
Ele estava pensando em uma resposta quando ouviram batidas na porta.
Isla correu para sua filha na estufa e disse para ela encerrar a conexão com as plantas e ir para o seu quarto em silêncio. Mais tarde elas retomariam as lições, mas agora a menina deveria ser discreta e ficar quieta. E nada de usar poderes.
Hamish abriu a porta, deparando-se com dois homens trajando ternos e exibindo distintivos diferentes da polícia tradicional londrina.
— Boa noite. Somos os agentes Carter e Morgan, do departamento de controle de criaturas perigosas da polícia especial do Reino Unido. Podemos conversar com os pais do pesquisador botânico Joshua Darach¹ Wood?
— Polícia Especial? — questionou Hamish, ao mesmo tempo em que Isla respondia:
— Somos os pais dele, em que podemos ajudar?
Os tais agentes se entreolharam e o careca, que parecia ser o líder, falou:
— Podemos entrar? Essa não é uma conversa para se ter no corredor de um prédio residencial, com o risco de vizinhos curiosos.
— Tudo bem, entrem e sentem-se, por favor. — Isla agia com muita educação, apesar de estar tão desconfiada dos supostos agentes quanto seu marido.
— Muito bem... — O moreno mais baixo se ajeitou numa poltrona enquanto o outro tomou acento no sofá, de frente para o casal. — Há algumas semanas um empresário chamado Aindreas Hunter procurou o controle de animais para denunciar um ataque por uma criatura desconhecida em um bosque nas Terras Altas, onde uma equipe de pesquisadores, entre eles o Sr. Wood, estava trabalhando. Creio que vocês estejam a par da situação.
— Na verdade não. — Hamish coçou a cabeça, confuso. — O Sr. Hunter veio aqui e disse que aconteceu um acidente grave que matou dois pesquisadores, feriu outro, e que nosso filho estava desaparecido. Não falou nada sobre uma criatura.
— Certo. — O careca, agente Carter, anotou alguma coisa em um bloco de notas. — Fomos informados de que o Sr. Wood era nascido no vilarejo onde fica o bosque onde eles estavam. Devo assumir que vocês conhecem bem o local. Nunca viram essa fera?
Ele mostrou aos dois um desenho que fez Isla ficar pálida.
Um blum? Joshua foi atacado por blums? Só um desses animais era suficiente para matar qualquer humano, e eles caçavam em bandos. Agora entendia por que a energia vital de seu filho quase se extinguiu. Mesmo sendo salvo por ninfas da tribo, ele devia estar dilacerado demais até para sentir dor.
Tentando se recompor, a ninfa respondeu com voz trêmula:
— Isso é algum tipo de piada maldosa? Esse bicho não existe!
— Eu entendo que isso pareça surreal, Sra. Wood. — Agente Morgan encarou o casal. — Até nós achamos que era uma brincadeira de mau gosto, mas o Sr. Hunter não foi o único a descrever esse animal. Nós interrogamos os outros quatro sobreviventes da equipe, todos deram as mesmas características básicas, com um ou outro detalhe diferente.
— Sim. Até onde fomos informados, os moradores do vilarejo de... — Carter procurou no bloco de notas, mas Hamish completou:
— Craobhan.
— Isso. Os moradores de lá têm uma crença popular desde quase dois séculos atrás de que o bosque é amaldiçoado ou coisa parecida. Até o chamam de...
— Bosque Proibido, nós sabemos disso. — Hamish abanou a mão, impaciente. — Mas nunca ouvimos falar de tal fera saída de um filme de terror, simplesmente é uma tradição passada de pai para filho para evitar que as crianças curiosas entrem ali e se percam, como aconteceu no passado. É uma história para assustar crianças.
— Bem, seja como for, parece que agora há indícios de um motivo real pelo qual não se deve entrar lá. O que nos leva à questão que nos trouxe aqui. — Morgan cruzou os dedos e suspirou. — O filho de vocês provavelmente está morto e as famílias dos pesquisadores que foram devorados por criaturas como essa estão revoltados, exigem justiça. Por isso nós viemos avisar para não se preocuparem. O exército do Reino Unido foi contatado e um batalhão será enviado junto com um grupo dos nossos agentes, assim como zoólogos e caçadores experientes para invadir o local e matar os animais que mataram seu filho.
Isla arfou, incapaz de se conter. Humanos iriam tentar atacar o bosque e todos iriam morrer. Isso só faria mais e mais humanos com suas armas tentar destruir Grradhy. Isso era um pesadelo. O caos destruiria Craobhan e os seres mágicos de Grradhy poderiam ser afetados.
Hamish segurou a mão dela, pedindo silenciosamente que se acalmasse. Alheio à reação dela, o agente Carter disse:
— Sei que isso não trará seu filho de volta, mas pelo menos a morte dele será vingada, e algumas criaturas serão estudadas, talvez até exibidas nos zoológicos do Reino Unido. É uma espécie desconhecida e bizarra que trará muito reconhecimento para o nosso país. Imagine quantas outras podem existir nesse lugar?
Isla apertou a mandíbula com força para se impedir de falar o que gostaria. Humanos estúpidos, só sabiam destruir a natureza, mesmo que dependessem dela para viver. Sentiu vontade de eletrocutar aqueles dois, no entanto, sabia que isso não resolveria o problema, pois havia um grupo de humanos imbecis se reunindo para atacar a terra onde ela nasceu, o lugar que ela iria governar se seu noivo não tivesse exigido a morte do Joshua quando ainda estava em sua barriga.
Maldito! Malditos todos eles!
Hamish sentiu as mãos de Isla tremendo e viu seus olhos ficarem amarelos. Ela estava perdendo o controle, ele precisava impedir.
— Se é apenas isso que vocês vieram falar, peço que se retirem, precisamos cuidar da nossa filhinha agora.
— Na verdade, esse é outro assunto que queremos tratar — Carter falou antes que seu parceiro se levantasse. — Houve um acidente estranho em uma escola primária não muito distante daqui e, por acaso, descobrimos que uma garotinha da turma cuja professora foi hospitalizada se chama Julia Wood. É a sua filha?
A contragosto, Hamish assentiu com um movimento da cabeça.
— Gostaríamos de conversar com ela.
— Isso está fora de questão! — Isla exclamou.
— Sra. Wood...
— Eu já disse que vocês não falarão com a minha filha. Ela é muito nova e não sabe de nada sobre o acidente, assim como todos os seus coleguinhas.
— Devemos insistir...
— Vocês possuem uma ordem por escrito e um profissional especializado em crianças especiais? — interrompeu Hamish.
A psicóloga da escola, que conversou com todas as crianças da turma da Julia, falou sobre ela ter algum tipo de transtorno neurológico, talvez déficit de atenção, hiperatividade ou algum outro que precisava de exames para diagnosticar. Hamish sabia que não havia exame no mundo que pudesse mapear o cérebro de um ser sobrenatural cujo corpo e mente eram totalmente ligados à natureza, tornando supérfluos os conhecimentos humanos, mas se podia aproveitar aquela baboseira da psicóloga para alguma coisa, iria usar para afastar aqueles caras.
— Cri-crianças especiais? — balbuciou Morgan. — Não sabíamos que ela era incapaz...
— Incapaz é você, de saber quando está sendo desrespeitoso. Minha filha é muito mais capaz do que você, seu verme asquer...
— O que minha esposa quer dizer é que você insultou nossa filha, portanto, tenha a decência de se retirar imediatamente.
— Sr. Wood, nós só estamos fazendo nosso trabalho — Carter defendeu seu parceiro.
— Seu trabalho não é ofender os cidadãos, e sim proteger a todos das ameaças. Minha filha é uma criança de sete anos, não vai falar com adultos estranhos. Agora vou pedir novamente com educação: retirem-se. Temos nossos afazeres.
Depois de trocarem um olhar, Carter fez sinal para Morgan sair primeiro, então concluiu:
— Recomendo que não saiam da cidade. Podemos voltar com notícias daqui a algumas semanas ou até meses. Depende de como será o trabalho dos militares.
Eles saíram e desceram as escadas antes de Hamish fechar a porta. Ao olhar para trás, sua esposa estava em sua forma original. De repente, o chão tremeu e alguns objetos caíram no chão. Parecia um terremoto fraco, mas Hamish sabia que não era.
— Querida, por favor, se acalma.
— Não sou eu que estou fazendo isso. Meus terremotos são destrutivos, eu nunca uso esse dom.
Ambos olharam para o corredor que levava aos quartos dos seus filhos, onde a pequena Julia tremia dos pés à cabeça e seus olhos brilhavam brancos. Isla voltou à sua aparência humana e correu para sua filha.
— Julia? Julia, ouça a voz da mamãe, filha.
— É verdade o que eles disseram? — a menina soluçou, chorando. — O Josh está morto? Meu irmão morreu?
O som de vidro se quebrando atraiu o olhar de Hamish para a porta que levava à estufa. Ele arregalou os olhos quando viu galhos espinhosos vindo pelo corredor.
— Não! Filha, me escuta, o Joshua está vivo!
— Eu ouvi, mamãe! Ouvi o que aqueles homens disseram!
— Filha, por favor, se acalma! Seu irmão está bem, ele foi salvo pelas ninfas da floresta.
Isso chamou a atenção da menina, que piscou e parou de tremer.
— Ninfas? O que é isso?
— São protetoras da natureza. Seres mágicos que possuem poderes relacionados à natureza. Como nós duas, querida.
Julia arregalou os olhos quando viu sua mãe mudar de forma para uma que parecia os elfos dos filmes. Ela tocou nas gavinhas no rosto de sua mãe e nas flores de lótus espalhadas entre os cabelos que viraram hastes douradas.
— Nós? É por isso que eu posso fazer essas coisas que as outras crianças não podem?
— Sim. Você é diferente das outras crianças, é incomum. Pertence ao povo feérico, mas nós vivemos entre os humanos porque eu quis proteger seu irmão, e você foi um presente da Mãe-Natureza para nós. Tão pequena e tão poderosa. É para cuidar de você que nós ainda estamos aqui.
— Meu irmão também é uma ninfa?
Isla riu, divertida.
— Ninfa é o nome que se dá às mulheres de algumas espécies feéricas. Os homens são chamados apenas de feéricos ou guerreiros. Mas sim, o Joshua é um feérico, um dríade dos carvalhos reais.
— O que é isso?
— Depois eu te explico tudo sobre a tribo onde eu nasci e como funciona.
A garotinha enxugou uma lágrima teimosa.
— Se o Josh está bem, por que aqueles homens disseram que ele foi morto por uma fera?
Isla suspirou e voltou à forma humana antes de abraçar sua filha.
— Nesse momento ele está muito ferido por causa de uma criatura perigosa do bosque. As ninfas o salvaram e ligaram a vida dele ao bosque. Seu irmão é forte, vai conseguir sobreviver, minha florzinha. Eu tenho certeza.
— Nós podemos ir para perto dele? Por favor, eu quero ver meu irmão de novo.
Hamish olhou em pânico para sua mulher.
— Querida, não podemos ir agora — ele declarou, ajoelhando-se para ficar na altura da filha. — O Joshua precisa se recuperar e você tem que aprender a controlar todo esse poder que está aí dentro, para não machucar outras pessoas, incluindo eu, que sou humano, está bem?
Julia chorou novamente.
— Eu tô com tanta saudade...
— Nós também, meu amor. Mas confie no papai e em mim. É melhor assim. Quando chegar o momento, nós voltaremos para a Escócia e você irá conhecer a tribo feérica de Grradhy. Só precisa ter paciência, ainda tem muito que aprender.
Isla beijou o rosto da menina e olhou para seu marido, conversando com ele em silêncio.
— Vocês prometem que vão me levar pra ver meu irmão?
— É claro, minha florzinha.
— Eu mesmo vou providenciar tudo para a viagem — completou Hamish.
O que eles não sabiam é que havia alguém empoleirado em uma árvore do outro lado da rua, ouvindo cada palavra que diziam.
O duende sorriu de um jeito sinistro. A princesa Eileanach conseguiu proteger a localização de seus dois filhos, porém jamais pensou na possibilidade de um homem que trabalhou com seu filho ir até a casa dela e, inadvertidamente, ser seguido por alguém que desejava ajudar seu senhor a destruir a família real da tribo de Grradhy.
¹ Darach significa "carvalho" em gaélico escocês. Quando fugiu para o mundo humano, Eileanach escolheu usar o nome Isla Darach, porque Isla (galês) e Eilean (gaélico escocês) é a mesma coisa (Ilha), e darach é carvalho, mas também possui a partícula "ach", que em feérico significa "real". Em resumo, ela deu a si mesma o nome "Ilha do carvalho real", misturando a linguagem feérica com a humana. Foi uma forma de ironia, já que ela é uma dríade dos carvalhos reais vivendo entre humanos.
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