When The Darkness Comes
Dante empurrou as pesadas portas duplas na pressa da corrida. Não refinado em modos e obstinado em sua busca, fez a estrutura sólida se escancarar em um estrondo pesado e estalar seco das dobradiças resvaladas, entretanto, elas logo voltaram a sua posição original e se trancaram como se possuíssem um mecanismo que as movia de acordo com o lhes fora designado. Concluiu nesse diminuto intervalo entre irromper adentro e magicamente ser convidado a permanecer ali, que não seria tão simples quanto deduziu que fosse. A breve cacofonia ressoou pelo amplo e silencioso espaço de maneira que diferenciava cada ruído com audição apurada, ciente de que, se houvesse alguém oculto, captaria sem grandes inconvenientes.
Na verdade, conseguia sentir com muita clareza uma presença infiltrada pela área. Andou pelo ambiente que mais se assemelhava a um cemitério de antiguidades abandonado há décadas, quase estagnado no tempo e ausente de vida. Continuando a inspeção, a sua frente se estendia incontáveis prateleiras abarrotadas de livros de diversos tamanhos e cores ocupando cada metro quadrado e dispostos estrategicamente em círculos, em uma quantidade muito maior do que se lembrava de ter visto em qualquer outro lugar antes — e livros e ele não combinavam em nenhuma escala possível. Projetando uma fusão de cores, a iluminação miraculosa banhando a biblioteca provinha da vidraça circular acima, uma clarabóia com multifacetas.
Algumas tapeçarias decoravam as paredes com desenhos de alguma mitologia ou inspirações de contos de fadas e coleções do gênero, ornamentadas pelo que, devido ao alto grau de conservação, notou ser ouro bordado. As figuras não se conectavam e a única que reconheceu era de seu pai em uma aspecto de "cavaleiro brandindo a espada". No teto e nas partes livres tinham também imagens um pouco mais fáceis de avaliar, dentre as pessoas representadas, uma familiar lhe chamou atenção: o rosto era do quadro que vira com Diva: o nomeado Alexander.
Uma coincidência deveras estranha.
Dante parou a breve exploração do perímetro se certificando das coordenadas pelo cartão de Amara e escutando passadas rápidas por entre as estantes. Como se o intruso quisesse escapar de espectadores curiosos, embora seu deslocamento afobado denunciasse sua localização e o transformasse em um alvo fácil para ser emboscado. O caçador prosseguiu sua peregrinação catalogando mentalmente a distância entre ele e seu, não tão discreto, perseguidor imaginando se teria que ser mais direto na abordagem ou fingir alienação.
Estacionou justo onde se encontrava uma pedestal dourado que contrastava com o restante do local e, ainda assim, pertencer e compor bem o espaço. Cruzou o braço aguardando a manifestação do ser com uma postura mais acessível.
— Podemos concordar que isso não é a melhor forma de recepção. — proferiu olhando por cima do ombro com um fino sorriso.
— Lamento pelos meus modos, jovem.
Dante riu internamente. Jovem já deixou de ser há bastante tempo, mas não expôs seu pensamento espirituoso.
— É a primeira vez em muitos anos que tenho uma visita. — o senhor idoso, cuja as rugas delicadas se evidenciava por trás de seus óculos, se encaminhou até o altar adornado de símbolos em ouro. — Seja bem vindo, sou Alban, cuido dessa biblioteca. Deseja alguma coisa, rapaz?
— Dante. Esse é o meu nome. — viu os olhos de Alban se arregalar com a descoberta.
— Filho de Sparda. Eu já ouvi muitos boatos a seu respeito, não imaginaria que o encontraria. Há algo que posso fazer por você?
Dante mirou a pintura de Alexander, ignorando o comentário sobre sua reputação, e decidiu apostar suas fichas naquela informação para ver os possíveis louros.
— Quem é ele? — meneou a cabeça displicente para a obra. — Digamos que temos assuntos pendentes.
— Alexander Lockhard, o fundador desse extraordinário lugar. Se não for muito invasivo de minha parte, como você conhece Alexander?
Dante ponderou, entretanto não iria florear com uma resposta muito delicada.
— Conheço uma pessoa que tem contato com ele. O fantasma dele nesse caso. — deu de ombros como se falar aquilo em voz alta soasse ainda mais absurdo do que repetir mentalmente. De fato, alcançava um novo patamar em termos de loucura.
— Oh… Entendo. — a pausa de Alban se prolongou. — Alexander é uma pessoa emblemática. Uma pena ele ter falecido em tão tenra idade.
— Ele parece ser famoso também. — varreu toda extensão da parede com um Alexander imponente gravado.
— Certamente! — Alban concordou, ajustando o óculos sobre seu nariz. — E a pessoa que tem contato com ele, é algum médium?
— Não. É uma pessoa normal. Ou quase.
— Oh… Então... — desviou o olhar, vagando até o suporte dourado no centro do altar. — Você quer algo relacionado…
— Na verdade, eu quero saber o que ele é. — Dante cortou, se aproximando do bibliotecário. — Sem essa informação não vou conseguir ajudar a pessoa ligada a ele.
— Você parece muito interessado. — sorriu, deslizando os dedos pelas bordas do móvel. — A pessoa que vai ajudar deve ser muito importante pra você.
Dante recordou de quando levaram Diva ferida com eles, não conseguia parar de pensar nela e em seu crítico estado. A raiva ardeu em seu peito se misturando com a frustração… E uma súbita pressão no ar.
Sabia o que significava.
— Eu vou buscar o que procura, Dante. Enquanto isso, fique à vontade para ficar e descansar se necessário.
Dito isso, Alban seguiu para uma sala de difícil acesso em uma localidade particularmente oculta pelas tapeçarias. Bibliotecas não eram seu ambiente relaxante favorito, contudo, aproveitou para se recostar contra um pilar refletindo sobre sua busca — sobretudo por salvar Diva.
Não soube quanto tempo passou ali, mal notou as horas antes de entrar em estado de pseudo sono revivendo a conversa com Eryna.
Dante deslizou as mãos pelas madeixas claras para afastá-las do seu foco de visão ligeiramente entorpecido pela sonolência.
O tédio de um lugar cheio de livros drenou sua energia, pensou descontraído.
— Aqui está você, rapaz. — Alban respirou fundo. — Por um momento achei que tinha ido embora.
— Eu tenho um trabalho e um acordo pra cumprir, vovô. — se espreguiçou com o corpo vagamente mais travado pela má postura. — Não ia embora sem conseguir algo.
— Venha, tenho que te mostrar o que encontrei. — pediu e o caçador foi em seu encalço. Alban parecia quase uma entidade religiosa por seu comportamento mais formal e a roupa semelhante a um hábito cujas cores branco e cinza predominavam.
— Mais livros? Esse lugar está cheio deles. — comentou sarcasticamente ao ver os livros que Alban lhe trouxe.
— Esses são os que tenho a respeito de Alexander.
Alexander, o Grande?
Arqueou a sobrancelha ao folhear um dos livros e vislumbrar a alcunha. Não podia evitar a curiosidade se aflorando, pois tendo conhecimento da identidade do fantasma, melhores as chances de descobrir o que Diva estaria relacionada.
Alban ficou em um profundo silêncio meditativo.
— Salve a garota, rapaz.
Dante franziu o cenho, genuinamente intrigado. O velho homem o fitou com melancolia, abrindo um sorriso cúmplice.
— Você é mais imprevisível do que aparenta, vovô. — o mestiço sacou Rebellion ao constatar que seus instintos não o enganaram. — E vocês demoraram bastante para dar as caras, esperavam um convite formal?
A horda de demônios rompeu os vidros da claraboia, sedentos por sangue. Portando armas cujas lâminas destroçariam qualquer criatura viva, dispararam contra eles com um alvo já certo.
Alban tomou a frente de Dante que se surpreendeu com tal atitude.
— Você precisa ir, rapaz. — convocando um círculo mágico, o senhor se pôs a repelir as criaturas das trevas. — Proteja a criança que Alexander salvou!
— Que cena. — a risada cortou entre os ruidosos ganidos selvagens dos demônios carniceiros. — Tive sorte de chegar bem no clímax.
Ace aplaudiu sarcasticamente.
— O que você acha… — Dante imitou Ace mecanicamente quando, para seu desgosto, viu uma silhueta ao lado dele que se revelou ser Diva. — Minha cara?
— Diva! — elevou a voz para atrair sua atenção. Entretanto, ela sequer o olhava. Não somente isso, a jovem não demonstrava nenhum tipo de reação com sua presença. Desde que a conheceu, notava o quão inquieta ela ficava sempre que estavam perto e que, não importa o que fazia, sentia sua contemplação muda sobre si. Agora, parecia estranha e alheia ao mundo que a cercava.
— Ela não vai te escutar. — Alban informou. — O símbolo na testa dela significa que ela está sob controle. Brilhando em um vermelho doentio, a marca emitia uma pulsação perversa e pesada. — Vá, Dante! — Alban vociferou.
Os dedos tamborilaram pelo material lustroso do parapeito do segundo andar e a satisfação transbordava pelos contornos da face de Ace. Ele não aparentava nenhum traço de tédio genuíno tampouco deboche, era uma máscara endurecida encenada — um júbilo visceral e estranhamente enjoativo esculpido. Empoleirado ao seu lado, uma sombra imóvel, um homem com uma fisionomia vazia cujos olhos sugavam qualquer um que ousava os mirar diretamente em um breu interminável e distorcido e… Recordou onde o vira antes, o maldito que levará Diva.
Não podia se desvencilhar de Diva que não se mexia e continuava perigosamente próxima de Ace, completamente fora de qualquer noção cognitiva comum. Estando tão longe dela, a pequena e inanimada jovem, fisicamente fora de seu alcance, não conseguia realizar nenhum avanço sem pôr o pescoço dela em risco e jogá-la no limiar da imprudência traria os piores resultados.
Abandonando a conduta passiva, Ace tocou os ombros de Diva com uma intimidade muito além do que supostamente os irmãos compartilhariam, mas ficou mais óbvio que tudo se tratava de um teatro arquitetado, uma fachada que ele inventou. Cônscio de toda situação, não tinha como não desaprovar a petulância descarada do adversário. Com os lábios rentes a orelha dela, sussurrou algo que serviu como um operador de comando, pois assim que se afastou Diva saltou graciosamente para o térreo com o leve vestido branco e disparou para atacá-los.
Alban reforçou o campo de força que recebeu um dano considerável pelos golpes repetidos. A sólida estrutura que a mantinha cativa do lado oposto perdia o vigor.
— Vá! Agora você não pode fazer nada!
Não houve mais nada após isso. A luz engoliu tudo.
×××
À deriva em um mar escuro de ondas tímidas, pensamentos mais ativos brotaram do mais profundo de minha mente atordoada, remendos de memórias que se costuravam à medida que as imagens clarearam, fervilhando e induzindo a um despertar mais efetivo e abrupto. Minhas pálpebras pesavam e a ideia de forçá-las a cumprir seu propósito não agradava muito, não precisava abri-las para ter certeza da infindável escuridão que encobria tudo como um véu tenebroso e intimidante. As costas cravadas no piso de pedra polida não colaborava para nenhum nível possível de conforto, o pescoço travado e os braços incapazes de seguir comandos básicos de movimentos se mantinham rentes ao meu corpo que reclamava com a série de dores que se propagavam por cada célula em uma espécie de ressaca moral, mal sabia onde elas começavam e onde terminavam — uma distorção da minha capacidade de distinguir a realidade.
Vagando pelos domínios oníricos e flutuando sobre um campo além da consciência, vislumbrei vultos me rondando como criaturas amorfas até que se assentaram em formas mais nítidas e reconhecíveis. Tombando delicadamente a cabeça para o lado em um ângulo estranho e desconfortável, piscando em um frenesi ansioso e aturdido, observei uma menina se sentar no chão e brincar sozinha, usufruindo de seu período de entretenimento em sua própria companhia. De acordo com minha perspectiva de expectadora pouco confiável nas condições mais precárias emocional e psicologicamente, a pequena quase parecia solitária e dispersa em uma redoma que ela mesma construirá até… Ele chegar.
Alexander agachou na altura da criança e pegou um papel nas mãos, sorrindo com o desenho com traços pouco simétricos e coloridos com uma variedade de cores quentes, com a exceção dos tons de roxo nos olhos.
— O que é isso? — indicou a ilustração com o orgulho e afeto firmemente gravados em suas feições. Me apeguei a cena que se desenrolava com uma emoção peculiar aquecendo meu peito e a curiosidade avivada.
A menina ergueu ligeiramente a cabeça, porém não pude identificá-la por estar de costas para mim. Ela usava um vestido azul claro e seus cabelos curtos eram de um castanho derretido como chocolate.
— É um retrato seu. Você gostou?
Alexander assentiu e afagou a cabeça da pequena.
— Sempre me surpreende como consegue fazer coisas tão bonitas. — a voz dele soava tão carinhosa e encorajadora. — E por que está aqui sozinha?
— Não tenho com quem brincar. — ouvi um suspiro por parte da menina. — Você é o único amigo que tenho… Meu melhor amigo!
A tristeza se fez presente nos olhos púrpuras que outrora se imbuíam de ternura. O desfecho daquele delírio me tragava em uma espiral aterradora.
— Diva…?
Arquejei. Arregalando os olhos e com o coração batendo acelerado, pulsando em meus ouvidos em um badum ininterrupto. Todo o fôlego escapou de meus pulmões e respirava em arfadas superficiais e descompassadas enquanto restaurava minha energia. Era como se estivesse todo esse tempo submersa e alguém me tirou antes que me afogasse, salvando-me das garras cruéis de uma morte esquecível. O oxigênio entrava ardendo e a minha temperatura corporal diminuía tamanho o frio que se infiltrava pelas áreas cobertas pelas roupas. Meu cérebro processava com a capacidade reduzida, concentrando-me em normalizar as funções do corpo para que não tremesse tanto pela instabilidade climática quanto pelo choque que rastejou por minhas entranhas.
— Ei, ei. Fique calma. Sou eu, o Alexander. — Uma voz gentil e preocupada me tranquilizou. Assim que foquei no dono dela, meus medos primitivos se evaporaram e minha respiração se estabilizou. As íris púrpuras faiscavam em inquietante e minuciosa inspeção para, quem sabe, determinar meu estado.
— Alexander? — murmurei grogue.
— Como se sente? — indagou apreensivo.
— Cansada e congelando. — como se acionasse um interruptor, as últimas lembranças vieram à tona e tateei desesperadamente onde o ferimento deveria estar, encontrando nada. Nenhuma evidência de que, um dia, estivera lá. — Ace… Cadê ele?
— Ele saiu faz um bom tempo.
Praguejei mentalmente. Dante tinha razão em desconfiar de Ace no fim das contas. Ele estava de complô que o maluco que me atacou e me sequestraram. A pressão na cabeça oprimia o fluxo de pensamentos de modo que não tinha mais o alicerce da coerência e a racionalidade para orquestrar uma fuga, restando somente meus instintos e intuição como suporte.
Rolei para uma posição menos vulnerável e, reunindo coragem, me levantei cambaleante. Não havia estabilidade em meus movimentos tampouco coordenação, andando vacilante, escoltada por Alexander, sem destino pela escuridão. Com passos lentos e cautelosos, me direcionei para a área onde uma luz frugal brilhava em uma tonalidade de azul cobalto.
Apesar de meus sentidos estarem mais apurados que o normal, não evitou que me esbarrasse com algo invisível que me derrubou com um poderoso impacto repelidor. Não queria arriscar novamente, mas não tinha escolha se quisesse escapar. Estiquei as mãos e a descarga elétrica que respondeu ao meu toque me obrigou a recuar.
— Ele colocou um selo. — Alexander analisou como a parede invisível vibrava com resistência a qualquer pulsão de poder. — E um pesado pelo visto.
Novamente estendi a mão para a barreira para certificar sua durabilidade e força e, feito um agente repressor, me rechaçou ante minha audaciosa empreitada.
Sentei desolada no chão, esfregando os olhos em um ato inútil de afugentar a estranha letargia que me domou, desarmando-me a ponto de não oferecer mais resistência. Respirei pausadamente, buscando um último recurso para escapar do cativeiro com a percepção nublada por uma névoa densa que se deslocava por ali.
— Diva?
— Estou com tanto sono, Alexander. — balbuciei sonolenta.
— Resista! Diva!
Diva!
Gradativamente a voz de Alexander desvaneceu.
Pisquei inúmeras vezes para adaptar meus olhos a luminosidade intensa após permanecer em trevas absolutas, um contraste peculiar aos eventos anteriores. O branco compunha uma gigantesca parcela do cenário estranhamente regido pela quietude, sendo apenas eu e uma extensão de claridade sutilmente incomoda. Esquadrinhei o local com urgência desejando que algo surgisse para esclarecer o devaneio — ou o que quer que seja isso — e me trouxesse de volta a realidade finalizando o pesadelo, porém nada apareceu.
Solitária, perdida e desgarradoramente deslocada.
Elevei a cabeça encarando o insondável céu que ganhava cores, um novo mundo que se formava a partir do nada feito uma tela em branco em processo de criação onde a tinta, outrora uma mancha sobre a superfície, se definia em silhuetas e imagens mais concretas.
A brisa farfalhou pela curta vegetação que crescera aos meus pés.
Um arrepio súbito percorreu meu corpo e, em um impulso tempestuoso, girei nos calcanhares para encontrar Dante de costas para mim exatamente como esperava — para compartilhar sua companhia e ter certeza que não estava só.
O lendário Devil Hunter que, em boa parte da minha adolescência, permeou meus sonhos fantasiosos com toda sua graça informal e fascínio sedutor. Sua postura poderosa e a atmosfera nobre de um cavaleiro — demoníaco.
Claro que seria ele. Meus lábios ressequidos se curvaram em um sorriso melancólico, externalizando meus mais íntimos sentimentos em um semblante devastado.
Mas… Não era real. Não era o Dante.
A aura gentil e acalentadora me envolveu como um cálido e reconfortante abraço de reencontro, quase poderia experimentar a plenitude das minhas emoções com o contato singelo. Seu nome ecoou pela minha garganta como um clamor desesperado enquanto meu coração batia rápido preenchido com carinho e admiração. Embora estivesse bloqueando a ideia em um intento de me manter à margem e longe de qualquer decepção amorosa e um possível coração partido, não permiti que o temor me paralisasse. Se essa fosse a única chance de estar com ele, depositaria minhas esperanças e segredos naquilo.
Alheio ao meu impasse interno, Dante fitou-me por cima dos ombros com um sorriso charmoso e amigável, desconstruindo as fundações que restaram da fortaleza que a custo ergui para me resguardar de desenvolver sentimentos que depois não teria controle sobre. Esfreguei os olhos para não chorar igual uma criança inconsolável, mesmo que as lágrimas ocasionalmente borrassem minha visão e me obrigasse a repetir o gesto quase que constantemente.
Queria brincar com a situação, rir dos meus batimentos cardíacos velozes que martelavam no peito, das palmas das mãos suando, das borboletas no estômago e de como minha mente só conseguia compreender que os sintomas que apresentava não vinham de um ataque de nervosismo, o que à princípio até realmente acreditei que fosse e que faria um pouco mais de sentido, e sim do inegável fato de que nutria um afeto pelo caçador e um nível maior que um elo de companheirismo reforçado com seu empenho em me auxiliar em meu problema dimensional.
— Não está feliz em me ver?
Encurtei a pequena distância que nos separava, contudo, sem coragem de ultrapassar seu espaço pessoal. Dante, para meu assombro, me aconchegou em seus braços com firmeza, tendo cuidado para manejar sua força sobrehumana e não me ferir com um esmagar bruto.
Ele me refugiava em si como se eu fosse uma frágil peça de porcelana. Retribui o abraço trêmula e desconcertada, apreciando o perfume dele com deleite encantado.
— Isso é um sonho? — murmurei o apertando com vontade, receando que o tempo para estarmos juntos terminasse em um piscar efêmero de olhos.
— Devo considerar que isso significa que sonha muito comigo, doçura?
Uma tímida risada irrompeu por mim.
— Talvez.
— Então me diga, doçura, isso parece um sonho pra você?
Cerrei a mandíbula reprimindo a ânsia de chorar.
— Não.
— Como sou um homem de palavra e sendo parte do protocolo de negócios devo recordar que ainda me deve um encontro e uma pizza. — Dante gracejou jocosamente, seu tom carregado de provocação.
— Você levou mesmo a sério essa bobagem?
— Eu sempre levo. — havia uma chama azul queimando em seu olhar na qual prendeu minha atenção. Suas mãos descansavam sobre meus ombros, esfregando-os em um ritmo suave e acalentador. — Eu estou indo te buscar. Espere pela nossa pizza, Diva.
Lentamente abri os olhos úmidos pelas lágrimas contidas e que, agora, deslizavam sem obstáculos pelas minhas bochechas rosadas.
— Você está bem? — a infantil voz angustiada proferiu, atraindo de imediato minha atenção a uma criança prostrada ante a cama.
Cama?
— Estou. — respondi educadamente, enxugando o rosto. A garotinha usava um vestidinho rosa com babados delicados, os cabelos negros arrumados em uma trança e em seus braços segurava um ursinho remendado. Seu olhar pendia em um misto de curiosidade e constrangimento — o castanho brilhava em expectativa e se franziu intrigada.
— Você acordou chorando. Teve um sonho ruim?
Limpei os resquícios úmidos do rosto.
— Não, um sonho bom.
— Sonhos bons não fazem chorar. — argumentou com perspicácia.
Analisei melhor meu entorno com os efeitos do torpor se diluindo em meu organismo e estranhei estar em um quarto considerando as circunstâncias. Dormir sob o mesmo teto que o inimigo parecia uma punição de um pecado cometido em alguma vida passada. A consciência daquilo, revendo minha situação de um ângulo menos pessimista, gerou uma perturbação interna da minha paz de espírito.
Não satisfeita com meu azar, minha intuição me bombardeava de mau agouro reduzido em uma sentença aterradora:
Algo ruim está para acontecer.
Se fosse enumerar minhas desgraças, no topo da lista, estaria gravado em letras garrafais ser raptada e em cárcere privado.
— Ei, quer ser minha amiga? — Inquiriu a menina lutando para subir na cama com o amigo felpudo em seus braços, me tirando de minhas lamentações internas.
— Seria ótimo. — vivendo em um ambiente pesado, ter uma companhia tão fofa soava como um presente, um bálsamo. — E o que você está fazendo zanzando por aí? Ainda mais sozinha?
— Minha irmã trabalha aqui. E não estou sozinha, tenho Bubu para me fazer companhia. — mexeu o bichinho de pelúcia como demonstração.
— Nina! — alguém chamou com urgência. — Não incomode nossa convidada!
— Não estou incomodando, né? — a nomeada Nina questionou com diversão.
— Não mesmo. — intercedi por Nina. Com passos leves e elegantes, uma face familiar se aproximou. Nilin sorriu com amabilidade como se quisesse que minha recepção fosse o mais confortável possível. Ela estava com as madeixas soltas em delicados cachos que caiam em ondas pelos ombros e trajava um longo vestido azul-marinho, um avental amarrado na cintura fina.
— Boa tarde, senhorita Diva! — cumprimentou fazendo uma reverência. — Espero que minha irmã não tenha te incomodado.
— Não incomodou. Na verdade, gostei da companhia dela.
Nina se aproximou, me entregando uma blusinha pequena para colocar no Bubu.
— Como se sente? Deseja alguma coisa?
— Ah… Bem, eu acho. — comecei atrapalhada. — Sério, não é muito a minha praia ter alguém me servindo.
— Não se preocupe com detalhes e seja bem vinda a residência Clockwell. — Nilin puxou um carrinho, cheio de bandejas e aperitivos que pareciam incrivelmente apetitosos. — Trouxe seu lanche.
— Muito obrigada, mas prefiro não comer. — honestamente estava faminta, meu estômago roncava baixinho implorando por uma generosa refeição, só não queria facilitar as coisas para Ace e me subjugar a sua vontade apelando para minhas necessidades físicas mais primordiais.
— Tem certeza?
— Sim, sim. Dispenso tudo que venha de Ace. — grunhi ressentida, fincando as unhas no lençol sob mim.
Mais alterada e rancorosa do que deveria, fechei os olhos e meditei comigo mesma para reavaliar a situação e arfei por não ter visto Alexander.
Ele é um fantasma, Ace não pode vê-lo, assegurei-me para não me apavorar com as mais mirabolantes teorias que minha mente imaginativa elaboraria para explicar seu sumiço.
A luz se infiltrou pela grandiosa janela há poucos metros da cama e decidi investigar superficialmente a área, marchando com as pernas instáveis em sua locomoção. O frescor brandamente incutiu por mim se encarregando de expulsar a melancolia que inflava em meu peito. Nilin ostentava uma expressão empática e, ao mesmo tempo, muito confundida. Talvez para elas, provavelmente, Ace seria um homem de índole impecável e incorruptível, incapaz de cometer atos tão bárbaros quanto sequestro. No horizonte, o sol estava a pino no céu parcialmente encoberto por nuvens que passavam.
Suspirei.
— Dante… — sussurrei, pousando as mãos sobre meu peito.
— Dante é seu namorado? — Nina inquiriu sorridente. — Você também chamou por ele quando estava dormindo.
Meu rosto queimou.
— Eu... Bem... — engasguei. — Não exatamente, é mais meu guardião… Alguém especial pra mim.
Eu estou indo te buscar.
Revivi o sonho com uma visão diferente, mais tencionada a crer que, se existia uma fagulha ainda que fraca, preservaria um pouco mais de fé de que tudo se resolveria.
— Minha irmã ama o senhor Ace. — Nina confidenciou inocente e repentinamente. Virei para encarar uma Nilin tão vermelha quanto uma pimenta.
— Nina! — Nilin repreendeu. — Isso não é algo para se contar.
— O quê? — ela indagou confusa.
Achava que tinha problemas complexos por, justamente, gostar de Dante e Nilin superou minhas expectativas nutrindo afeição por Ace. O cara parecia um poço profundo de indiferença e falta de tato, orgulhoso e impiedoso. Todos os aspectos negativos ele cultivava ativamente.
Não querendo muito interferir em um assunto no qual não fazia parte da minha jurisdição, desviei minha atenção para o enorme jardim abaixo da varanda. Me apoiei no parapeito de mármore entalhada, contemplando a beleza surreal da vegetação bem cuidada e esplendorosa. Em minha inspeção, para meu desgosto, encontrei Ace caminhando pelas redondezas com a típica postura altiva de sempre, ocultando quase completamente seu caráter dúbio por trás de boa aparência. Nossos olhares se cruzaram por segundos, estes nos quais um frio devastou meu estômago.
Ace me encarava fixamente com uma tórrida mistura de admiração pela nova aquisição, indubitável controle e frieza. Um sorriso felino iluminou suas feições enviando arrepios pavorosos pela minha espinha.
Nina olhou por entre as brechas, curiosa pela ausência de ações de minha parte.
— Boa tarde, Ace! — gritou animadamente. No princípio, achei que ele fosse ignorá-la, entretanto, para meu espanto, acenou para a garotinha com um sorriso mais dócil.
— Boa tarde, Nina. — começou gentilmente, pisquei genuinamente pasma. — Boa tarde, Diva.
Fechei a cara transmitindo, sem verbalizar uma única palavra, que não acreditava na imagem que ele tentava passar. Nunca conquistaria minha simpatia.
— Nilin. — A fitei com uma repentina, porém, confiante curiosidade. — Que música era aquela que você cantava quando nos conhecemos?
Os olhos dóceis de Nilin se arregalaram ligeiramente, um misto de assombro e constrangimento.
— Tenho a impressão de ouvi-la as vezes desde que cheguei nesse mundo.
A brisa rodopiou em meu entorno carregando o perfume do tapete de flores no jardim. Embora não tivesse decorado a letra, podia entoar a canção pelo pouco que fora reproduzida.
— É uma música antiga de um conto de fadas que minha mãe costumava cantar pra mim quando era bem pequena. — um tímido sorriso desabrochou em seu rosto e um rosa tingiu suas bochechas. — O nome é "Canção do Herói". Minha mãe costumava dizer que sempre em um momento de necessidade, ao cantá-la, um herói seria invocado.
A risada que ela deixou escapar era melodiosa.
— Acho que se essa lenda for real… Estou bem longe de ser uma heroína.
Três batidas leves ecoaram. Nina agitadamente abriu a porta e permitiu que Ace entrasse.
— Espero não ter atrapalhado a confraternização. — engoli em seco com a falsa ternura que embebia suas palavras. — Podem me deixar a sós com nossa convidada?
Não. Não. Não. Não.
Meus pensamentos se embaralharam pelo pânico, torcendo para que uma das duas lesse o pânico através da minha linguagem corporal e que não saísse. Contrariando toda minha vontade, elas partiram cordialmente.
Ace nada disse até garantir que os passos delas se distanciavam o suficiente para não ouvi-las mais.
— Está gostando da hospedagem? — andou elegantemente até a varanda. — Desculpe ter lhe trazido tão rudemente de volta. Você não me deu escolha.
— Seus lacaios quase me mataram! — gritei.
— Lamento por esse imprevisto também.
Como sangue borbulhando e a fúria consumindo meu ser, golpeei o rosto de Ace com toda potência que me fora conferida no surto de adrenalina. Com a cabeça virada pelo tapa, seu olhar doentiamente dócil se converteu em uma frieza sombria, estudando meu rosto com feições impossíveis de ler.
— Já esperava esse tipo de reação. E você pretende fazer o que para mudar sua condição atual, huh? Chorar? Gritar? — Ele segurou meu braço para imobilizar-me antes que efetuasse mais um ataque. — Grite! Berre! Acha que isso vai te salvar? Acha que vai fazer aquele demônio vir correndo?
Estremeci com a menção a Dante, algo que fora percebido prontamente por Ace.
— Claro, não poderia ser diferente, não é? A humana enamorada de um demônio. Que comovente história de amor. — debochou com aspereza. — Acorde do seu conto de fadas, criança ingênua, ele não vai te resgatar. Ve? — estendeu os braços com visível arrogância. — Ele não está aqui. Você foi o entretenimento do momento para ele. Ou acredita que ele irá retribuir seus sentimentos?
— Cala boca!
— A verdade é dura, não é? — reprimi o soluço que ameaçava escapar. — Essa é a sua única casa.
Neguei veemente com a cabeça.
— Você ainda enxergará tudo com mais clareza e eu estou te libertando.
— Me trancando a sete chaves do mundo? — vociferei com a garganta dolorida pelo demasiado esforço. — Que tipo de mente doente acha que isso vai ajudar?
— Querida e doce irmãzinha… — murmurou roçando os dedos pela minha bochecha, então começou a rir sem afetação. — Creio que devo esclarecer certas… Pendências como cortesia. — ele caminhou pelo cômodo como se estivesse imerso em um monólogo complexo. — Não somos irmãos.
Petrifiquei com seu transparente cinismo.
— Digamos que usei um recurso mais tocante para os humanos. — sorriu convencido de seu êxito. — Talvez teria sido mais efetivo se aquele demônio não tivesse interferido.
O alívio me engolfou por saber que não possuía relação com esse cara, porém incerta sobre qual seria o objetivo dele ao me relatar seu plano.
— Você quer saber por que tenho certeza que ele não vai te salvar?
Engoli em seco.
— Seu demônio querido está morto. — disparei pra cima de Ace ao escutar tamanha infâmia. Ele pareceu satisfeito com meu surto e ainda mais por me atingir com um movimento sutil de sua mão. Não chegou a ser um ataque direto, mas foi uma pressão forte o bastante para me arremessar contra a parede. — Se conforme com esse fato.
— Eu não acredito. Alguém como você nunca conseguiria matar Dante!
Ace riu.
— Talvez. — balançou a cabeça como se visse graça em minha explosão. — Você está bem confiante na capacidade do filho de Sparda e não vou te derrubar dessa ilusão.
Uma forte e atordoante dor despontou do centro de minha cabeça e se espalhou impiedosamente.
Nunca tinha experimentado algo tão esquisito. Como se todas as minhas preocupações e medos me dominassem com tudo, deixando-me tonta, uma vertigem incapacitante. A mesma sensação de antes se consolidou com a pressão dolorosa: algo ruim estava para acontecer.
Agora, sem dúvida alguma.
— Tenho planos para você, minha Diva — proferiu aproximando-se de mim.
Olhei assustada.
Depois disso, fui devorada pelas trevas. Uma, no qual não conseguia sair, não importa o quanto eu lutasse.
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