000. Você é um... herói?
SEMPRE OUVI DIZER QUE OS OLHOS NÃO MENTEM. São janelas para a alma, um reflexo involuntário do que se passa dentro de nós. Eles traem nossas palavras, expõem nossas mentiras e revelam aquilo que tentamos esconder até de nós mesmos.
O medo se esconde nas íris dilatadas. A tristeza pesa nas pálpebras cansadas. O arrependimento brilha em olhares que desviam. Você pode sorrir, manter a voz firme, vestir a máscara que quiser — mas seus olhos… eles sempre contarão a verdade.
No fim, a verdade nunca está no que dizemos, e sim no que somos incapazes de ocultar.
E os meus estavam cansados de mentir.
Aceitar a missão de me infiltrar na Liga dos Vilões parecia a escolha certa. Como herói número dois, a responsabilidade vinha antes de qualquer hesitação, antes de qualquer sentimento. Mas ninguém me disse que não era o perigo que te matava por dentro. Era a solidão.
E isso me incomodava mais do que eu gostaria de admitir.
Os heróis sempre têm para onde voltar. Mesmo nos piores momentos, há alguém esperando por eles. Mas os vilões? São aqueles que o mundo descartou sem olhar para trás. São os que aprenderam, a duras penas, que suas existências eram erros. Aberrações que precisavam ser corrigidas.
Twice era um lembrete cruel disso. Um homem que poderia ter sido qualquer coisa — poderia ter sido feliz — se não tivesse sido deixado para apodrecer na própria loucura.
Enquanto sobrevoava Fukuoka, a cidade abaixo parecia indiferente. Luzes acesas, ruas movimentadas, risadas soltas no ar. Para eles, a vida seguia. Para mim, e para os vilões que eu observava tão de perto, era diferente.
Nossas histórias não eram contadas com risos em noites tranquilas. Eram escritas em capítulos de perda, rejeição e cicatrizes que nunca fechavam completamente.
Meu telefone vibrou no bolso, me arrancando do torpor.
Olhei para a tela. Reconheci o número de imediato. Ele nunca ligava duas vezes do mesmo contato. A Liga não cometia erros assim.
Uma risada sem humor escapou antes mesmo de eu atender.
— E aí, herói número dois? Sentiu minha falta?
A voz de Dabi tinha aquele tom preguiçoso, quase entediado, mas carregado de algo mais — algo que corroía, como ferrugem sobre metal.
Soltei um suspiro, pousando no topo de um prédio.
— Ah, com certeza. Mal consegui dormir sem ouvir sua voz irritante — retruquei, carregado de ironia. — Mas e você, Dabi? Ligou para ouvir minha voz ou tem um motivo de verdade? Porque, olha, se eu ganhasse dinheiro pra ouvir vilão choramingando, já teria me aposentado.
Do outro lado, ouvi uma risada curta, seca. Aquele tipo de riso que não tem nada de verdadeiro. Afinal, Dabi nunca ria de verdade.
— Engraçadinho — murmurou. — Se eu fosse você, viria hoje
A ameaça pairou no ar, fria e calculada. Como se ele estivesse avaliando se valia a pena acrescentar algo mais.
— E se eu disser que estou ocupado?
O silêncio durou um segundo a mais do que deveria.
— Então eu te busco.
Dabi nunca desperdiçava palavras quando queria deixar uma ameaça clara.
Passei a língua pelos dentes, ponderando.
— Aí, sabia que você gostava de mim.
Mas a ligação já tinha sido encerrada antes que eu pudesse terminar a frase.
Típico.
Guardei o telefone e soltei um longo suspiro.
Seria uma noite longa.
Preocupação.
Dizem que a mente de um herói precisa ser como o céu acima das nuvens — clara, sem hesitação, sempre enxergando além. Mas ali, parado em frente àquela porta vermelha, minha mente era um oceano revolto, e cada pensamento parecia uma onda me puxando para o fundo.
A maçaneta à minha frente parecia fria, mesmo sem tocá-la. Somente um pedaço de madeira me separava dos vilões mais perigosos do Japão. A Liga dos Vilões. Homens e mulheres cujos nomes faziam até o mais forte dos heróis temer.
Meu coração batia em um ritmo controlado, treinado para não trair emoções. Mas dentro de mim, uma tempestade rugia.
Algo estava errado.
Dabi havia me ligado mais cedo, sua voz rouca e indiferente ecoando pelo telefone como o estalo de uma brasa queimando madeira. Ele raramente falava comigo a menos que fosse necessário. Mas, naquele dia, sua mensagem foi clara:
“Se eu fosse você, viria hoje.”
As palavras dançavam na minha cabeça como um enigma. Ele havia cometido um erro? Alguém descobriu minha verdadeira lealdade? Ou será que estavam apenas testando minha fidelidade?
A incerteza era um veneno lento.
Meus olhos pousaram novamente na porta. O vermelho vibrante parecia pulsar sob a luz fraca do corredor, como se fosse um aviso. Entre e não saia o mesmo.
Não havia mais tempo para hesitar.
Respirei fundo e toquei a maçaneta.
E foi nesse exato momento que a porta se abriu sozinha.
O ar estagnado do outro lado me envolveu como um abraço sufocante. O cheiro de poeira velha e metal oxidado se misturava a algo mais sutil, algo ferroso. Sangue.
E então, o vi.
Tomura Shigaraki.
Parado no meio da escuridão, somente parcialmente iluminado pela luz fraca que vinha do corredor. Seu rosto era uma máscara de algo indescritível — não era raiva, nem desdém. Era algo pior. Observação.
Seus olhos rubros sondavam cada detalhe do meu rosto, buscando algo. Talvez um piscar de olhos hesitante, um gesto sutil que denunciasse medo. Um erro que eu jamais poderia cometer.
E não cometeria.
Senti a tensão nos ombros, mas a disfarcei com um sorriso fácil e um tom de voz despreocupado.
— E aí, Shigaraki? Toga? Twice? Spinner? Dabi? Como é que vocês estão? Nossa, tá bem cheio aqui hoje, hein?
A informalidade foi proposital. Heróis não brincam com vilões. Mas espiões fazem isso o tempo todo.
Houve um breve silêncio antes que Shigaraki se movesse. Seus passos eram quase inaudíveis no chão gasto, mas cada um parecia pesar na minha consciência.
Ele estava pensando.
O líder da Liga raramente falava sem propósito. Suas palavras eram lâminas embainhadas, sempre afiadas, esperando o momento certo para cortar.
— Hawks… o famoso herói número dois.
Sorri, relaxando os ombros como se estivéssemos em uma conversa trivial.
— Eu mesmo. — indaguei, apontando para mim de maneira orgulhosa.
Meus olhos percorreram o ambiente enquanto eu fingia desinteresse. A escuridão ali dentro era espessa, como se tentasse engolir qualquer fagulha de luz. As sombras se estendiam pelas paredes descascadas, criando silhuetas distorcidas.
Um lugar sem janelas. Sem saídas fáceis.
— Então, o Fumacinha me ligou e disse pra eu vir hoje. Aconteceu algo?
Minha pergunta soou leve, mas carregava um peso oculto.
Shigaraki deslizou os dedos pela mesa de madeira rachada, como se estivesse digerindo minhas palavras. Era um hábito dele — tocar as coisas, sentir sua textura, decidir se queria destruí-las ou não.
Eu tinha certeza de que, em sua mente, ele já havia me reduzido a pó mais de uma vez.
Mas, antes que ele pudesse responder, a porta se abriu de novo.
E então, eu a vi.
Uma garota.
Não era o tipo de pessoa que eu esperava encontrar ali.
Seus cabelos eram longos e roxos, mas não um roxo comum. Era uma tonalidade profunda, reminiscente do céu antes de uma tempestade violenta. O contraste com sua pele pálida era quase irreal, como uma pintura fora de lugar naquele ambiente hostil.
Mas não era isso que chamou minha atenção.
Seus olhos.
Brilhavam.
Não como os olhos de uma pessoa normal.
O brilho em suas íris não era reflexo da luz, mas algo próprio, interno. Um arco-íris pulsando sob a superfície das pupilas. Um efeito belo e assustador ao mesmo tempo.
Mas o que realmente me prendeu não foi sua aparência. Foi a emoção cravada em seu olhar.
Medo.
Ela respirava de forma entrecortada, os ombros tremendo levemente. Mas não era um medo simples, como o de quem teme a morte. Era um medo mais profundo, enraizado. O tipo de medo que só cresce quando alguém já perdeu tudo antes.
— Shigaraki, temos problemas. — Sua voz saiu ofegante.
Toga foi a primeira a reagir.
Seu sorriso surgiu como uma lâmina refletindo a luz — rápido, afiado, errático.
— Oi, rainbowzinha. — O tom carregava uma doçura doentia. — Você fica tão fofa quando está nervosa.
O brilho insano em seus olhos aumentou. Era como observar um gato brincando com um passarinho ferido.
— Posso chupar seu sangue?
Ela inclinou a cabeça, oscilando para frente como se estivesse prestes a atacar.
Antes que a situação piorasse, Sppiner, Dabi e Twice — que puxará a Himiko pela mãos — se levantaram, suas expressões mudando. Havia um plano em andamento.
Shigaraki não disse nada. Apenas observou a garota com um olhar impassível. Então, se virou para mim.
— Se quer provar sua lealdade, cuide dela.
Suas palavras não eram um pedido.
— Não fale com ela. Não olhe para ela. Somente garanta que ela ficará segura.
A ameaça implícita estava ali, pairando como uma lâmina prestes a cair.
E então, ele desapareceu no corredor escuro, junto com o restante da Liga.
E então, restará apenas eu e a menina.
A garota — Rainbow, como Toga a chamará segundos atrás — caminhou até a parede e acendeu a luz.
E foi então que vi os curativos.
Seus braços e pernas estavam enfaixados, as bordas das bandagens manchadas de sangue ressecado.
Ela tropeçou.
O movimento foi tão brusco que, antes que eu percebesse, já estava avançando para segurá-la.
Nossos olhos se encontraram.
E, pela primeira vez, vi algo diferente ali.
Expectativa.
Como se, por um momento, ela estivesse segurando o fôlego. Como se minha resposta pudesse mudar algo dentro dela.
— Você é um… herói? — Sua voz saiu hesitante, carregada de algo delicado. Esperança.
Meus instintos gritavam para não responder.
Mas aqueles olhos...
— Sim, eu sou Hawks.
Um sorriso leve surgiu nos meus lábios. O mesmo sorriso que eu sempre usava para esconder a verdade.
— O herói número dois.
O brilho nos olhos dela mudou.
— Eu sou a Rainbow.
Sorri de canto. Fazia sentido.
— É um prazer conhecê-la, Rainbow.
Mas antes que ela pudesse responder, Shigaraki entrou na sala.
Seus passos eram como uma lâmina cortando o silêncio, suaves, mas letais. A luz fraca do ambiente fazia sua silhueta parecer ainda mais esquelética, como uma sombra deformada que engolia tudo ao seu redor. Ele não falou nada, apenas olhou para Rainbow, e, naquele instante, percebi — ela já sabia o que viria a seguir.
O brilho nos olhos dela se apagou, como uma estrela morrendo no vasto escuro do universo. Seus ombros tremeram por um segundo, um gesto quase imperceptível, mas que gritou dentro de mim. Aquele não era o medo de alguém que teme a morte. Era o medo de quem já morreu antes e foi obrigado a continuar respirando.
— Vamos. — A voz de Shigaraki era cortante, impessoal, sem espaço para objeção.
Rainbow não hesitou. Seu corpo se moveu automaticamente, como um fantoche puxado por fios invisíveis. Mas, por um instante, antes de desaparecer pelo corredor escuro, ela olhou para trás.
Olhou para mim.
Não havia súplica em seus olhos. Nem esperança. Apenas uma pergunta silenciosa, uma que queimava como brasas vivas em sua expressão.
“Você vai me deixar ir?”
O silêncio pesou sobre mim como uma corrente ao redor do pescoço. Eu deveria ignorar. Deveria fingir que não vi. Mas algo dentro de mim se retorceu, como se uma engrenagem tivesse sido girada em um sentido que não poderia ser desfeito.
Quando a escuridão a engoliu, a sensação era de que um pedaço de mim havia ido junto.
A porta rangeu ao se fechar, um som oco que ecoou pela sala vazia.
A Liga dos Vilões tinha muitos segredos. Mas, naquele momento, eu soube que Rainbow era um dos mais perigosos.
E, de alguma forma, ela também era meu problema agora.
Meus dedos tamborilaram contra a coxa, inquietos. Eu não deveria me importar. Não deveria me questionar. Mas os olhos dela ainda estavam cravados na minha mente, como um segredo que se recusava a ser esquecido.
E a sensação de que nos encontraríamos novamente se enraizou fundo.
Talvez mais cedo do que eu esperava.
05/03/2025.
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