15. FEITIÇO
Ele respirou fundo e observou o rosto bonito dela antes de começar a falar:
— Primeiro, você deve ter a mente aberta e entender que por mais absurdas que pareçam certas coisas, elas são reais, não apenas fantasia, ok? Se você entrar no bosque com mente cética, vai achar que enlouqueceu de verdade. Esse é um dos problemas de quem entrou lá antes.
— Ok, eu tenho que acreditar que tudo é real e não alucinações de uma mente perturbada. Entendi. Você não sabe o alívio que estou sentindo.
— Imagino, você achou que estava louca, mas não está. Continuando, o bosque está vivo, não só pela flora e fauna presentes ali... Ele tem consciência, entende? O bosque estuda as intenções de todos que entram nele. Se as intenções forem boas, você tem uma chance de sobreviver, se forem más... — Joshua não finalizou o pensamento, porém era simples de entender.
Olívia cobriu a boca com as mãos.
— Então foi isso que aconteceu? Todos os que entraram e sumiram é porque tinham más intenções e morreram?
— Nem todos. Alguns tinham boas intenções e escolheram viver lá dentro, mas essa parte eu não posso contar em detalhes, você terá que descobrir por si mesma para ser digna de guardar o segredo. Se eu te contar, deixarei de ser digno das coisas que descobri. Só posso te falar uma coisa importante: para entrar no bosque há um preço e você precisa estar disposta a pagar.
Ela engoliu em seco, passando nervosamente a mão nos cabelos, então respirou fundo antes de perguntar:
— Qual é o preço?
— Sangue ou lágrimas de dor. Depende de cada pessoa.
— Qual você pagou?
— Lágrimas, mas eu recomendo que você pague com sangue.
— Por quê? Lágrimas parecem doer menos.
— Aí é que você se engana. O bosque procura manifestações de dor. Uma vez pago o preço, você pode transitar dentro e fora dos limites quando quiser, porém, para que o seu pagamento seja aceito, é preciso sentir dor. Se você oferecer sangue, não pode levar uma arma daqui ou o bosque irá te considerar uma ameaça, então terá que ferir a si mesma com uma pedra ou galho, qualquer coisa cortante, e deixar o sangue ser derramado no solo. É claro que isso vai doer, então o pagamento estará feito.
— Mas e quanto às lágrimas? Por que é pior?
— Porque as lágrimas são de dor intensa. Você não vai querer passar por isso, acredite em mim. Eu nunca senti tanta dor como no momento em que entrei no bosque. Vem de todos os lados. Primeiro o psicológico, depois o físico, é surreal o que o corpo pode aguentar, mas todo corpo tem um limite. A dor é tanta que causa choque e pode causar uma parada respiratória. Foi o que aconteceu comigo, tive sorte de minhas lágrimas serem aceitas ou não estaria aqui agora.
Olívia estremeceu.
— Então o perigo é mesmo como fomos ensinados desde a infância.
— Sim, mas vale à pena. Você vai conhecer um mundo incrível aí dentro, só precisa respeitar a natureza, não machucar nenhum ser vivo... Sempre ciente de que também existem muitos perigos nesse lugar. É inexplorado, você tem que tomar cuidado. No entanto, se o bosque chama por você, é porque existe uma ligação entre vocês. Eu ainda estou procurando a minha ligação, mas quando estou lá, sinto que encontrei meu lugar no mundo. Você vai sentir o mesmo.
— Você acha?
— É claro. Você nunca se sentiu parte de Craobhan, não é? Pode ser porque faz parte de Grradhy.
— O que é isso?
— É o nome oficial do Bosque Proibido.
— Hum... Nunca ouvi esse nome. Você descobriu isso nas suas pesquisas?
— Pode-se dizer que sim — ele murmurou, com um sorriso mínimo.
Olívia suspirou e levantou da escada, olhando para Joshua.
— Bem, essa noite eu tenho muito o que pensar, mas agora preciso voltar pra casa. Se demorar mais, o papai vai me encher de perguntas. Obrigada por tudo, Josh.
— Foi um prazer, Olívia. Acho que podemos ser bons amigos, afinal, sabemos que temos pelo menos uma coisa em comum. — Ele acenou com a cabeça para as árvores imensas. — Quando estiver pronta para entrar, me avise.
— Está bem. Boa noite.
Ela beijou seu rosto e seguiu seu caminho para a porta da frente, fazendo um carinho em Kmry antes de sair.
A sós, Joshua arrumou sua cozinha, trancou todas as janelas e portas, pegou o envelope de Dora e foi para a sua cama a fim de ler o que a mulher iria revelar. Ao abrir o envelope, encontrou uma carta escrita com uma letra pequena e caprichada. Tudo o que a matriarca Milne tocava era delicado.
Kmry deitou ao seu lado quando ele começou a ler.
“Querido Joshua,
“Antes de mais nada, parabéns por ter sido aceito por Grradhy, isso mostra que seus sentimentos são puros e suas intenções louváveis, porém, fazer parte desse segredo implica responsabilidades e é muito perigoso brincar com isso, portanto, mantenha-se digno de guardar o segredo do mundo mágico. Lembre-se que da mesma forma que você foi aceito, pode ser banido para sempre, só depende de suas ações.
“Você deve ter muitas perguntas agora. Vou responder a mais fácil, pois implica em mim e em minha filha Olívia.
“Meu verdadeiro nome é Dryz, fada das frutas. Nasci em Grradhy há oitenta e sete anos. Diferente das ninfas, as fadas não têm suas vidas ligadas ao bosque, nós podemos sair por escolha própria, no entanto, obviamente, nossos poderes enfraquecem fora das terras mágicas e nós envelhecemos mais rápido. Dentro do bosque, uma fada pode viver por quatrocentos anos, como vivo em Craobhan, vou viver no máximo cento e setenta.
“Eu vivia feliz em Grradhy com minha família, tinha um companheiro amoroso a quem eu amava desde os dezessete anos, quando amadureci. Infelizmente, ele foi morto por uma fera do bosque quando eu tinha sessenta anos. Cerca de cinco anos mais tarde, eu conheci um antusa da tribo do Alaska que veio visitar a tribo europeia. Ele me viu e ficou me cercando, até que eu cedi e nós tivemos uma noite juntos.
“Acontece que, diferente das ninfas, as fadas não podem se relacionar com outras espécies para procriar, pois nossos poderes são fortes demais, então essa relação era proibida. Quando ele partiu para outra tribo em busca de sua companheira, eu descobri que havia um fruto da nossa infração em meu ventre e fiquei com medo do que o conselho das fadas faria com Olívia, afinal, uma criatura híbrida de fada e ninfa nunca foi vista, ninguém sabia como ela seria e que poderes perigosos teria, então eu fugi para o mundo humano.
“Aqui eu conheci Hian. Ele era um jovem forte e gentil que trabalhava com a mãe na padaria. Logo eu descobri que precisava trabalhar para sobreviver, então comecei a colher frutas para vender no mercado e na padaria. Eu as fazia amadurecer até ficarem perfeitas e deliciosas para o consumo. Foi assim que Hian se apaixonou por mim e eu o aceitei para que Olívia tivesse um pai. A gestação das fadas dura um ano, por isso minha filha nasceu no tempo certo de acordo com a gestação humana e ninguém jamais desconfiou que ela não é humana.
“Hian sempre foi um pai amoroso e um marido cuidadoso, por isso eu não tive como não me apaixonar por ele, então vieram os outros quatro filhos que são dele. Você já deve ter percebido, com este relato, que as fadas são bem prolíferas, não é mesmo? Sim, eu tive outros filhos com meu primeiro companheiro. Quatro, para ser exata. Olívia é a filha do meio e a única completamente diferente dos irmãos, tanto os mágicos quanto os humanos. Ela é uma criatura nunca vista e, como eu jamais poderei retornar a Grradhy, preciso que você a ajude a conhecer e se conectar com suas origens. Enquanto não conhecer Grradhy, Olívia sempre se sentirá incompleta, pois lá dentro está seu companheiro de alma e sua família feérica.
“Essa é a minha história e da minha filha, Joshua.
“Sei que você quer saber sobre sua mãe, porém, como falei antes, existem certas coisas que pessoas de fora da família não podem contar. A história da Isla, somente ela pode revelar. Sinto muito se isso te deixa frustrado, mas ou você terá que ouvir dela ou descobrir sozinho.
“Independente do caminho que você seguirá, desejo-lhe sucesso. E perdoe sua mãe pelo que ela escondeu, Isla teve seus motivos para ficar calada. Você entenderá quando chegar a hora.
“Fique bem e tome cuidado sobre em quem confiar.
“Carinhosamente, Dora Milne. Ou simplesmente Dryz.”
No cantinho, ao final do verso do papel, tinha um Post Scriptum:
“Queime essa carta depois de ler. Não queremos que outras pessoas descubram o segredo do bosque. Imagine o que aconteceria se cientistas e homens ambiciosos descobrissem a existência dos feéricos... viraríamos corpos dissecados.”
Joshua estremeceu ante o pensamento e lembrou da equipe da qual fazia parte, que queria explorar Grradhy. Xingou alto quando percebeu que a próxima excursão seria dali a quatro dias. Tinha que fazer alguma coisa para sabotar a excursão, não podia permitir que o grupo abrisse caminho no bosque e descobrisse a existência de criaturas míticas.
Naquela noite, enquanto dormia, Joshua sentiu uma dor intensa queimando seu braço. Acordou gritando, a cicatriz em ziguezague brilhando em vermelho.
A aproximadamente 1200 km dali, Isla acordou com os gritos de Julia. Pareciam gritos de dor, eram estridentes e penetrantes. A ninfa correu para o quarto da filha, seguida de seu marido.
A cena diante de si era impactante. A menina gritava e se debatia como se seu corpo estivesse pegando fogo, mas apenas uma luz branca a envolvia. Um corte em seu braço esquerdo chamou a atenção de Isla, que ofegou. Era como se estivesse sendo queimado em carne viva.
Como era possível? Julia era muito nova para despertar seus poderes! O selo em Joshua deveria neutralizar não só a visão e audição do rapaz sobre o mundo mágico, como servia para manter seus poderes adormecidos e assim também proteger a existência de Julia.
— Hamish, vai na estufa, depressa! Traz as folhas prateadas no pote com seiva amarela!
Não esperou para ver se ele fez o que pediu, apenas correu para sua filha murmurando palavras em feérico. De sua mão surgiu uma luz amarela e Isla tocou a fronte da garota em agonia. Seus olhos ficaram totalmente brancos enquanto ela via o que a menina via em seu sonho.
Joshua apavorado, deitado no chão úmido coberto de folhas do bosque, um enorme blum o atacando, perfurando seu ombro e tentando mordê-lo. De repente, da terra fluiu uma força sem precedentes e o rapaz tomou o controle das raízes e galhos de um carvalho real...
Tanto Isla quanto Julia sentiram o sangue quente do animal caindo sobre Joshua quando as raízes apertaram-lhe o pescoço e os galhos atravessaram seu corpo, matando-o instantaneamente.
A visão levou o olhar delas para a árvore-mãe de Isla. O bosque escureceu e Joshua já não estava lá. Uma figura vestindo um manto com um capuz que lhe cobria a face tocava a marca do feitiço no carvalho de Isla e murmurava palavras que a ninfa não compreendia, porém, reconhecia como a língua antiga das fadas.
O ser desconhecido moveu as mãos como em um ritual e começaram a surgir nos dois carvalhos menores ziguezagues marcados em fogo. Era um feitiço de localização conjurado através do selo que Isla colocou em seu filho. Quem quer que estivesse fazendo isso, procurava pelos dois irmãos, ela precisava impedir.
— Isla, aqui está! O que tá acontecendo com ela?
— É um feitiço. É muito parecido com o despertar dos poderes, mas não são os dela, são os do Joshua.
Enquanto falava, ela retirou uma folha banhada em seiva do pote e colocou sobre o ferimento da menina.
— De alguma forma, ele usou um de seus poderes em uma emergência, mesmo sem quebrar o selo. Alguém está usando o rastro de poder que ficou no lugar em que Joshua estava para tentar rastrear os dois. Afaste-se!
Uma luz dourada se projetou da mulher, girando ao redor dela como um vento poderoso que fez voar seus cabelos. Os olhos ficaram dourados, as orelhas pontudas, os cabelos cor-de-areia tomaram a aparência de filetes (as hastes fininhas que sustentam o pólen das flores), e do meio deles surgiram flores de lótus de variadas cores. O corpo macio tornou-se como as cascas das árvores, seus dedos como galhos pontiagudos e o rosto ganhou minúsculas gavinhas verdes saindo de trás das orelhas.
Ela estava em sua forma original de dríade.
Sua voz soou áspera quando começou a sussurrar na linguagem consonantal feérica:
— Tha mi a ’gairm cumhachd craobh mhòr anaman sinnsireil, tha na duilleagan aige a ’toirt beatha. Eisd rium, tìr mo bhreith... (Eu convoco o poder da Grande Árvore das Almas Ancestrais, cujas folhas dão a vida. Ouça-me, terra de meu nascimento...)
As luzes em suas mãos ficaram mais intensas quando as colocou sobre a folha prateada da Grande Árvore no ferimento da menina e continuou falando em feérico:
— Eu, Eileanach, filha de Cibele, que tem poder sobre a natureza e todos os seres vivos... Eu, princesa das terras mágicas, ordeno que seja oculto a qualquer ser indigno tudo que o leve até os herdeiros do trono. Que o céu escureça, que as águas parem de correr e que a terra se abra e engula o mal, levando-o para longe deles. Eu ordeno que todos os elementos da natureza protejam os descendentes da Grande-Mãe. Pelo sangue de legítima herdeira, que o feitiço que sonda os carvalhos reais seja rompido e deixe em seu conjurador uma marca que jamais será apagada. Pelo povo das tribos feéricas e a vida que deles flui, proteja os seus filhos e faça cessar a dor que os assola. Aceite seus filhos, poderoso Grradhy!
Ela cortou sua mão com um dos dedos afiados e deixou pingar sobre a folha prateada a seiva verde que saiu do corte. A luz dourada ficou tão intensa que Hamish fechou os olhos para não ficar cego.
A luz branca que envolvia Julia se apagou e ela parou de gritar. O silêncio tomou conta do ambiente, somente se ouvia a respiração ofegante de Isla, que desabou no chão, exausta por ter que usar tanto poder. Hamish a amparou nos braços fortes e verificou sua filha, que agora dormia tranquilamente.
Isla puxou longas respirações antes de balbuciar:
— P-preciso...
A ninfa não precisou concluir a frase para seu marido entender. Ela necessitava das raízes de sua árvore-mãe para se recuperar.
Ele a carregou até a estufa e a colocou na cama de relva macia onde estavam enterradas as raízes de seu carvalho de nascimento. Era assim que ela conseguia manter seus poderes, havia pegado raízes e terra da sua árvore-mãe para manter viva a sua ligação com Grradhy. As folhas da pequena muda que aparecia na superfície curavam suas feridas e as raízes lhe devolviam a força e vitalidade.
Ao sentir a relva sob seu corpo, os dedos de Isla alongaram e mergulharam no solo para conectarem-se às raízes. Ela teria que passar metade de um dia ali, se recuperando, deixando-se ser nutrida pelas raízes do carvalho.
Enquanto isso, Hamish voltou ao quarto de Julia para ver como ela estava. Tampou o pote de vidro onde estavam as folhas da Grande Árvore e examinou a ferida no braço da filha. A folha havia feito seu trabalho e a seiva foi absorvida pela pele da menina. Onde antes havia um corte incandescente, agora restava a cicatriz esbranquiçada idêntica à de Joshua.
O escocês suspirou fortemente.
Se esforçou tanto para que seu filho tivesse uma vida normal longe das tradições estranhas da tribo e agora, prestes a completar vinte e cinco anos, ele corria perigo por ser um híbrido. Poderia ser egoísmo de pai, mas Hamish apenas queria poder ver seu filho novamente, o que não aconteceria se ele encontrasse a tribo e decidisse viver entre o povo de sua mãe.
Há vinte e seis anos ele fez amor com Isla em meio aos carvalhos sem antes se casar com ela e foi condenado ao exílio por não aceitar desistir do mundo humano. Mas como poderia abandonar sua mãe?
Ele era o único descendente da família Wood e cuidava de sua mãe viúva e doente. O Conselho Real de Grradhy exigiu que ele abandonasse sua vida humana e aprendesse com os guerreiros da tribo para se tornar apto a assumir o trono ao lado de Isla quando ela substituísse sua mãe.
Não pôde fazer isso. Por mais que amasse Isla, também amava sua mãe e não podia deixá-la sozinha no mundo, sofrendo por achar que ele havia morrido no bosque como todos os outros desaparecidos. Foi por isso que pediu permissão para continuar visitando Craobhan, mas foi recusado, banido e ameaçado de morte pelo Conselho sem poder se defender.
Quando achava que não suportaria viver longe dela, a princesa Eileanach foi até ele para contar que estava esperando um filho e que o bebê corria perigo. Por isso ela deixou tudo para ter seu filho ao lado dele, e Hamish agradeceu aos céus pela chance de ter uma família com ela, pois jamais amaria outra.
Hamish entrou no bosque sem planejar, atendeu ao chamado, à canção que Isla cantava para atrair seu companheiro. Agora sentia que Joshua ouviria esse chamado também.
A questão era: qual seria a escolha de seu filho?
Minutos antes, no território dos carvalhos reais, a criatura encapuzada sentiu uma forte descarga elétrica que subiu direto por seu braço, deixando uma marca que ia das pontas dos dedos até os ombros.
O ser praguejou, afastando-se dos carvalhos.
— Eu subestimei a princesa Eileanach, ela é muito poderosa. Mas não vou cometer o mesmo erro duas vezes. A família real será exterminada.
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