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Continuo meus afazeres. É difícil tirar poeira sob iluminação fraca que não faz mais por mim do que velas fariam. Pelo menos, eu não vejo detalhes do quão medonhas são as centenas de esculturas ocupando o terceiro andar. A maioria parece tipos de totem de madeira, mais ou menos do meu tamanho.
Antes de seguir para o segundo andar, já me sinto cansada. As paredes são cobertas por pinturas abstratas do teto ao chão, algumas outras recostadas, algumas telas em branco. Há um cavalete e pincéis somente para acumular poeira. Uso aromatizantes após as limpezas, para abafar o fedor das tintas que nunca evapora, embora não seja forte.
O ateliê permanece intocado, a não ser pelo quarto da bagunça. Eu batizei assim, porque é lá onde se guarda tudo o que não é mais utilizado ou não combina com a casa. Vez ou outra limpo esse quarto para evitar que se torne moradia de ratos. Mas... está trancado? Minha testa se franze depois que giro a maçaneta e não consigo abrir.
Por que Sr. Samuel trancaria essa porta?...
Passos sutis subindo as escadas logo me distraem de meus pensamentos. Não há ninguém quando olho para atrás. Silêncio. Vou até a escada, olho para cima e não vejo ninguém... Talvez o vulto tenha sido só uma sensação.
Não exatamente dou de ombros, mas retorno para cozinha, no meu andar favorito: o primeiro. Local mais iluminado, mais normal, disposto da cozinha e da sala de jantar. Mais perto da saída, é onde passo a maior parte do tempo sozinha. Sr. Samuel quase nunca vem enquanto estou aqui.
Embora a chave que me foi concedida seja mestra, não a recolho da bancada para abrir a porta trancada no segundo andar, e sim, para abrir a porta da rua.
Não é função minha cuidar do jardim, mas a afeição que tenho pelas belas flores na fachada não me permite deixa-las sem uma regada diária nesse tempo seco. Além disso, por algum motivo, trata-las me acalma. Gasto um momento com elas e retorno para dentro.
Abro a geladeira em busca de água, porém acabo me rendendo aos encantos da caixinha de suco de morango. Dou um gole que quase ocasiona refluxo imediato de tão amargo. É estranho que esteja estragado, já que eu o trouxe de manhã. Seja como for, despejo o resto na pia e noto que o corante está muito forte.
O relógio parece não me favorecer. Resta algum tempo até a última refeição de Sr. Aquira e o término da minha jornada de hoje. Entediada, resolvo ligar para meu irmão.
"E aí, babaca?"
Apesar de revirar os olhos com o cumprimento que recebo ao ser atendida, também sorrio.
— E aí, babaca, como está minha princesinha?
"Acordadíssima."
Escuto balbucios da bebê ao fundo, devia estar no colo. Enrugo o nariz, já imaginando como tinha sido o dia para ele.
— Você deve estar cansado.
"Relaxa. Eu entendo minha sobrinha. O tio Nico é tão legal que ela só vê vantagem em dormir quando está com você."
— Vai à merda, Nicolas — minha risada entre as palavras tira a intensidade delas.
"Vou mesmo, tá quase na minha hora do trabalho... Vou me arrumar e daqui a pouco, passo aí pra te pegar."
— Nossos horários não batem nadinha... Por um lado, é bom porque a Iúna sempre tem companhia familiar, mas sinto a sua falta...
"E quer que eu dê um jeito de trocar minha escala, pra folgar num dia coincidente com o seu, pra fazermos alguma coisa de gêmeos como fazíamos quando éramos vagabundos?"
— Como você adivinhou? — perguntei sarcástica.
"Coisa de gêmeos."
Meneio a cabeça com alguma satisfação. Meu irmão é uma figura, uma ótima pessoa e me ajuda muito de bom grado.
"Vou ver o que posso fazer."
Um barulho vindo da sala de jantar me desfoca atenção da voz do meu irmão. Um arrepio é resultado. Da cozinha mesmo, percebo que há algo em cima da mesa que antes eu não tinha reparado.
— Valeu... Tenho que desligar.
"Até mais, chata"
— Até mais.
Devolvo o telefone para o gancho e vou até a sala em certo receio. Não há ninguém.
E quem haveria? No dia em que o Sr. Aquira descer, estrelas cairão do céu...
Meus pensamentos param por um momento. Há um caderno aberto em cima da mesa, do qual nunca tinha visto. A aparência chama atenção, capa de couro preta com fivelas, à moda da casa. Não resisto a tentação de toma-lo em mãos. Está cheio de anotações em letra cursiva e a primeira coisa que leio me leva a hesitar:
21 de janeiro de 1994...
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