11. A CAÇADA DE LUA NOVA
Freesia teve os pensamentos interrompidos quando Sifor falou de fora da cortina:
— Líder Guerreiro, as caçadoras estão agrupadas no pátio central.
O rei tocou os ombros da filha.
— Está na hora, querida. Você irá assumir a posição da Grande-Mãe nas caçadas, deve liderar.
— Nem acredito que a caçada do mês passado foi a minha última — suspirou a rainha. — Sentirei falta disso.
— Eu sei que sim, Vctrya — disse o rei, chamando a esposa por seu nome verdadeiro, que significava “vitoriosa”. — Mas agora é hora da princesa mostrar que merece a coroa de que é herdeira. Você validou seu legado em caçadas nos últimos cem anos, chegou o momento de deixar essa honra para a nossa filha.
Vctrya beijou a testa de Freesia antes de tirar um colar de seu próprio pescoço e colocar no dela.
— Este é o medalhão do nosso clã. Minha mãe o deu a mim quando assumi o comando das caçadas de Lua Nova e agora eu o dou a você.
Freesia admirou por um instante o medalhão decorado com o desenho de um carvalho feito com linhas brancas e um sol branco destacado com bordas vermelhas.
— É uma honra carregá-lo, mãe. Prometo fazer jus ao legado de nosso clã.
— Eu sei que vai. Agora está na hora.
Freesia assentiu. A rainha saiu na frente, seguida pelo rei e a princesa. No pátio central estavam reunidas as seiscentas melhores caçadoras dos clãs da floresta. Cada clã representado tinha suas próprias armas, o arco era a arma de Freesia porque as dríades dos carvalhos brancos eram as melhores arqueiras.
A Grande-Mãe fez um breve discurso sobre a importância das caçadas para a tribo e quão perigosa era a fera que enfrentariam, depois apresentou a herdeira como a nova líder das caçadas de lua nova. Freesia tomou a frente e ordenou que os clãs se mesclassem em equipes de quatro ninfas com habilidades diferentes.
— As fêmeas prenhas ou que tiveram crias recentes não nos servem, pois precisam proteger os filhotes e garantir que o bando continue existindo. Os alvos são seis machos e seis fêmeas adultos. Comigo irão Myrne, Orked e Urant, sairemos assim que a lua completar o ciclo. Agrupem-se na saída norte.
As caçadoras fizeram um gesto colocando a mão esquerda fechada em punho na testa e depois no coração. Era o símbolo da obediência às ordens da líder.
Todas correram até o limite da tribo no lado norte, nos domínios das melíades, e esperaram em completo silêncio. Quando a lua ficou totalmente escura, Freesia fez o sinal que deu início à caçada.
As ninfas da floresta se dividiram em quatro grandes grupos para cercarem o bando de Fnekrs. O primeiro grupo se locomovia pelas árvores, atravessando-as, por isso ficavam invisíveis. Essas ficariam posicionadas ao oeste para impedir fugas.
O segundo grupo corria livremente. Elas ficariam ao lado leste, onde as fêmeas protegiam os filhotes.
O terceiro grupo se movia pelo subterrâneo, viajando pelas raízes que se conectavam por todo o bosque. Ficariam ao lado sul, entre o bando e sua fonte de água.
O último grupo ia pelas copas das árvores. Elas se mantinham nas alturas no início, alvejando as feras com flechas, porém, não dava para matar um Fnekr a flechadas, as caçadoras precisavam se aproximar o bastante para cortarem o pescoço do animal.
Era aí que entravam as habilidades das ninfas. Se dividiam em grupos de quatro porque os Fnekrs eram muito difíceis de matar. Às vezes se reuniam dois ou três grupos para tentar abater um só desses animais e cada integrante tinha suas próprias funções.
No grupo de Freesia estava Orked, uma melíade que fazia sair da terra cipós e raízes para segurar a fera; Myrne, uma antusa com o poder de tranquilizar a presa; Urant, uma hemadríade que podia projetar de si um tipo de holograma realista de qualquer animal, que tinha a força e as características do animal que estava sendo projetado. Freesia era a arqueira que nunca errava, habilidosa com lâminas, veloz e que tinha o dom da cura, por isso era quem abatia a vítima.
Em teoria, deveria ser um trabalho simples abater doze Fnekrs em um bando de cento e cinquenta, entretanto, esses animais não morriam sem lutar ou tentar proteger os de sua espécie, por isso, enquanto dois grupos tentavam derrubar uma presa, outros grupos precisavam impedir que as irmãs da tribo fossem mortas pelas feras que tentavam atacá-las.
Cada ninfa tinha uma função e não era permitido desistir no meio da caçada, a não ser alguém que estivesse gravemente ferido. Se qualquer uma abandonasse sua função, isso poderia comprometer toda a caçada e causar a morte de outras ninfas, era considerado traição. A caçadora que testemunhasse a deserção deveria derramar o sangue da caça em uma taça de pedra e dar à traidora perante toda a tribo.
Dependendo da gravidade das consequências, havia três punições possíveis: banimento para outra tribo, onde seria uma serva; exílio para o mundo humano, nesse caso, ela seria marcada e rejeitada em todas as tribos do mundo; a última punição era a morte, o extermínio total de qualquer lembrança da traidora.
As ninfas de Grradhy eram muito leais e estavam entre as melhores caçadoras do mundo, perdendo apenas para as Amazonas, por isso eram muito raros os casos de deserção. Em milênios de histórias, só havia o registro de três traidoras em Grradhy, duas delas condenadas à morte.
Freesia saltava de uma árvore a outra, segurando nos galhos quase sem fazer barulho. Era possível ouvir um leve chacoalhar das folhas por onde ela e outras ninfas passavam, nada mais.
Depois de mais ou menos uma hora, a princesa disse às suas companheiras que fossem na frente, pois ela iria verificar de cima a posição dos outros grupos. Ninguém questionou, já estavam acostumadas a vê-la se separar das outras e chegar antes no local, mas ninguém sabia como. Algumas diziam que ela voava em um ser alado, porém, nunca o viram para saber o que era.
A dríade parou em um salgueiro e esperou que as outras se afastassem para poder chamar seu kaemera. Esses bichos eram muito raros, por isso a maioria da tribo nunca tinha visto um, apenas sabiam que podiam assumir qualquer forma, apesar de não poderem mudar a própria cor, e que viviam por cerca de setecentos anos.
Kaemeras não eram bichos de estimação nem podiam ser domesticados, possuíam inteligência incomum e jamais eram subjugados por outra espécie, no entanto, alguns deles escolhiam companheiros feéricos para proteger e cuidar.
Desde as civilizações mais antigas, vez ou outra apareciam evidências de kaemeras ao lado de ninfas, elfos e fadas. A última conhecida era aquática e nasceu em um lago que margeava uma cidade humana.
Um dia, uma náiade curiosa resolveu sair sozinha para conhecer outros lagos e acabou se perdendo. Ficou dias desaparecida, nadou para muito longe, até que ficou presa em uma rede de pesca. Por pouco, Hellikon não foi descoberta pelos humanos, só foi salva graças a uma kaemera marrom com a forma de um réptil de pescoço longo. Ela protegeu a ninfa, mas os humanos a viram e ficaram obcecados por capturá-la.
Em pouco tempo, eles passaram a chamá-la de “o monstro do lago Ness”, ou simplesmente Nessie. Quando Hellikon tentou voltar para Grradhy, Nessie a guiou, por isso a tribo sabia da existência da kaemera, porém, poucos a viram. Ela só aparecia vez ou outra para nadar com sua ninfa.
O que ninguém sabia era que Freesia também havia sido escolhida por um kaemera macho. Tinha acabado de desabrochar quando encontrou Noktu, ainda filhote, ferido. Quando tentou ajudá-lo, ele a atacou, mas ela não desistiu até tirá-lo dentre as rochas pesadas onde estava preso. Ele a mordeu e fugiu, e ela achou que nunca mais o veria, até que em sua primeira caçada, foi salva do ataque de dois Blums por um animal de pelagem preta, com a metade traseira do corpo de um cavalo e a metade da frente de uma águia.
Desde então, eles se tornaram amigos, mas como Noktu era agressivo com outros seres que não fossem Freesia, ela só o chamava quando nenhuma ninfa estava por perto.
Deu um silvo longo, semelhante ao som de uma águia. Demorou cerca de um minuto para que uma cobra negra gigantesca subisse na árvore em que ela estava empoleirada.
— Oi, Noktu, que saudade, garoto — ela murmurou.
Ele se transformou em uma pantera antes de esfregar a cabeça no rosto dela, que riu, acariciando-o.
— Preciso de suas asas hoje, fofinho...
Ele rosnou.
— Você sabe que sempre vai ser fofo para mim.
Ele bufou antes de saltar da árvore. Quando suas patas tocaram o chão, já tinha a forma de um hipogrifo. Silenciosamente, Freesia saltou em suas costas, mal tendo tempo de segurar nas plumas negras do animal antes que ele alçasse voo.
A ninfa sentiu a brisa noturna e usufruiu da sensação de liberdade que tinha quando voava com Noktu. O kaemera voava a uma velocidade vertiginosa, mas ela confiava sua vida a ele como ele confiava nela, não existia medo entre eles.
Sobrevoaram o bosque na direção que as outras caçadoras iam. Podia ver de cima todos os grupos de caça e o território dos Fnekrs. As fêmeas prenhas e com crias estavam nas cavernas e o segundo grupo acabava de chegar para bloquear as saídas para que elas não fossem feridas.
A visão das caçadoras era incrível, todas enxergavam muito bem à noite, porém, quando Freesia estava com Noktu, era como se pudesse ver tudo pelos olhos de águia dele. Enxergava muitos quilômetros à frente, até o que estava oculto pelas copas das árvores.
Noktu pairou no ar. Se qualquer ninfa olhasse para cima, veria a parte de baixo dele, contudo, a tribo de Grradhy não tinha predadores voadores, então não costumava procurar perigo no céu.
Freesia observou os grupos assumindo suas posições e puxou seu arco e uma flecha do alforje, procurando a maior fêmea do bando. Os machos tinham manchas vermelhas no focinho, enquanto as fêmeas tinham a pelagem em tons claros.
Esperou as outras caçadoras se posicionarem. O início da caçada era sempre mais calmo, pois os Fnekrs ainda não tinham percebido a presença das caçadoras. Depois que as primeiras flechas encontravam seus alvos, virava um pandemônio ao som de rugidos ferozes.
Ela viu a maior fêmea e agiu rapidamente. Em um terço de segundo, sua flecha foi ao encontro do olho esquerdo da fera, que rugiu. Puxou outra flecha e atirou em uma das seis patas da criatura, cujas garras passaram bem perto do dorso de uma ninfa do grupo de Hyre. A terceira flecha foi no peito, só então o grupo de Freesia a cercou.
Urant projetou um Carg com sua carapaça dura para atrair a atenção do animal, que atacou a projeção com as garras do tamanho de facas. Myrne fazia um movimento com as mãos, de onde era possível notar uma energia amarela em forma de pólen que lentamente se impregnava no corpo do Fnekr.
Outra flecha voou do arco de Freesia, dessa vez no traseiro do bicho, que tentava dar uma chicotada em Myrne com sua calda. Rapidamente, Orked conjurou raízes e cipós retorcidos para prender o animal, mesmo assim, por ser grande como um elefante e estar furiosa, só o grupo de Freesia não bastava para derrubá-la.
O grupo de Hyre resolveu cercar a presa, o que a deixou mais feroz ainda. Freesia sobrevoou mais baixo, por outro ângulo, procurando um ponto fraco, no entanto, a fêmea atacava de cabeça abaixada, protegendo o pescoço e usando os quatro chifres afiadíssimos para tentar empalar as caçadoras.
Em dado momento, uma melíade do grupo de Hyre tentou se aproximar para dar-lhe uma machadada no pescoço, se aproveitando da projeção que Urant usava, só que o Fnekr já percebera que aquilo não era um Carg de verdade e viu a ninfa. Seu ataque foi tão veloz que pegou a todas de surpresa. Em um segundo a criatura atacava a projeção e no outro estava empalando a melíade de pele verde, sacudindo-a em seu chifre enquanto ela gritava.
A caçada estava brutal, as arqueiras empoleiradas nas árvores atiravam freneticamente, tentando conter os ataques dos outros Fnekrs às ninfas sem precisar feri-los. O objetivo era matar doze, não podiam pôr em risco o resto do bando, mesmo que estivessem atacando as caçadoras que cercavam as presas.
Freesia atirou uma última vez em outra pata da criatura que seu grupo cercava antes de ficar em pé nas costas de Noktu e saltar.
— Até mais, fofinho!
Ele esperou a ninfa segurar em um galho, fazer uma pirueta e pousar no chão para poder se transformar em um gavião e voar até outra árvore, de onde a observou, pronto para acudi-la caso fosse preciso.
Freesia correu por entre os Fnekrs furiosos, desviando-se de suas garras e chifres. Era tão veloz que virava um borrão no meio do caos. Quando estava a seis metros de distância, a fera conseguiu romper as raízes de Orked que a prendiam. Antes que pudesse avisar, outra ninfa do grupo de Hyre foi arremessada por uma chicotada da criatura, indo bater com força contra uma árvore.
Não deu tempo de Orked conjurar mais raízes, levou uma patada, sentiu as garras que rasgaram seu braço e gritou pela dor. Hyre conseguiu esfaquear o tronco da presa, quase sendo cortada por suas garras no processo.
Urant projetou um touro, que deu uma chifrada no dorso da criatura, deixando-a atordoada. Foi o suficiente para que Freesia saltasse em suas costas e se prendesse entre dois dos seus chifres para tentar tirar dali a ninfa empalada.
— Isso vai doer, mas você precisa sair daí para ser curada! — gritou.
A fera abaixo dela rugia e se agitava, tentando derrubar a caçadora enquanto as outras faziam de tudo para imobilizá-la. Freesia estava suada pelo esforço de se segurar entre os chifres para não ser empalada e ainda tentar salvar a outra ninfa. Segurou-a pelos braços e a puxou de uma só vez, ouvindo seu grito agudo.
Urant projetou um leão que aparou o corpo da ninfa antes que caísse no chão e a afastou da fera enlouquecida. Orked, mesmo ferida, conjurou mais uma vez as raízes para prender a criatura enquanto Myrne e outra antusa tentavam deixá-la dopada. Hyre tentou atacar o pescoço e falhou, sendo lançada para trás por uma cabeçada. Por sorte ela não levou uma mordida que a partiria ao meio.
Freesia, ainda entre os chifres da criatura, puxou um longo punhal da bainha. Segurou no chifre esquerdo da frente e desprendeu suas pernas dos que ficavam mais atrás, dando impulso para balançar ao lado do animal e dar-lhe uma punhalada perfeita de baixo para cima no pescoço.
A fêmea gigante soltou um gemido e perdeu o equilíbrio, desabando no solo, mas ainda não era o fim. Enquanto as outras usavam seus poderes para prendê-la, Freesia arrancou o punhal, vendo o sangue jorrar a seus pés, e entoou as palavras sagradas que todas as caçadoras deviam falar às presas antes de matá-las:
— Você cumpriu seu destino. Agora fará parte da floresta como a floresta faz parte de você. Esse é o ciclo da vida.
Ela encarou o olho não ferido da criatura antes de apunhalar novamente seu pescoço e arrastar a lâmina com força para o lado, matando-a. Sua presa estava vencida, mas as outras ninfas ainda estavam cansando os Fnekrs e abatendo as outras presas.
Freesia deixou sua equipe tirar a fêmea morta do meio do bando e foi até a melíade que tirou do chifre da fera. Estava quase morta, sangrando muito. A princesa nunca usou seu poder de cura na frente da tribo, mas agora o que importava era salvar a vida de uma irmã.
Aproximou as duas mãos do tronco da outra, sentindo o quão fraca estava. Deixou o poder fluir por seu corpo, concentrando-se nas palmas das mãos, e uma luz vermelha surgiu. Fechou os olhos enquanto sentia o sangue parar de se derramar, depois a carne lacerada começou a se reconstituir aos poucos. Em alguns minutos, o ferimento estava fechado e a dor desapareceu, a ninfa só estava esgotada pela perda de sangue.
A dríade levantou diante do olhar surpreso de algumas outras caçadoras que também haviam abatido suas presas. Ela fingiu não notar e foi até Orked para curar seu braço rasgado.
Os sons de luta foram cessando aos poucos e as ninfas que tinham os poderes de acalmar e dopar as feras cansadas fizeram sua parte enquanto outras que tinham dons de força ou manipulação tiravam os doze Fnekrs abatidos do território do bando. As demais caçadoras ajudaram as que estavam feridas e voltaram para o território da tribo pelos mesmos caminhos que vieram.
Freesia liderou as quatrocentas caçadoras que levavam as caças. As últimas que deixaram o local foram as que precisaram desbloquear as entradas das cavernas para libertar as mães e os filhotes antes de também voltar.
Os primeiros raios de sol banhavam o bosque quando as caçadoras finalmente chegaram ao centro da tribo sob os vivas de alegria das mais de duas mil ninfas que não participaram da caçada.
Mais uma vez, seu domínio sobre a natureza foi confirmado.
Espero que tenham gostado. E para quem tentou imaginar o Noktu, aqui vai um aesthetic dele. Beijos no coração ❤️
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