13. DESCOBERTAS
Freesia o olhou, confusa.
— Esse o quê?
— Hipogrifo. Sabe, metade águia e metade cavalo.
— Ah... Não sabia que você tinha um nome específico para essa forma que o Noktu assume.
— Como assim, “assume”? Quer dizer...
— Que ele é uma kaemera, assim como essa que você está acariciando.
— Kaemera?
— Sim. Elas podem assumir qualquer forma animal, só não mudam sua cor.
Joshua olhou para Kmry por um instante. Kaemera... Lembrava da quimera grega, um animal híbrido com cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente. Então kaemera era uma espécie animal que escolhia de que forma se apresentar, isso era muito interessante.
— Esse kaemera negro é seu ou pertence à tribo? Quantas dessas criaturas existem aqui?
Noktu rosnou e Freesia falou com ele na língua das ninfas, antes de responder:
— Eles são muitos raros e não pertencem a ninguém. Kaemeras são criaturas livres que vivem sozinhas ou com um parceiro, porém, alguns podem escolher feéricos para proteger. Parece que essa linda peluda escolheu você.
— Mas eu não sou um feérico.
Freesia desviou o olhar. Se a própria Eileanach havia selado os sentidos do filho para o mundo mágico, então ele nem imaginava que era filho de Grradhy e herdeiro legítimo das terras poderosas que abrigavam feéricos. Ele não sabia quem era sua própria mãe e não seria ela a contar, não tinha esse direito. Eileanach deveria contar ao filho sobre seu passado e a história de seu povo, esse era o certo.
— Bem... Ela te escolheu, isso é inegável. Nenhum kaemera enfrentaria um semelhante por causa de um humano se não o tivesse escolhido.
O loiro olhou para Noktu e estremeceu levemente.
— Por que ele tentou me atacar?
— Ele não lida bem com pessoas e você estava perto de adentrar o território das dríades, ele só estava me protegendo.
— Então ontem, quando cheguei até os carvalhos...
— Ele estava caçando nas montanhas ao norte. Se estivesse aqui, provavelmente teria te atacado, mas eu teria ouvido e nos conheceríamos, de qualquer jeito.
— Se não fosse Beag Kmry...
— Ela te protegeu porque te escolheu, e se escolheu é porque você é digno dela.
Freesia observou a kaemera branca cercando Joshua e pensou no significado de seu nome. Beag Kmry, pequeno animal da realeza ou que vive em castelos. Apostava que Kmry era companheira da princesa Eileanach e que ela mandou Joshua com instruções sobre Grradhy, pois sabia que a kaemera o testaria quando reconhecesse seu parentesco.
Joshua estava olhando para a kaemera branca com respeito, quase adoração.
— Se eles são raros, então devem ser animais sagrados para a tribo, não é? Como funciona o culto de vocês? Quer dizer, vocês são protetoras da nat...
— Animais sagrados? — ela interrompeu, estranhando as perguntas dele, então entendeu o que ele quis dizer com “cultos”. — A tribo não cultua animais. Nós não temos o que você chamaria de... — Ela ficou pensativa por alguns segundos, lembrando de algo que fazia parte da sociedade humana. — Religião. Nós reconhecemos um poder que está acima de qualquer outro no universo inteiro, mas não o cultuamos. As ninfas respeitam a natureza como uma fonte viva de tudo que já foi criado. Através dela nos conectamos enquanto sociedade. Somos todos irmãos, pois todos fomos gerados pela terra. A natureza é um ciclo sem fim e nós fazemos parte disso, é assim que as ninfas vivem. Amamos a natureza e a defendemos dos que querem destruí-la.
Joshua arregalou os olhos. Primeiro achou que as ninfas fossem politeístas, por causa dos gregos, depois achou que eram monoteístas porque Freesia falou sobre existir apenas um Deus, e agora ela estava dizendo que eles, basicamente, acreditavam em uma divindade, mas não a adoravam. Ele nunca ouviu falar de uma sociedade inteira sem religião, era algo inconcebível.
— Vocês não rezam a uma divindade ou fazem oferendas?
— Nosso respeito e reconhecimento ao Deus Criador está na forma como cuidamos do que Ele criou. Ele está em todo lugar, em cada elemento da natureza. Nós amamos a natureza, isso nos mantém ligados. Todos os seres, feéricos ou não, são ligados através dela.
— Interessante. — Joshua ficou pensativo por alguns segundos, então quis sanar uma curiosidade. — Ontem era por volta de cinco da tarde quando você e eu nos conhecemos, porém, não havia outras ninfas por perto. Até a sua... — ele pigarreou. — Avó... Estava dormindo.
— E você quer saber como é o nosso ciclo de sono — ela deduziu.
— Algo assim... É que eu sou botânico e plantas precisam da fotossíntese para sobreviver e isso só acontece com a luz do sol... Me perdoe se estiver sendo indelicado...
— Não está — ela garantiu, sorrindo. — Minha espécie é nova para você e sua cabeça está cheia de perguntas, eu entendo. Bom, nós estamos conectados às raízes de nossa árvore-mãe, onde cada ninfa da floresta nasce, então precisamos dos mesmos nutrientes. Nós dormimos por volta das dez da manhã e acordamos a partir das seis da tarde, pelo menos a maioria de nós.
Joshua a observou. Ela não o encarava diretamente como no dia anterior, apenas olhava quando achava que ele não via. Admirou os longos cachos negros e os profundos olhos violeta que deixavam marcante a face delicada, pequena, de modo que a mão dele devia cobrir completamente o rosto dela. Sentiu vontade de tocar para saber se a pele era tão macia quanto parecia.
— Você dorme menos tempo que as outras? Por quê?
Ela o encarou nos olhos, depois olhou para Kmry, que havia sentado no chão e puxado Joshua sem ele nem notar. Ele estava com as pernas dobradas em “borboleta” e a Kaemera branca tinha a cabeça gigante deitada no colo dele. Freesia fez Noktu deitar e sentou no chão, apoiada no flanco poderoso e quente do animal.
— Não durmo menos tempo, apenas condicionei meu corpo a dormir pouco mais de duas horas antes, então eu acordo perto das quatro da tarde. Tenho uma amiga limneida, uma ninfa dos lagos, me acostumei assim para poder brincar com ela por mais tempo quando éramos mais novas. As ninfas aquáticas dormem por mais tempo e não são noturnas como as ninfas ligadas às plantas.
— Entendi. É admirável que você tenha mudado seus próprios hábitos por uma amiga. Quantas espécies de ninfas diferentes existe na tribo? Pelas histórias da mitologia grega existem espécies de todo tipo que se possa imaginar.
— Realmente existem dezenas de espécies, mas em Graddhy tem apenas oito.
Freesia começou a explicar sobre a sociedade das ninfas e sua história, afinal, mesmo sem saber, Joshua era um deles e Graddhy sempre iria chamar por ele, enquanto estivesse vivo.
Depois de muitas perguntas e respostas de ambas as partes, Joshua falou sobre as fadas.
— Aquelas florezinhas brancas que estavam perto do carvalho onde você mora são mesmo fadas, não é? Eu estudei a composição delas, não são plantas.
Freesia deu de ombros com um pequeno sorriso.
— Eu falei que eram fadas e você não acreditou.
— Pensei que fadas tivessem tamanho normal, como elfos ou mediano, como hobbits.
— Elfos são menores do que ninfas e fadas podem ficar do tamanho que quiserem, mas o que são hobbits?
Joshua coçou a cabeça e avaliou a ninfa. Quantos seres das histórias de fantasia seriam reais?
— Er... Hobbits são homenzinhos minúsculos e de pés peludos que vivem dentro das montanhas, protegidos dos Orcs. Hum... Acho que isso é só fantasia literária, certo?
— Acho que sim, porque eu nunca ouvi falar.
— E quanto a bruxos, druidas, duendes, Papai Noel, Yets, sátiros, centauro, minotauro, dragões, lobisomens, vampiros, sereias... — Ele se interrompeu quando viu o olhar de Freesia, que tinha uma cômica expressão que misturava surpresa, medo e diversão. — Hum... Existe algum dos que eu falei?
Ela começou a rir muito, depois parou, enxugou uma lágrima e respondeu:
— Primeiro, dragões estão extintos há mais de um milênio. Segundo, eu não sei o que são Yets, Papai Noel ou vampiros. Druidas existem e, no passado, gostavam muito de extrair poder das dríades para fazer magia, mas essa prática foi proibida há séculos. Duendes são criaturinhas asquerosas que gostam de roubar tesouros, eles vivem muito bem disfarçados no mundo humano. O que são lobisomens?
— São homens que se transformam em lobo ou em uma versão grotesca entre lobo e humano.
Ela balançou a cabeça negativamente.
— Lamento dizer que humanos não são capazes de mudar sua forma para a de um animal. Sereias são ninfas aquáticas de qualquer espécie que podem criar em si mesmas a ilusão de uma calda de peixe. Bruxas são mulheres humanas que acham que fazem magia, porém, magia de verdade não pode ser controlada por seres não-feéricos. Por último, qualquer criatura que seja metade humana e metade animal nada mais é do que ninfas terrestres que têm a habilidade de mudar sua própria forma para se tornar mais forte, só que as ninfas mudam apenas a parte de baixo do corpo, transformar completamente a própria aparência é impossível. Essa habilidade foi herdada pelos descendentes de Pã e depois se espalhou para outros clãs por causa de casais compostos de clãs diferentes.
— Certo, acho que assimilei tudo, agora só preciso que me diga o que significa eu ter a mente selada.
— O q-quê? — ela balbuciou.
— Ontem, depois que você bebeu meu sangue e fez aquela magia estranha para acessar minhas memórias em família, você disse que meus olhos e ouvidos foram selados, mas que poderia retirar os selos se eu quisesse. O que isso significa?
Freesia desviou o olhar. Já era ruim o suficiente não saber se contava aos seus pais sobre a existência de Joshua, agora tinha que lidar com um segredo que não era dela para contar. A mãe dele fez o selo, era ela quem deveria tirar e contar a ele sua verdadeira origem.
Ela estava pensando no que deveria contar quando ouviu passos. Olhou para o céu e percebeu que havia passado quase duas horas conversando com ele, e as outras ninfas ligadas às plantas estavam acordando.
— É melhor você ir. Esse é o horário em que toda a tribo está acordada e tem alguém vindo pra cá.
A contragosto, Joshua aceitou e montou em Kmry para ir embora.
Nos próximos dias, todas as tardes, das quatro às seis horas, Joshua e Freesia se encontravam para conversar e trocar experiências. Ele nunca mais tocou no assunto do selo, pois ela o mantinha pensando em outros assuntos relacionados à tribo e atiçava a curiosidade dele sobre suas tradições.
Em um desses dias, depois de quase uma semana, ele dirigiu até o castelo onde estava a equipe da excursão e todos compararam suas pesquisas, cada um na sua área de estudo. Joshua não falou sobre as fadas e ninguém mais havia pegado amostras das “florezinhas brancas”, então estava tudo bem, por hora.
Terminado o trabalho comparativo, as conclusões de cada um e o planejamento da segunda excursão para dali a quatro dias, Joshua voltou para Craobhan a tempo de seu encontro diário com Freesia. Dessa vez, ele levou para ela dois grossos volumes em inglês sobre a mitologia grega, como havia prometido.
Eles estavam novamente conversando, ambos pareciam nunca se cansar da presença um do outro. Freesia admirava cada vez mais o híbrido, e ele se encantava com cada pequeno gesto dela. Nunca havia sido tão fácil, para nenhum dos dois, ficar na presença de alguém do sexo oposto. Era tão natural, como se tivessem se conhecido a vida toda.
Os poderosos kaemeras que os acompanhavam também conversavam a seu próprio modo, com grunhidos, bufadas, pateando o chão e com ocasionais rugidos, especialmente da parte de Kmry. A fêmea não tinha paciência com o jeito agressivo do Noktu, por isso tornou-se comum seus feéricos os separarem quando ela o mordia e ele revidava com bicadas e arranhões.
Freesia comentou que os kaemeras pareceriam filhotes de lobo brincando, e Joshua falou que ele acharia o mesmo se eles não fossem duas feras gigantescas que podiam se matar e a quem mais estivesse por perto.
De repente, Noktu rosnou e se levantou, espreitando as árvores atrás de Freesia. Kmry também levantou e ficou alerta, suas orelhas mexendo em todas as direções, procurando a ameaça. A Kaemera branca rosnou e foi ficar ao lado de Noktu, então os dois rugiram alto, o que fez várias aves levantarem voo.
Freesia falou algo na língua das ninfas e puxou uma adaga de uma bainha em sua cintura que Joshua não tinha percebido que ela carregava. Ela ficou em uma posição que ele reconheceu como de combate e se pôs na frente dele.
— É um blum — ela sussurrou. — Não deveria ter um tão perto do território da tribo, menos ainda enquanto há luz solar. Eles são caçadores noturnos.
— Blum...? — Joshua começou a perguntar, mas parou quando viu surgir a dez metros um animal bizarro, para dizer o mínimo. — Merda...
Parecia um lobo do tamanho de um cavalo, mas tinha seis patas parecidas com as dos tigres, com garras enormes, chifres pontiagudos e quatro dentes semelhantes aos dos extintos tigres dentes-de-sabre.
— Joshua... não se mexe.
— Quê?
— São dois blums, tem uma fêmea vindo logo atrás desse.
— Como você...?
— Eu estou tocando Noktu, por isso compartilho da visão aguçada dele. Você vai aprender a se conectar assim com a Kmry... se sair vivo daqui.
Ele estava com a pergunta na ponta da língua quando o segundo blum apareceu. Freesia logo se aproximou mais para sussurrar ao seu ouvido:
— Posso vencê-los com a ajuda dos kaemeras, mas não posso te proteger ao mesmo tempo, então quando eu mandar, corre.
— O q...
— Corre! AGORA!
Mal ela gritou e o primeiro blum avançou. Joshua ouviu os rugidos e correu o mais rápido que conseguiu, entretanto, na hora estava tão desorientado que foi para a direção da tribo em vez de pegar o caminho que o levaria para fora do bosque.
Freesia não olhou para onde Joshua correu, só esperava que não fosse para o sul, onde ficava o território dos cargs. Ela viu Kmry atacar o primeiro blum e Noktu rolar no chão com o segundo.
O som de rugidos ficou mais forte enquanto os animais lutavam ferozmente e Freesia tentava acertar o pescoço de um dos blums. Era uma confusão de garras e dentes afiados, a dríade dançava entre eles, muito rápida, desferindo golpes com sua adaga, mas sem conseguir chegar perto o suficiente para abater o animal.
Na verdade, estava surpresa de muitas formas, pois blums eram caçadores noturnos, não costumavam se aproximar do território das ninfas, caçavam em bandos como lobos e geralmente desistiam quando percebiam que estavam perdendo. Contudo, aqueles blums não pareciam dispostos a desistir, mesmo que Kmry estivesse quase acabando com um deles.
A luta continuou voraz. Freesia aproveitou que Kmry havia cansado bastante o primeiro blum e se aproximou o suficiente para dar o golpe final. Como era habitual, olhou nos olhos do animal e entoou as palavras de caçadora que todos deviam falar antes de abater as presas enquanto Kmry, mesmo ferida, foi ajudar Noktu. Não demorou a Freesia fazer o mesmo com o segundo Blum, então respirou aliviada.
O que ela não sabia, o que os kaemeras não viram, era que havia um terceiro blum espreitando, e quando Joshua correu, ele foi atrás. O loiro percebeu que estava sendo perseguido e correu ainda mais rápido, saltando raízes expostas e sentindo as chicotadas de galhos finos em seu rosto e braços conforme ele passava desabalado pelo caminho cada vez mais estreito entre as árvores.
Foi aí que ele chegou a um lugar mais escuro, onde havia um monte de carvalhos frondosos tomados por musgo. O lugar parecia sinistro quando comparado com os carvalhos brancos onde conheceu Freesia, era como se ali não existisse vida.
Ele continuou correndo entre as árvores, ouvindo os grunhidos do animal que era grande demais para conseguir correr com toda a sua velocidade naquele espaço apertado.
Joshua chegou até um lugar onde havia três carvalhos floridos no meio de todos os outros com galhos nus retorcidos. Ali era o limite, não havia como passar e o blum finalmente o alcançou.
O animal parou, percebendo que o meio-dríade estava encurralado. Ele rosnou e abriu a boca lentamente, evidenciando suas presas enormes. Aproximou-se, cheirando o ar, parecendo satisfeito, pois o sangue das ninfas era o mais saboroso. A fera saltou, derrubando o loiro no chão.
Joshua gritou.
Freesia ouviu o grito ao longe, vindo do território dos carvalhos reais, os filhos de Cibele. Viu Kmry disparar naquela direção e montou em Noktu, que correu também, acompanhando a kaemera branca.
Ao chegar, a cena era espantosa.
Joshua estava no chão, com os braços estendidos, tentando impedir que outro blum abocanhasse sua cabeça. Uma garra da fera perfurava seu ombro direito, porém, o que mais impressionou a dríade foi que, antes que os kaemeras pudessem fazer qualquer coisa, o loiro gritou de novo e, dessa vez, uma luz roxa surgiu de suas mãos e os olhos dele brilharam, então um emaranhado de raízes saiu da terra e do carvalho carregado de flores roxas, agarrando o blum furioso e o empalando.
O sangue do animal respingou no rosto de Joshua, que olhou para as suas próprias mãos, assustado.
Os olhos cor-de-avelã do rapaz encontraram os violetas profundos da dríade e ele indagou:
— O que está acontecendo comigo?
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