19. ESCOLHAS
Joshua já sentia seus músculos gritarem pelo esforço de se segurar no galho da árvore ancestral. Tentava se concentrar, fechava os olhos e desejava descer dali, contudo, antes que pudesse completar o ato de fazer as árvores o obedecerem, ele se lembrava da expressão desapontada de Freesia e sentia a culpa corroer seu coração.
Na verdade, nem mesmo entendia o que tinha feito de errado. Orked falou que ele não deveria elogiar e dizer que gostava de outra garota quando tinha acabado de beijar Freesia, mas o “gostar” a que ele se referia era diferente, não tinha nada romântico. Gostava de Olívia como amiga, jamais sentiu qualquer atração por ela.
A lembrança de como se sentiu ao beijar Freesia o fez perder a concentração e sua mão direita soltou do galho, deixando-o pendurado precariamente com a esquerda. Ao sentir que iria cair, gritou por ajuda, então sentiu-se despencar e o ar foi expelido de seus pulmões quando suas costas bateram nas costas de Kmry, que o impediu de cair direto no chão repleto de raízes salientes.
Joshua deslizou para o lado e caiu, gemendo de dor. Kmry, em sua forma híbrida natural, segurou o rapaz entre os dentes, com a barriga para baixo, balançando pra lá e pra cá. Sua boca enorme aberta com ele no meio era uma visão assustadora, pois lhe bastava fechar a mandíbula para que ele fosse partido em dois.
Cuidadosamente, a kaemera carregou-o para fora dos limites do bosque e andou em direção da casa. Quando estava chegando às escadas, Joshua ouviu um grito feminino apavorado vindo do lado esquerdo da casa, onde podia vislumbrar, de cabeça para baixo, Olívia, que acabara de rodear a casa, provavelmente procurando por ele, e flagrou aquela fera estranha mordendo seu amigo.
— Beag Kmry... me coloca no chão... — ele balbuciou e a kaemera obedeceu.
Olívia encarava horrorizada o animal branco, e sentiu que ia desmaiar quando o viu encolher até virar a gata que perambulava pela casa do Joshua.
— Oh, meu Deus...
Joshua se sentou com dificuldade na escadaria, fazendo sinal para que ela se aproximasse. Hesitante, Olívia andou até ele e se acomodou ao seu lado, notando o grande hematoma que se formava nas costas do rapaz quando este se curvou para apoiar os cotovelos nos joelhos. Também observou a intrincada tatuagem que tomava o braço, ombro e costas do lado esquerdo, e pensou em como nunca percebeu que ele era tatuado.
— Josh, o que...
— Beag Kmry é uma kaemera, um animal metamorfo raro que eu conheci no bosque. Ela me escolheu para acompanhar e proteger. — Kmry levantou o rabo de escovinha e se sentou aos pés de Joshua, que acariciou suas orelhas. — Não precisa ter medo, ela só ataca se tentarem me fazer mal.
— Uau... É muito surreal uma raposa gigante com corpo de leão da montanha. Ela é linda, mas totalmente assustadora. Pensei que estivesse pronta pra te devorar.
— Quando nos conhecemos, parecia mesmo que ela ia me estraçalhar para ter um banquete, mas acho que carne humana não deve ser saborosa para nenhum animal. Somos muito duros, cheios de nervos, músculos e ossos. Eu quase nem tenho gordura, o gosto deve ser decepcionante.
Ela riu baixinho da forma como ele falou, então observou novamente a pele que ficava roxa nas costas dele e suspirou.
— Como foi que isso aconteceu? Você tá bem machucado.
Ele deu de ombros.
— Eu irritei uma criatura da floresta e ela me deu uma surra. Foi sem querer, mesmo assim ela me jogou de costas no chão com muita força, depois me deixou pendurado num galho de árvore muito alto e eu acabei caindo. Kmry me aparou no corpo dela, mas o baque foi inevitável.
— Criatura? Que tipo de criatura faria algo assim?
— Você vai conhecer em breve, se ainda quiser entrar no bosque.
— Era sobre isso que eu queria falar. Passei as últimas horas ansiosa, nem consegui dormir pensando no que fazer. Eu quero entrar lá, me sinto pronta. Vim te pedir pra me acompanhar.
Joshua gemeu de dor quando se ergueu para encarar Olívia.
— Você quer entrar hoje?
— Bem, eu queria, mas você está machucado, então acho que vou ter que esperar mais.
— Não precisa esperar por minha causa, Oli. Eu não posso ir porque estou ferido, preciso descansar e me preparar para a excursão de amanhã com a equipe do laboratório. Só peço que espere até por volta das quatro da tarde, terá alguém te esperando nesse horário lá dentro. É melhor não entrar sozinha, tem animais perigosos e a floresta pode ser intimidadora.
— Se quem estará me esperando é a mesma coisa que fez isso com você, prefiro esperar até que esteja bem para ir comigo. Eu só confio em você, Josh.
— Tem certeza? Freesia é legal, só um pouco... intensa demais. Na verdade, ela é letal, mas só com quem faz mal à natureza.
— Eu amo a natureza, só prefiro ir com você. Vai ser mais fácil descobrir por que esse lugar mexe tanto comigo se tiver alguém que passou pelo mesmo que eu. Até você entrar, o bosque te atraía, e é assim que eu sempre me senti. Preciso do teu apoio, é pra isso que servem os amigos, certo?
— É claro. Também servem para passar remédio em lugares onde a pessoa não alcança, então você poderia... — Ele apontou por cima de seu ombro e Olívia entendeu. Ajudou-o a se levantar e ir até a cozinha. — Pega esse frasco na mesa, por favor. Vou precisar que espalhe nas minhas costas.
— O que é essa gosma cintilante?
— Remédio do bosque. Não me peça explicações, não sou apto pra isso. Só sei que é poderoso e funciona.
Concordando, Olívia pegou o frasco e o acompanhou até o quarto, onde se assustou ao ver os lençóis sujos de sangue.
— Todo esse sangue é só do teu braço?
— É uma longa história e nem eu entendo ainda o que aconteceu. Pode me ajudar a trocar? Tem lençóis limpos no armário.
Ela procurou os lençóis e fronhas, e trocou os sujos antes de fazer Joshua se deitar de bruços na cama e passar o remédio nos pontos roxos das costas dele.
— Você fica diferente sem os óculos, é a primeira vez que te vejo sem eles.
— Eu só uso quando vou ler ou estudar minhas plantas. Nas vezes em que você veio aqui, ou eu estava trabalhando ou lendo, por isso usava os óculos.
Sem aguentar a curiosidade, Olívia questionou:
— Desde quando você tem tatuagem? Eu nunca reparei nisso.
Pensando que seria mais fácil inventar algo do que contar a história verdadeira que nem ele havia assimilado ainda, Joshua disse:
— Você nunca me viu sem camisa ou com roupas sem manga antes.
— Hum, é bonito, parecem galhos floridos e entrelaçados de um carvalho. Deve ter doído pra fazer.
— É, doeu muito mesmo.
Eles conversaram sobre amenidades enquanto ela espalhava o remédio e massageava suavemente. Terminado o serviço, ela se despediu e prometeu levar uma torta de carne da padaria para ele almoçar.
Tão logo Olívia saiu, Joshua desmaiou de exaustão. Aquele remédio relaxava seu corpo, deixando-o com uma sensação de estar flutuando. Dormiu o dia todo, sua mente levando-o para lembranças da infância, quando começou a sentir mais forte a atração para o bosque.
As memórias iam desde ver árvores se mexerem como pessoas até falar com os animais e ter a sensação de que eles entendiam e respondiam em suas próprias linguagens. Lembrou-se também de sua mãe com as mãos transformadas em galhos, afundadas em um terrário na estufa. De alguma forma, aqueles acontecimentos foram bloqueados em sua mente, como se nunca tivessem existido. Pelo menos até a noite passada.
Mesmo em sua inconsciência, Joshua se perguntava por que sua mãe escondeu toda a sua herança feérica durante quase vinte e cinco anos. Seu aniversário seria dali a dois meses e ele não sabia se voltaria para Londres para comemorar com sua família depois das excursões da equipe ou se ficaria em Craobhan para conhecer mais do bosque, quem sabe os costumes da tribo e a história toda dos seus antepassados. E tinha Freesia... Ele conseguiria dizer adeus a ela e partir? Conseguiria rejeitar seu lado feérico?
A única coisa da qual tinha certeza era que nunca poderia esquecer que havia magia em seu sangue, que ele tinha poderes, algo inimaginável para ele até o dia em que decidiu atender ao chamado de Grradhy. E ainda havia o senso de dever que o consumia. Freesia lhe disse que ele precisava proteger o bosque, pois era o único lar do seu povo, um povo do qual ele fazia parte, mesmo que soubesse disso há menos de um dia.
Desde que se entendia por gente, Joshua era atraído para a natureza, sentia que precisava protegê-la, especialmente as plantas, para que as gerações futuras tivessem meios de subsistência e saúde. Em Londres, ele sempre achou que podia fazer mais do que seu trabalho na empresa permitia, e agora, de volta à Escócia, ele percebia que estava certo, porém o “fazer mais” não era só pelos humanos e sim pelos feéricos, que viviam escondidos por causa da maldade dos homens.
Era o pôr-do-sol quando Joshua acordou. Ele se virou na cama e esticou seus músculos antes de se levantar e observar pela janela o sol sumindo por trás das árvores dos limites de Grradhy. Sentia-se dolorido, com o humor irritado e muita fome.
— Ninfa dourada sádica. Ajudar é o cacete. Idiota, babaca... — resmungou enquanto procurava o que comer. — Quando eu aprender a controlar essa coisa...
Parou de reclamar quando viu um pedaço de papel rabiscado em cima da mesa.
“Josh, eu trouxe a torta de carne que prometi, mas fiquei com pena de te acordar, parecia tão exausto... Se acordar com fome, a comida está no forno, aproveite. E mamãe mandou dizer que te espera na padaria antes da excursão de amanhã.
Carinhosamente, Olívia.”
Naquela noite, Joshua jantou e ficou tentando ler um livro com Kmry deitada ao seu lado, contudo, os acontecimentos recentes não o deixavam se concentrar na leitura. Pensou em voltar ao bosque para treinar seu poder, porém ainda estava dolorido e com as costas machucadas. Mesmo que o remédio tenha evitado o inchaço e amenizado a cor arroxeada dos ferimentos, a surra que levou de Orked foi forte e ele se sentia debilitado.
Depois de uma noite mal-dormida, ele se levantou às cinco da manhã, fez sua higiene matinal e vestiu um conjunto de calça, casaco e botas impermeáveis para ir até a padaria, pois amanhecera chovendo e a temperatura baixou para onze graus¹ celsius. Colocou uma capa de chuva e pegou um guarda-chuva para sair de casa.
Ainda não eram seis horas quando adentrou a padaria, onde encontrou Violet ajudando sua mãe atrás do balcão. Dora sorriu e o mandou escolher uma mesa para tomar seu café. Ele fez seu pedido e se sentou para esperar.
— Violet, querida, chame sua irmã para preparar o sanduíche de salame e queijo e faça o sanduíche de ovos com porccini², por favor. — E se virou para o rapaz. — Vou colocar seu chá em infusão, querido.
Após fazer seu trabalho em uma velocidade surpreendente, Dora o encarou, seus olhos azuis e bochechas rosadas davam a Joshua um novo olhar sobre o fato de ter sido paparicado por uma fada de verdade na infância. Quando ela colocou em sua frente o bule com as ervas na água fervente e a xícara, ele percebeu um vaso de flores no canto do balcão e arregalou os olhos ao perceber que no meio delas tinha algumas idênticas às brancas que viu no bosque.
— Aquilo... Tem fadas em miniatura aqui? — ele questionou, olhando entre Dora e o vaso.
— Você gostaria de vê-las de perto? — ela sussurrou. — São minhas filhas que vêm me visitar clandestinamente vez ou outra. Elas não podem ficar em tamanho natural para não correrem o risco de serem descobertas pela tribo e banidas. E elas estão curiosas sobre o rapaz bonito que adentrou Grradhy. Você é o novo assunto da tribo no momento.
Joshua gemeu, constrangido. Antes que pudesse responder, viu Dora pegar o vaso e colocar na sua frente, na mesa, e deu um pulinho involuntário quando as três “flores” brancas se viraram para olhá-lo. Observou que todas tinham cabelos tão claros que pareciam brancos, pele rosada como a da mãe e trajavam longos vestidos brancos, provavelmente de seda tirada direto da natureza.
Elas riram, exatamente como no dia em que Joshua conheceu Freesia, e ele observou que eram muito bonitas. Uma tinha olhos verdes, outra amarelos e a última, mais tímida que as irmãs, tinha olhos azuis e era muito parecida com Olívia. As “flores” que os humanos viam, que se pareciam com dentes-de-leão, na verdade eram os cabelos das fadas em penteados elaborados que deixavam mechas soltas e os vestidos esvoaçantes que elas usavam.
De repente, uma delas saltou do meio das flores e fez sair de suas costas asas translúcidas semelhantes às asas de borboleta. Agora que os sentidos dele não estavam mais selados, podia ver claramente moças em miniatura. Era como olhar para a fada Sininho, de Peter Pan, exceto que elas não vestiam um vestido verde colado e curtinho, e seus braços e rosto tinham padrões cintilantes que pareciam flores, porém não era pintura e sim a pele real delas, assim como a pele real de Freesia tinha gavinhas grudadas em seu rosto e flores naturais que cresciam em seu cabelo.
Elas tinham uma beleza completamente diferente das mulheres humanas, chegava a parecer irreal para ele, mesmo que agora soubesse que eram de verdade. A fada de olhos amarelos que voava na sua frente se aproximou até tocar seu nariz. Era uma sensação engraçada.
Então Joshua ouviu uma voz em sua mente e recuou, surpreso.
— Você é diferente dos guerreiros feéricos. É mais bonito. Embora pareça... desajeitado.
— C-como... — ele balbuciou, aturdido.
— Fadas podem conversar mentalmente, não precisamos falar para sermos entendidas — respondeu ela, ainda na cabeça dele.
— Você já ouviu o chamado da sua companheira?
— Quem é ela? Uma dríade de carvalho branco ou preto? Uma hemadríade?
— Você tem poderes? Quero vê-los!
As três fadas fizeram perguntas quase ao mesmo tempo, isso o deixou confuso, pois não conseguia distinguir quem estava falando, só ouvia suas vozes no silêncio da padaria.
— Meninas, suas irmãs estão vindo, escondam-se — ordenou Dora, também em silêncio. Pegou o vaso de flores e devolveu para o balcão antes de derramar o chá do bule para a xícara. — Aqui está, anis, flor de laranjeira e canela — falou em voz alta dessa vez. — Aproveite, querido.
Violet e Olívia voltaram com os sanduíches e Joshua comeu com vontade. Os pães do Sr. Milne eram divinos, impossível não se viciar neles, e com certeza tinha o dedinho poderoso da Sra. Milne no sabor levemente frutado de todas as delícias da padaria.
Enquanto comia, ouviu a voz de Dora em sua cabeça.
— Chamei você aqui porque minhas filhas mágicas queriam te conhecer, mas também para alertá-lo. Toda a tribo está em polvorosa com o que aconteceu há três noites. Uma profecia foi feita. Um grande mal se aproxima, sedento pelo sangue feérico, e Grradhy está convocando todos os seus filhos perdidos. Isso significa que mais como você estão sentindo o chamado, mestiços espalhados por toda a Europa, descendentes de feéricos daqui. Você precisa fazer cessarem as excursões antes que seus colegas descubram que há algo mais do que plantas extintas no resto do mundo e animais exóticos aí dentro. Humanos curiosos são um risco para a segurança de todos nós.
— Farei o que puder, Sra. Milne — ele murmurou, para que apenas ela ouvisse. — Infelizmente, não sou o líder da expedição, e o empresário que está bancando esse trabalho de pesquisa tem muito interesse no bosque. O máximo que posso fazer é sabotar qualquer coisa que os aproxime da tribo.
— Bom, nesse caso, se eles chegarem perto demais do segredo do bosque, você precisará fazer escolhas, Joshua. Dará as costas para o seu povo e esquecerá tudo que conheceu na última semana? Ou aceitará sua herança feérica, o legado que seu sangue carrega, e ajudará o povo a proteger os seus?
¹ Para os curiosos de plantão que acham que temperatura em países estrangeiros se mede com Farenhreit, saibam que apenas cinco países usam essa medida, incluindo os EUA. No resto do mundo se usa Kelvin ou Celsius, que é o mais comum, por isso as temperaturas no livro são em Celsius.
² Tipo de cogumelo que hoje é caro no Brasil, mas antigamente se encontrava em qualquer floresta úmida a cada metro quadrado.
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