17
A funcionária da cafeteria é gentil o suficiente para me oferecer um copo de água e perguntar se está tudo bem. Eu não digo o que aconteceu, não saberia por onde começar, mas aceito a oferta e me sento lá dentro, deixando as lágrimas estancarem naturalmente.
Só queria que Thomas estivesse aqui. Ele me abraçaria e me faria sentir segura, e ele, ao contrário de mim, saberia o que falar e como agir. É por isso que pego o celular e ligo para ele. Foi bobagem minha não ter mencionado o aparecimento do Pedro antes. A gente sempre contou tudo um pro outro. Mais que namorados, sempre fomos melhores amigos.
Enquanto ouço o ressoar das chamadas, estou decidida a contar toda a verdade, sem esconder nenhum pedaço: o meu ex, o meu chefe, a minha demissão, tudo isso conectado de alguma forma. Chama, chama, chama, mas ele não atende. Já é tarde em Nova Iorque, talvez Tom esteja dormindo. Eu tento outra vez, mas ele continua sem atender. Não vou insistir mais.
Eu quero o Thomas, preciso dele, mas, na sua ausência, só existe uma pessoa nessa cidade em quem eu sinto que posso confiar. Ligo para Sarah, e ela atende imediatamente, afinal, vive com o celular à mão.
Não preciso falar nada. Minha amiga escuta o choro e logo sabe que eu preciso de ajuda.
— Onde você está?
— Na Audrey Hepburn — respondo.
— O quê?
— Na estrela — explico, fungando. — Estou na estrela da Audrey Hepburn. Eu nem vi pra que lado fica. Tem uma Starbucks em frente.
— Tá, me espera aí.
Menos de 30 minutos depois, ela aparece na porta da cafeteria. Seria impossível chegar tão rápido de transporte público, então imagino que tenha vindo de táxi, que é o mesmo meio de transporte que usamos para voltar para casa.
No banco de trás, eu me aninho em seu ombro e Sarah me abraça.
— O que aconteceu?
Não sei por onde começar, então começo pelo final:
— Dei uma bofetada na cara do meu chefe.
— Você o quê!? — Ela desafina, meio chocada, meio que dando risada.
Talvez um dia eu vá contar a história e achar graça, mas no momento é tudo tão constrangedor, e humilhante, e obsceno, e traumático.
— Foi depois que ele deu um tapa na minha bunda — explico. — E fez algumas insinuações sexuais bem explícitas.
— O desgraçado te assediou? — Agora o seu tom muda completamente, qualquer rastro de graça é substituído por indignação.
Eu não tinha pensado nessa palavra, para ser sincera. Não foi a primeira vez que um homem tentou me tocar contra a minha vontade. Eu tinha apenas quinze anos quando Ricky Malost praticamente roubou o meu BV. O patriarcado condiciona a gente a normalizar alguns comportamentos, mas não tem nada de normal no que aconteceu comigo essa noite.
— É — concordo. — Acho que foi exatamente o que ele fez.
— Mas que filho de um canalha! A gente devia expor esse desgraçado! Acabar com a carreira dele!
Eu chacoalho os ombros. Sarah tem sangue quente, coloca os pés pelas mãos. Eu posso até ser impulsiva às vezes, mas nesse caso hesito. Não sei se quero levar nada disso adiante, acho que só quero esquecer do que aconteceu.
— A gente pode beber algo bem forte e não falar mais desse assunto?
— Se você quer desse jeito — ela concorda, mas não demora mais que dois minutos até a língua destravar. —Sendo sincera, fico com tanta raiva porque eu passei por umas merdas também.
— O que aconteceu? — Eu raspo meu esmalte com a unha, me sentindo um pouco alheia à realidade.
— Foi no ensino médio, um garoto chamado Markus. Eu era meio que virgem antes dele, mas quando você pega geral e ganha a fama de "vagabunda", os homens anulam seu direito de dizer "não".
Eu não pergunto se foi estupro, não preciso. Apenas a abraço e o silêncio atípico deixa subentendido que esse é um lugar seguro. O mundo é uma droga, somos mulheres, nascemos num barco que já estava furado, mas não vamos parar de remar. Se juntarmos esforços, ainda há esperança de salvar esse Titanic.
— E que fim ele teve? — pergunto.
— Bom, não teve. Ele era de uma família influente, e eu só era a piranha da sala, então quem acreditaria?
— Você não contou pra ninguém?
— Não precisei. Ele fez isso sozinho. Espalhou pro colégio todo e tinham uns vídeos, eu estava bêbada pra cacete na noite do baile, acho que eu usei alguma coisa, mas não lembro direito. — Sarah não quer demonstrar fragilidade, mas percebo que os olhos estão lacrimejados. Isso ainda mexe muito com ela. — Todo mundo viu. Todo mundo soube. Ninguém fez nada a respeito. Na verdade, fizeram o contrário: glorificaram o cara e me colocaram como a puta da história. Acho que ele está estudando numa universidade em Dallas agora.
— Isso é uma merda.
— A pior parte é que ele foi exaltado no Ensino Médio por fazer uma garota bêbada tirar as roupas, então o que você acha que ele está fazendo nas festas da faculdade?
Eu sugo o interior das bochechas, sendo atingida por essa verdade: Sarah não foi a única, como eu não devo ter sido. É um ciclo que não termina nunca, a menos que alguém o faça parar.
— Na época, eu deixei pra lá. Só queria esquecer do que aconteceu. Nada que eu fizesse ou dissesse ia reverter o que ele fez comigo, mas daí eu fico pensando que eu podia ter impedido que outras garotas fossem vitimas dele, e só me acho covarde.
Eu seguro sua mão e aperto com um pouquinho de força.
— Não. Você é corajosa pra caramba! — Prenso os meus lábios.
— Você também é — ela responde. — E se quiser destruir a vida desse desgraçado nojento, eu vou estar do seu lado.
Deixo um riso breve escapar. Não que de repente tudo esteja bem, mas estou grata pelo apoio. Acho que Sarah é a melhor coisa que me aconteceu em Los Angeles, e amizades assim são difíceis de encontrar.
— Prometo pensar a respeito.
— Tudo bem. — Ela não insiste. — Vamos deixar isso para lá.
O táxi estaciona em frente ao alojamento, e minha amiga tira o dinheiro do bolso para pagar. Ela desce primeiro, puxando minha mão para ir logo atrás. O gramado da frente está escuro e pouco movimentado a esse horário. Ricky Malost está descendo as escadas enquanto subimos, e ele lança um sorriso intencionado para Sarah.
— Esse vizinho é meio gato, eu faria — ela comenta.
Faço uma careta.
— Sabonete sintético do pior tipo — aviso, e então me dou conta de que ele é mais um abusador que só está aqui porque a Yumi Sakai não quis prestar queixa, preferiu esquecer.
Mas até quando vamos ficar empurrando abusos para debaixo do tapete? Talvez eu realmente faça algo a respeito, mas não hoje.
—Essa noite eu só quero beber.
E é o que fazemos.
Eu vivo pelos momentos de feminismo da Julie 🗣
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