14. SILÊNCIO
A dríade olhou para Joshua, surpresa com o que tinha acontecido. Sondou as expressões do seu rosto para tentar descobrir se ele havia, de alguma forma, rompido o selo de sua mãe, entretanto, pela forma que a olhava, sem questionar sobre a verdadeira aparência dela, o selo continuava intacto.
Então como ele conseguiu ordenar que as raízes o protegessem?
Ela encarou os três carvalhos reais muito floridos atrás de si. Os galhos do carvalho de flores lilases à esquerda da árvore de Eileanach ainda voltavam para seus lugares. Seria possível que a princesa fosse tão poderosa a ponto de manter uma ligação assim com Grradhy, mesmo estando a tantos quilômetros de distância?
Ouviu o gemido inconformado do rapaz, que ainda estava sentado no chão, sangrando.
— Freesia? O que aconteceu comigo? Como...?
— Joshua, você precisa sair do bosque. Não sei se ainda pode haver blums por perto e as outras ninfas vão acordar a qualquer momento, se te virem, vão querer saber quem é você e como chegou aqui. Se você não for logo, ficará preso em meio a um longo interrogatório.
— Eu preciso saber o que aconteceu!
— E vai. Só peço que tenha paciência porque eu também preciso descobrir. Por favor, não quero que corra ainda mais perigo. Vá embora e não volte por pelo menos dois dias, esse é o tempo que eu preciso para poder te dar uma resposta.
— E como eu vou saber quando você tiver uma resposta?
Ela suspirou e levou a mão ao cabelo negro espesso. Joshua não viu como, mas a ninfa cortou uma mecha e deu em sua mão.
— Essa mecha irá brilhar como um arco-íris quando eu te chamar. Espera...
Freesia andou até o carvalho que tinha certeza agora ser o do jovem híbrido e retirou um punhado de flores e folhas dele, depois voltou e estendeu a maior parte a Joshua, então o fez mastigar uma folha que o acalmaria, pois estava surtando com o que acabara de ocorrer. Seu coração estava disparado e ele tremia, assustado. Não demorou para a folha fazer efeito.
— O blum perfurou seu ombro. Vou curar você agora, porém, nem sempre estarei por perto, então quero que amasse isso com um pouco de seiva das árvores ancestrais que delimitam a entrada do bosque e guarde para alguma emergência, pois tem propriedades curativas, é só passar em qualquer ferimento.
— E como eu vou tirar seiva das árvores sem ser morto por elas?
A dríade o observou silenciosamente. Pelo visto, ele sabia mais do que parecia.
— Basta pedir. Você pode oferecer também uma gota de sangue, assim poderá tocar e tirar seiva quando quiser.
Ela ocultou o fato de que isso aconteceria porque as almas ancestrais reconheceriam sua linhagem sanguínea e não poderiam negar nada a ele. No entanto, se Grradhy já estava chamando seu filho perdido de volta, as almas ancestrais não o deixariam em paz até que decidisse viver entre seu povo.
Mesmo assim, ela tinha trabalho a fazer, então precisava que ele fosse embora para que ela tentasse descobrir por que três blums estavam caçando no território da tribo.
— Esse bosque tem uma coisa com sangue... — resmungou ele. — Prefiro pedir, não sou masoquista.
— Faça como achar melhor — ela respondeu antes de curar os ferimentos dele e falar para a kaemera branca: — Kmry, por favor, leve-o de volta e não o deixe fazer nenhuma besteira, ok? Certifique-se de que ele vai descansar.
A fera peluda fez um som do fundo da garganta como se concordasse.
— Era só o que faltava, ter uma bola de pelos temperamental como babá.
Kmry rugiu próximo ao rosto de Joshua, soprando seus cabelos e sujando-o com baba.
— Eca!
Antes que pudesse dizer mais alguma coisa, Kmry o agarrou com a cauda para colocá-lo em cima dela, depois disparou pelo bosque a tal velocidade que ele sentiu enjoo. Quando ela parou nos limites do bosque, ele deslizou de suas costas e vomitou a seus pés.
— Merda! — reclamou. — Eu disse que se vomitasse seria culpa tua, Kmry!
A Kaemera, agora transformada em gata, bufou e foi andando com seu rabo de escovinha erguido até chegar à casa. Joshua suspirou e foi abrir a porta, notando que sua mão esquerda estava fechada, amassando as flores e folhas que Freesia lhe deu, além da mecha de cabelo dela. Ele os depositou em cima da mesa da cozinha e foi pegar um copo limpo, sentindo-se ridículo pelo que estava prestes a fazer.
Andou até o limite do bosque e estendeu o copo, dizendo:
— Por favor, preciso de um pouco de seiva para fazer remédio.
Era impressão dele ou as árvores se moveram como se fossem humanos?
Não, não era impressão.
A árvore diante da qual ele estava moveu um galho pontiagudo e fez um talho profundo em seu próprio tronco, de onde verteu um líquido amarelo viscoso. Rapidamente, Joshua encostou o copo no tronco para que a seiva escorresse para dentro dele. Quando achou que tinha o suficiente, afastou o copo e passou o dedo no corte da árvore, surpreso ao perceber que começou a fechar sozinho.
— Obrigado... — murmurou, e viu o topo da árvore se curvar como em uma reverência. — Ok... — Fez uma reverência desajeitada e voltou para casa.
Algum tempo depois de misturar as folhas e flores do carvalho com a seiva e guardar, Joshua apenas tomou um banho, deu comida para Kmry e se deitou em sua cama. Não estava com fome nem sono, só conseguia ficar relembrando o que aconteceu, desde o momento em que viu Noktu até o momento em que foi atacado e suas mãos se acenderam como lâmpadas incandescentes roxas.
Não entendia o que estava acontecendo, como foi capaz de fazer aquilo?
Primeiro sua mãe era ligada ao bosque e tinha uma kaemera que escolheu protegê-lo, agora isso?
Lembrava-se de sentir uma força fluir por ele, como se viesse da terra, e então um puxão doloroso fez suas mãos acenderem e era como se ele estivesse puxando aquelas raízes e galhos sem ao menos tocá-los.
Como isso era possível? Ele não poderia ser... Não, se ele fosse uma criatura fantástica, saberia disso desde sua infância, não é? Freesia disse que os dríades cresciam dentro de seus carvalhos até desabrochar, aos quinze anos, mas ele não passou por isso. Ele tinha fotos de cada fase de sua infância e adolescência para provar que nasceu e cresceu como um menino humano normal.
Quando o sol finalmente se pôs, às nove da noite, ele abriu cautelosamente a janela de vidro, esperando ouvir os sussurros das árvores, porém, apenas o silêncio o recebeu. Ficou por alguns minutos ainda tentando ouvir a linguagem das ninfas, sem sucesso. Tudo estava tão silencioso que ele teve calafrios.
Naquela noite, Joshua não dormiu, tentando em vão entender o que acontecera com ele dentro do bosque. A imagem daquele animal em cima dele, da bocarra cheia de dentes pontiagudos prestes a abocanhar sua cabeça e a dor de sentir as garras perfurando seu ombro... Tudo isso dava voltas em sua cabeça.
No dia seguinte, ele ficou trabalhando a maior parte do dia, saiu apenas para ir ao mercado da rua principal comprar mantimentos. No caminho de volta, viu a jovem Violet Milne andando na calçada e lembrou de algo que Logan lhe falou, então foi até a padaria, esperando encontrar Dora Milne.
Ele teve sorte. Ao entrar na padaria onde o cheiro de pão quentinho e biscoitos shortbreads predominava, viu a matrona Milne atrás do balcão, com sua cabeleira sob uma touca higiênica e o rosto afogueado típico de quem havia acabado de sair de perto dos fornos. A mulher era rechonchuda, com pele muito clara, de forma que ficava facilmente corada. Os cachos eram loiros e o sorriso estonteante. Ela era muito bonita, mesmo que as pessoas a classificassem como gorda.
Ao ver Joshua, o sorriso cativante apareceu.
— Jovem Josh, que prazer ver você aqui.
— Olá, Sra. Milne. Acho que seu marido não compartilha do seu pensamento.
Ela fez muxoxo, abanando a mão.
— Hian é um velho teimoso. As pessoas deveriam ficar felizes porque você voltou do bosque em vez de se perder e nunca ser encontrado, como todos os outros.
— O que me leva a uma questão. Você disse aos meus amigos que se tinha alguém capaz de sair vivo do bosque seria eu, por ser filho de quem sou. O que isso quer dizer?
Dora fitou seriamente os olhos do rapaz e sussurrou algo que Joshua não compreendeu, porém, ele reconheceu a língua em que ela falava e arregalou os olhos, surpreso.
— Você... Como você sabe a língua das nin...
— Shh! Não fale tão alto! Eu não tinha certeza se você teria alguma noção de feérico. Quanto Isla te ensinou?
— Ensinou? O que a mamãe deveria me ensinar?
A mulher ofegou e saiu de trás do balcão para se postar na frente do rapaz e puxar sem cerimônia seu braço esquerdo, onde se pôs a examinar até encontrar uma pequena cicatriz em ziguezague, quase imperceptível na pele dele. Ela resmungou alguma coisa na linguagem consonantal, ignorando o som de protesto que ele fez.
— É um selo antigo... — murmurou. — Mas se você não soube por ela, como conhece o segredo?
— Eu conheci uma... É uma longa história, agora como você sabe?
Ela olhou para os lados e respondeu baixinho:
— À noite vou enviar Olívia com a torta de carne que você adora. Debaixo da torta deixarei uma carta explicando algumas coisas, mas receio que você terá de descobrir o resto sozinho ou perguntando à Isla. Tem certas coisas que não cabem a alguém de fora da família contar.
Ele encarou a mulher mais velha.
— Você e minha mãe são...
— Mais tarde, Joshua. Por favor, tenha paciência — ela disse em tom de finalidade.
Direto como sempre, ele indagou antes de sair:
— Por que toda vez você manda Olívia levar as coisas para mim?
Dora desviou o olhar, parecendo surpresa com o jeito dele de perguntar as coisas. Ia responder quando ouviu a voz de seu marido chamando por ela.
— Eu falo na carta. Apenas, por favor, conheça minha filha antes de pensar em rejeitar sua amizade.
Dizendo isso, ela virou as costas e entrou apressadamente na cozinha da padaria e Joshua foi embora, pensativo.
O resto do dia foi passado no laboratório, Joshua só fez uma pausa às quatro da tarde para ouvir a canção que sempre chegava a ele nesse horário, mas nesse dia só se ouvia o som do vento balançando as folhas das árvores. O bosque estava em tal silêncio que sequer se ouvia o som característico dos animais. Até Kmry estava enrolada em uma almofada, completamente parada.
O que estava acontecendo?
À noite, quando ouviu batidas na porta, soube que era Olívia. Diferente das outras vezes em que tentava se manter distante, embora amigável, Joshua a convidou a entrar e compartilhar a refeição com ele. A princípio, a jovem ficou surpresa e recusou, entretanto, como ele insistiu, ela aceitou.
Eles jantaram em meio a uma conversa agradável. A porta de trás estava aberta e um refletor iluminava todo o quintal da propriedade dos Wood, deixando apenas as árvores no limite do bosque obscurecidas.
Em dado momento, quando já haviam terminado de comer e Joshua colocava as louças na pia, guardando discretamente o envelope que estava escondido entre a base de isopor e o prato de papel onde a torta era colocada, Olívia se aproximou da porta e ficou encarando as árvores ancestrais.
— Hoje o bosque está silencioso — ela comentou suavemente.
Ele sabia o que a jovem queria dizer, mesmo assim, para sondar os conhecimentos dela sobre o lugar além dos limites, perguntou:
— Como assim?
Olívia desviou seus olhos azuis para ele e, pela primeira vez, Joshua notou que eram tão claros que na luz parecia que suas pupilas ficavam quase transparentes. Os cabelos loiros ondulados que emolduravam o rosto fino davam a ela uma aparência geralmente vista nas fadas dos filmes.
— Se você fosse outra pessoa, eu não teria coragem de falar, mas você entrou no bosque e conseguiu sair, então eu posso confiar em você, Joshua?
O rapaz ficou surpreso.
— É claro que pode. Seja lá o que for, seu segredo estará seguro comigo.
Ela suspirou profundamente e voltou a olhar para as árvores.
— Desde pequena eu ouço os sussurros do bosque. Sei que todos ouvem, mas enquanto todos sentem medo, eu me sinto atraída para ele, como se uma força que sempre existiu em meu interior me puxasse em direção a ele.
Joshua observou o perfil da jovem e tocou sua mão, puxando-a para a escada traseira, onde se sentaram, ouvindo o farfalhar das folhas.
— Quantos anos você tinha quando começou a sentir isso?
— Não lembro. Talvez uns cinco ou seis. Eu nem sabia ler quando começou, mas sei que foi pouco tempo antes de vocês partirem. Nós crescemos ouvindo que o bosque é perigoso, que todos que entram nele jamais retornam, que jamais devemos transpor os limites... Esse medo fica impregnado nas nossas mentes. Eu também sentia, morria de pavor de chegar perto, até que um dia a mamãe veio visitar a tua mãe e me trouxe junto.
As memórias de Joshua sobre essa época eram embaralhadas, porém, ele lembrava desse dia. Foi no dia em que ele achava que tinha visto aquelas luzes pela primeira vez. Com tudo que aconteceu, esqueceu que ficou confuso por muitos anos com aquilo, em dúvida se era um sonho recorrente ou uma lembrança em seu subconsciente. Agora sabia que era real. Pelo que Freesia descreveu, era uma noite em que ocorria um ritual de desabrochar das dríades.
— O que aconteceu quando você veio aqui?
A loira pigarreou, engolindo em seco.
— Quando chegamos, você estava andando até as árvores, parecia hipnotizado. Nunca vou esquecer isso. A tua mãe gritava pra você voltar e você continuava andando, até que a minha mãe sussurrou alguma coisa e você desmaiou antes de chegar ao limite do bosque.
Então foi isso que aconteceu. Quem ou o que era Dora Milne?
— Isso não deveria te deixar com mais medo do bosque?
Ela balançou a cabeça negativamente.
— Você lembra o que ouviu? Lembra o que tanto te atraía para lá?
Joshua coçou a cabeça, tentando recordar o que as vozes diziam.
— Eu não entendia as palavras, mas estava seguindo uma voz maravilhosa que cantava uma linda canção. Só distingui uma frase: “Venha, Joshua”.
Olívia ofegou, olhando para ele como se visse um anjo. De repente, baixou a cabeça e começou a chorar. Joshua não sabia o que fazer.
— Olívia, o que aconteceu?
Ele a abraçou, deixando que chorasse em seu peito até se acalmar. Quando ela se afastou, tinha uma expressão que misturava alívio e vergonha.
— Desculpe, eu só... Durante anos eu vivi pensando que tinha algum problema psicológico, que estava louca ou a caminho de ficar. Desde aquele dia, eu me afastei das pessoas, me fechei em meu próprio mundo, porque me sentia diferente, sentia que não pertencia aqui, que não me encaixava nesse lugar. Joshua, eu também ouvi as vozes dizendo: “Venha, Olívia, aqui é seu lugar”.
O loiro estava estupefato ante a narrativa da moça. Então o bosque também chamava por ela? Mas por quê? O que os dois tinham de tão diferente dos outros moradores de Craobhan?
Alheia aos questionamentos mudos dele, Olívia continuou:
— Até a adolescência, eu ficava longe daqui, fugia a todo custo do bosque e seus sussurros, mas quando completei dezessete anos, a atração ficou mais forte. Desde então, eu costumo vir aqui todos os domingos à noite, depois da missa, para ouvir. Fico sentada nessa mesma escada, com os olhos fechados, ouvindo as palavras. Isso até agora, até você voltar.
Ela suspirou, fitando os olhos cor-de-avelã dele.
— Há quatro anos eu venho aqui, sentindo esse desejo inexplicável de entrar no bosque, porém sempre com medo de nunca mais ver minha família de novo. E agora você entrou e está aqui... Como? Por favor, Joshua, me ensina como. Eu sinto essa angústia dentro de mim, como se me faltasse um pedaço... Preciso entrar lá e descobrir o que é isso.
Joshua ponderou sobre o que dizer. Sua mãe disse para escolher em quem confiar e, de alguma forma, Olívia não só confiou seu segredo a ele como também estava ligada ao bosque. Talvez estivesse errado desde o início sobre o motivo de Dora tentar aproximar sua filha dele. Não era para que ele a tirasse de Craobhan, mas para que a ensinasse a entrar em Grradhy.
— Olívia, você me pediu para guardar seu segredo, agora eu peço que faça o mesmo por mim. Tudo que eu disser deve ser mantido só para você, entendeu?
Os olhos verdes se encontraram com os azuis-acinzentados e ambos viram surgir, naquele momento, uma cumplicidade sem precedentes.
— Sim, entendi — ela disse com firmeza. — Pode confiar em mim.
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