20. A SEGUNDA EXCURSÃO
Joshua encarou os olhos azuis quase translúcidos da mulher e desviou o olhar para onde Olívia limpava o balcão, observando a interação entre eles. A responsabilidade do que ela lhe falou era muito grande. Naquele momento ela não falava como Dora Milne, a mulher do padeiro, e sim como Dryz, fada das frutas, uma feérica preocupada com a segurança de sua família mágica, o que incluía Olívia, uma criatura nunca antes vista e com poderes desconhecidos
Ele mal terminou de comer e o barulho característico do helicóptero de Aindreas Hunter chegou até eles. Joshua se levantou e foi até o balcão pagar seu café-da-manhã para Olívia.
— Preciso ir. Se estiver livre às cinco horas, vai pra minha casa e me espera, eu vou te acompanhar.
Olívia assentiu, um repentino brilho de animação em seus olhos.
— Estarei lá, Josh.
Ele lançou um olhar a Driz e acenou com a cabeça para as fadas no vaso de flores antes de voltar para sua casa. Ao chegar, pegou sua maleta de trabalho e ficou esperando a chegada da equipe. Nem sabia como eles conseguiram chegar a Craobhan no horário marcado com aquela chuva.
Pouco tempo depois, Aindreas, Edward e todos os outros chegaram à casa e cumprimentaram Joshua, que os conduziu pela porta de trás para pegarem os equipamentos que foram deixados lá na primeira excursão. Por causa da chuva, todos estavam com roupas semelhantes às do loiro: botas e calças impermeáveis, casacos e capas de chuva com capuz.
Quando todos se aproximaram dos limites do bosque, Joshua ficou para trás deliberadamente, observando o que aconteceria com a equipe. Se algum deles tivesse más intenções, ele ajudaria a tirar de lá com vida, porém não mais iria interferir nas avaliações das almas ancestrais. Estava disposto a boicotar as pesquisas para que todos fossem embora mais cedo.
Aindreas percebeu que ele não tomava a frente como antes, mesmo assim, deu um sorriso confiante e passou pelo limite, acompanhado dos outros. Joshua percebeu que a pressão atmosférica mudou e a maioria dos integrantes do grupo gemeu ou tocou nas têmporas, como que para aliviar uma repentina dor de cabeça, no entanto, nenhum deles se curvou de dor nem precisou pagar o preço para entrar.
Algo não estava certo.
Da primeira vez que a equipe entrou, a presença de Joshua os deu livre passagem, porém agora que eles entraram sem a proteção do príncipe, deveriam ter sofrido e pagado o preço de sua herança humana. Com o cenho franzido, Josh se manteve atrás do grupo observando tudo.
A excursão começou tranquila. Bailey, a especialista em trilhas, dessa vez conseguira bandeiras vermelhas para marcar o caminho. O grupo andou por cerca de quarenta minutos até chegarem a uma clareira parecida à primeira onde começaram as pesquisas, porém essa era ligeiramente maior.
Logo começaram a coletar amostras, tirar fotos e fazer anotações. O zoólogo Charles Landon, com sua tarântula de estimação passeando em seus braços peludos, observava com uma lupa algumas crisálidas presas aos galhos de uma árvore e fazia anotações. Depois de mais ou menos uma hora e meia com cada um trabalhando em silêncio, Janet, a especialista em animais peçonhentos, avisou que encontrara rastros de serpentes e evidências de que havia um ninho por ali, portanto era melhor partirem para outro local antes de terem um encontro fatal com um ofídio cujo veneno poderia ser desconhecido.
A chuva finalmente enfraqueceu até se tornar um chuvisco persistente, então eles recolheram suas coisas e partiram por mais meia hora até chegarem a um lugar cheio de arbustos com insetos, répteis e pequenos mamíferos que se escondiam em troncos de árvores e buracos quase invisíveis. Eles pareciam curiosos com os visitantes, ao mesmo tempo em que se escondiam dos seus olhares. Charles tinha muito para anotar e Janet encontrou algumas aranhas e uma centopeia gigante para observar fora da trilha.
Por volta de uma hora da tarde, eles decidiram se acomodar para almoçarem. A maioria das lâminas de testes dos botânicos já estava ocupada com amostras, por isso resolveram procurar outra área para finalizar o trabalho daquele dia. Eram duas e meia quando prosseguiram na caminhada, guiados por Bailey.
Avançaram por uma hora para o norte, e Joshua teve um mal pressentimento. Ele garantiu que o grupo fosse por um caminho longe da direção da tribo, contudo, não sabia que tipo de animais poderiam viver por ali, tinha medo de um encontro desagradável com feras perigosas. Lamentando sua própria estupidez de esquecer que havia naquele bosque animais gigantes que pareciam saídos do inferno, ele decidiu que falaria com Aindreas para irem embora logo.
Infelizmente, quando falou com o seu conterrâneo, a equipe já se instalava em um minúsculo descampado perto de um riacho para trabalhar e ninguém queria deixar de observar as novidades daquele espaço em que estavam. Resignado, Joshua pegou apenas duas lâminas e foi recolher amostras de duas plantas desconhecidas que se pareciam a erva de gato, torcendo para que não houvesse predadores ali.
Passaram pouco mais de trinta minutos trabalhando enquanto Charles, Janet e Bailey estudavam os arredores à procura de animais pequenos para catalogar. Os sentimentos de Joshua pioraram quando Charles encontrou uma pegada tão grande quanto a de um urso a cinquenta metros do riacho e chamou a equipe para ver.
— Vejam isso, nunca vi uma pegada de canídeo desse tamanho. Se eu fosse um amador, diria que é de um bicho pré-histórico.
— Merda! — murmurou Joshua. Podia não ser familiarizado com pegadas, porém havia sentido em seu tórax uma pata tão grande quanto aquela e com o formato semelhante à de um lobo. — Blums! Estamos no território dos blums! — Então falou mais alto: — Aindreas, precisamos sair daqui.
— O quê? Mas por quê? Tem espécimes magníficos aqui! — exclamou John, um dos botânicos que era especializado em plantas carnívoras.
Ele estudava uma planta de tonalidade roxa. A armadilha pegajosa da planta era grande, tanto que ela estava digerindo uma lagartixa em vez de insetos. Até Joshua achava isso interessante, porém, se ali era território de blums, ele preferia jamais conhecer aquela planta e fugir para o lado oposto, colocando a maior distância possível entre si e os predadores do tamanho de cavalos.
— O Sr. Wood tem razão — falou Charles. — A pegada é de um animal muito grande, com garras, provavelmente carnívoro. Não sabemos quão perigoso pode ser. Há possibilidade de ser noturno, então é melhor não perturbar seu descanso.
Andreas Hunter ponderou por um minuto antes de ordenar:
— Arrumem seus pertences. Talvez encontremos um lugar menos arriscado perto dos limites do bosque antes de termos que encerrar as pesquisas de hoje.
Sob murmúrios de protesto de alguns membros da equipe, Joshua arrumou suas coisas rapidamente e puxou Edward de lado quando vislumbrou uma pelagem cinzenta quase camuflada em uma caverna a cerca de duzentos metros de onde estava. Franziu o cenho ao perceber que conseguia enxergar tão longe sem os óculos.
— Edward, presta atenção. Se alguma coisa acontecer comigo hoje, você precisa convencer a equipe a ir embora e não voltar a entrar aqui. É muito perigoso.
— Do que você está falando, Joshua? O que poderia acontecer com você? Estamos em grupo, estaremos protegidos enquanto ficarmos juntos. Além do mais, já vamos embora.
Antes que Josh pudesse dizer mais alguma coisa, ouviram um grito e o som de rosnados. O rapaz correu para ver o que tinha acontecido e o que tanto temia estava ali na sua frente: um blum enorme agarrara John e o abocanhara pela barriga. O botânico gritava enquanto o animal o sacudia de um lado para o outro, suas duas presas salientes, semelhantes aos extintos dentes-de-sabre, haviam perfurado o homem, cujo sangue espirrava devido à pressão que a mandíbula do animal exercia sobre ele.
Não demorou para os gritos cessarem e os rostos em choque de cada membro da equipe finalmente mostrarem alguma reação ao verem o corpo de John cair no chão, morto, enquanto o blum os encarava com sangue escorrendo das presas.
— Corram! — Joshua rosnou ao ver o outro blum cinzento correr da caverna para eles. Um uivo alto cortou o ar. — CORRAM!
O primeiro a correr foi Edward, com sua mochila batendo nas costas, disparando para a trilha marcada por bandeiras. Bem atrás dele ia Bailey, puxando Janet pela mão. Os outros logo os seguiram, no entanto, um dos blums saltou para a trilha, bem na frente de Joshua, abocanhando a cabeça de Mark, o outro botânico da equipe que trabalhava com descoberta de componentes fitoterápicos.
O loiro mal teve tempo de se desviar deles quando o outro blum alcançou Charles, mordendo-o no ombro. Joshua parou para ajudá-lo e Aindreas o acompanhou, dando um soco no olho do animal. O escocês era tão forte que a fera cambaleou para o lado, uivando.
Os três homens correram pela trilha o mais rápido que podiam, tentando despistar os predadores que os perseguiam. Todos já sentiam as pernas e os pulmões arderem por causa da corrida intensa e ainda carregando equipamentos de trabalho em mochilas. Passaram cerca de vinte minutos correndo, quase caindo de exaustão pela explosão de adrenalina que já passava por não verem mais os bizarros seres de seis patas que os perseguiam.
Eles pararam um instante para tentar recuperar o fôlego antes de continuar rumo à saída do bosque. Se fossem rápidos, poderiam sair dali em cerca de uma hora e meia. Todos ainda estavam muito abalados com os acontecimentos. O dia começara promissor, cheio de descobertas e animação. Agora, num espaço de meia hora, dois membros da equipe estavam mortos, o zoólogo estava ferido e os outros quatro profissionais ali sequer tinham tempo para se recuperar do choque de verem e serem atacados por animais que só poderiam sair de seus pesadelos.
Joshua era o único que não se sentia a ponto de enlouquecer, apesar de ainda estar em alerta e ter seus batimentos cardíacos muito acelerados.
— Continuem correndo, não há tempo para descansar. Aqueles animais não vão desistir tão fácil e pode ter mais deles se reunindo para nos caçar agora.
Os outros concordaram e voltaram a correr, liderados por Bailey, que seguia a trilha marcada por ela mesma. Mais dez minutos se passaram, a equipe havia percorrido em meia hora um caminho que levaram quase uma hora e meia para andar mais cedo. Todos estavam com medo e cansados, e Charles estava fraco devido à perda de sangue.
De repente, todos ouviram o grasnar estridente de um enorme gavião negro. Os pelos de Joshua se arrepiaram quando fitou o pássaro gigante, provavelmente maior que uma harpia brasileira, pois uma tonalidade tão escura nas penas do animal só poderia ser...
— Noktu! — O kaemera grasnou novamente e deu um rasante bem perto de Joshua, suas garras afiadas rasgaram a cara de um blum que os espreitava por entre arbustos espinhentos. — Fujam! Depressa! CORRAM!
O grupo cansado correu desabalado pela trilha enquanto Noktu tentava afastar o predador. Joshua os seguiu, entretanto, outro blum saltou na trilha e mais dois apareceram, rosnando e cercando o mestiço.
— Joshua! — Aindreas gritou quando olhou para trás e viu o rapaz cercado. Ele tentou se aproximar, porém um dos animais rosnou e levou as garras em sua direção. — Não!
— Fujam! Vão embora, fujam!
Joshua sentiu os dentes como adagas de um dos animais perfurando seu ombro e o sacudindo como se fosse um boneco de pano. Outro blum o atacou e ele gritou. Lentamente, seus olhos se fecharam e sua consciência se esvaiu.
A última coisa que viu foi Aindreas correndo para longe. Esperava que o restante da equipe se salvasse, mesmo que sua vida estivesse acabada naquele momento.
Joshua não sentia nada. Seu corpo não doía, contudo, também não o sentia. Era como se apenas sua consciência flutuasse em um mundo etéreo enquanto seu corpo estava tão destruído que parecia nem mesmo existir. Todas as suas terminações nervosas estavam dilaceradas, era impossível falar ou mexer qualquer músculo. Seu corpo estava coberto de sangue, seu rosto tão machucado que mal era reconhecível.
Sua última lembrança foi a de acordar enquanto era jogado como um brinquedo entre os blums, cada um deles o mordeu e provou seu sangue, até que um rosnado ensurdecedor ecoou no bosque e uma grande massa de pelos brancos começou a atacar os predadores, ladeada por um majestoso hipogrifo negro.
Sombras velozes se juntaram aos kaemeras, mas Joshua não conseguia raciocinar sobre o que seriam, apenas perdeu os sentidos repetidas vezes, o que embaralhava sua mente. Não sabia o que estava acontecendo, via flashes de movimentos, então tudo ficava escuro, e o ciclo se repetia.
Depois de muitos momentos vazios, ele sentiu que estava parado e seus ouvidos captaram murmúrios. Reconheceu a voz que falava na linguagem consonantal das ninfas, porém não conseguia ver nada, só queria dormir, estava tão cansado...
— Sinto muito, princesa... As feridas são profundas demais.
— Não... Por favor, Invta, não há nada que possa ser feito? Ele é o herdeiro dos carvalhos reais, não pode morrer!
— Só há uma forma, porém ele está muito ferido, é provável que não sobreviva ao processo.
— Temos que tentar! Qualquer coisa, não importa, só temos que tentar. Por favor, por favor...
— Ele precisa ser levado à sua árvore-mãe para se ligar às raízes dela e receber os nutrientes necessários até o próximo Desabrochar. Mesmo assim, princesa, não saberemos se ele morrer até o ritual acontecer. Se a terra puder curá-lo, ele vai sair de lá mais forte e seu lado feérico irá dominar o lado humano. No entanto, se ele morrer, ficará enterrado entre as raízes e sua árvore irá secar.
— Temos que tentar, mesmo sem garantias de que ele irá sobreviver.
— Free, você tem certeza, filha? Ele estará ligado a Grradhy e à sua árvore-mãe para sempre e isso nem será escolha dele. Sabe o que implica o herdeiro de Eileanach passar pelo ritual do desabrochar?
— Sei, pai. Ele será declarado rei após o treinamento de guerreiro e sua companheira será a nova rainha. Eu sei e sinto muito, mas não posso deixá-lo morrer apenas para manter a coroa na nossa família. Se posso fazer algo para que ele sobreviva, eu farei qualquer coisa.
— Eu não me importo com a coroa, filha, ela é só parte dos nossos deveres na sociedade feérica. Estou preocupada com o que irá acontecer se o filho de Eileanach ficar com raiva de você quando não puder mais sair de Grradhy. Ele costuma transitar entre os dois mundos, passar pelo Desabrochar significa escolher viver entre nós e abandonar o mundo humano.
— Não importa! Eu prefiro viver com o ódio dele do que deixar que ele morra! Por favor, mamãe... Não posso vê-lo morrer...
A consciência de Joshua se foi e ele permaneceu na escuridão por um longo tempo.
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