Closer to the Holy Grail
O RESPLENDOR INÓCUO E MÍSTICO se infiltrou pela claraboia no centro do saguão, banhando o espaço com uma modesta luz branca, tornando visível aos olhos o que outrora estava oculto nas sombras. Todo dentro do lugar, mesmo o mais extravagante adereço de metal maciço, reproduzia a prosperidade dos tempos de glória da propriedade. As decorações suntuosas estavam cobertas de camadas grossas de poeira, criando uma crosta cinza que se aderiram as peças negligenciadas, que também empesteavam o ambiente com cheiro de mofo e madeira envelhecida que se desgastou com a umidade. Enquanto meu cérebro subtraia do lado lógico a impressão olfativa de familiaridade, identifiquei, entre as diversas peculiaridades dos conjuntos em amostra, pinturas que aparentemente retratavam uma história em sequência, da entrada para a saída, em uma ordem dinâmica que funcionava bem para uma leiga como eu.
Em ocasionais vislumbres, fui atrás de Alexander que, assim como eu, também se ocupava de explorar o novo cenário. Não com o mesmo comportamento aéreo e descuidado que eu tampouco de um estranho que se inseriu, sem critério, em uma casa qualquer. Ele esmiuçava cada canto com o olhar vago, sem uma emoção distinguível para minha interpretação, desejando resgatar no branco das memórias perdidas uma fagulha de esperança para um reconhecimento ou um fragmento que lhe direcionasse. Captei a frustração dele e como o “vazio” o afetava diretamente, se apoderando até de sua disposição espiritual.
Ao atravessar uma porta, cujas dobradiças zuniam, adentramos a uma parte da casa na qual havia uma escadaria não muito extensa que se dividia em duas ramificações, direita e esquerda respectivamente. Congelei ao reparar, quase que de súbito, a semelhança com meu sonho — onde tive meu primeiro contato com Alexander. Toquei nos relevos do corrimão ornamentado com lindos desenhos intrincados e resolvi, sem a supervisão de Alexander, desviar da rota e subir para investigar por conta própria.
Subi vagarosamente a escadaria, surpresa com o quadro exposto, sendo Alexander o único que dava para deduzir com certeza. A falta de cuidados danificou a estrutura da pintura e mal se enxergava as pessoas que estavam nela. Dei de ombros e retomei minha procura individual, fascinada pelos corredores com aspecto de arquitetura vitoriana que atiçavam mais a curiosidade e pelo capricho na organização dos artefatos artísticos.
Apertei o passo com a percepção de outra pintura, uma que se destacava das demais, tanto pela escolha de cores quanto do que ela apresentava em sua totalidade: uma mulher com semblante endurecido feito uma mármore como as esculturas de Michelangelo elevando uma espada aos céus, o fulgor do sol fora refletido para lâmina e dela para a terra, revestindo-a de luz. Procurei a plaquinha informativa para melhor aclaração dos fatos e ao lê-la, tão claro quanto o dia, toda dúvida se dissipou e compreendi: a arte espelhava a lenda do Santo Graal e da Arya.
O que significava afinal?
— A luz que governa a vida. — a voz sábia de Alexander retumbou atrás de mim. — Assim como o sol que recaía sobre todos, lhes abençoando com o princípio da vida, também serviria como arma para expurgar o mal.
— Uau. Isso é assustador e interessante ao mesmo tempo — brinquei sentindo o coração palpitar ferozmente.
— Esse quadro, assim como a maioria das coisas aqui, foram criadas para preservar uma história. — ele continuou com um timbre floreado. — Não dá pra construir algo no presente se não tiver bases sólidas no passado.
— Então você estava mesmo atuando como uma espécie de enciclopédia ambulante? — franzi o cenho intrigada. — Afinal... Qual era o objetivo disso tudo?
— Ter algo para contar.
— Isso não é bem uma respostas...
— O que você faria se toda sua família fosse desfeita e restasse somente você? — Alexander indagou com seriedade. — Não iria querer ter uma parte da história da sua família para não se sentir sozinho? Para que as próximas gerações soubessem de onde vieram?
Assenti perplexa.
— Isso... Eu posso recordar. — murmurou melancólico. — Escrevendo por horas sobre informações que coletava durantes minhas viagens. Apesar da coleção, sempre senti que nunca estaria completa. Não enquanto não descobrisse a gênesis desse poder, do que eu era.
O convívio diário com Alexander e sua gentil promessa de comunhão, moldaram minha opinião e percepção sobre sua pessoa e, também, as emoções que transpareciam que saíam da bolha usual “sereno” dele. Sua própria identidade estava em jogo e empatizar com sua causa e o desejo de recuperar suas memórias acendeu em mim um novo resplendor, de que faria o melhor para acompanhá-lo e auxiliá-lo como ele tem feito comigo — quase como um irmão mais velho.
— Vamos ver o que tem aqui para investigar, talvez encontre algo familiar o suficiente pra despertar uma lembrança, mesmo que pequena.
Alexander assentiu.
— Essa casa é enorme. — exclamei exaltando a estética da residência. — Poderia morar, você, eu, Dante e o resto do pessoal aqui sem nenhum problema.
— Podemos ver isso depois.
— Oh, sério? — o fitei surpresa por ele cogitar atender uma brincadeira. — Você é incrível, Alexander.
Petrificado, Alexander me encarou com as íris púrpuras opacas, sem vivacidade ou traços de consciência presente. Uma das características mais marcantes e charmosas dele em termos de beleza eram os olhos de um tom que nunca vi na minha dimensão, cintilando em benevolência e graça qualquer um que o encarasse seria absorvido na imensidão arroxeada e acolhedora. Agora, no entanto, mais pareciam uma cor ausente de luz, um fosco proeminente.
— Alexander? Ei, Alexander. — chamei, estalando os dedos frente a ele.
Ele se esfumaçou no ar, sem aviso prévio, sem nenhum sentido. Fiquei tão chocada que se transformou em estado de paralisia de alguns minutos.
— Alexander?
Em um complicado relacionamento com o senso de direção — que aparentemente falhou — enquanto dobrava esquinas de corredores de coloração do que um dia foi um azul que se desbotou em um cinza bolorento, denotando mais a exiguidade de assistência e presença humana. Na rápida averiguação, apesar do abandono óbvio, não tinha visto nenhum inseto e esse casarão era mais que propício a vida desses seres minúsculos que viveriam isolados longe de predadores, mas indo contra todas as expectativas, com a conservação em dia, não havia nada ali.
Aquela altura, toda a ilusão de aventura de início se evaporou e tudo que queria, além de sair da mansão tenebrosa, era trazer Alexander de volta.
Sem nenhum vestígio, meu cérebro começou a inventar teorias assustadoras para esclarecer acerca do desaparecimento. Elaborando as mais esquisitas e tristes possibilidades somente para acabar mais nervosa e paranoica que antes, pois quando é pra se arruinar com estresse a mente consegue alcançar os mais elevados patamares. Já tinha me habituado com o jeito fantasmagórico dele, menos a parte de aparecimentos repentinos, para desfrutar da quietude enfadonha.
Respirei fundo colocando tudo em perspectiva:
Alexander some e não tenho orientação, GPS, um Google Maps, uma bússola (não acredito que me ajudaria nesse contexto) ou um chinfrim mapa convencional. Com uma casa enorme abarrotadas de salas e mais salas, não seria possível caminhar sem se perder no processo. Na verdade, não dá pra conceber a ideia que tinha gente que morava ali e não tinha mapa... Claro que vivendo por ali durante anos qualquer um seria capaz de decorar cada aresta e dizer com precisão a função de cada área.
Eu não era uma dessas pessoas.
Me impingindo para fora da instabilidade desnorteante, caminhei as pressas, abrindo portas e gritando o nome do meu mentor, preocupada com o destino dele. Estava apavorada com a hipótese dele desaparecer e me deixar sozinha, muito mais por não tê-lo perto que por me encontrar desgarradora e inconsolavelmente solitária em fora da zona de segurança.
Divaguei sobre as mais mirabolantes teorias do que ocorreu e como proceder, esquadrinhando os corredores e abrindo aleatoriamente as portas vendo alguns quartos conservados, embora claramente estivessem em desuso. Um deles, o que me chamou atenção, era mais humilde quanto a mobiliado e escolhas de aparatos; as paredes pintadas em um tom de creme destacavam a cama de casal grande com lençóis cinzas e móveis brancos, havia um espelho de corpo todos em uma das paredes e também um pequeno escritório com papéis espalhados e fotos largadas.
Peguei uma delas: Era de Alexander com três crianças e uma... Parecia um pouco o Ace.
Estremeci com a simples possibilidade de ser, de fato, ele.
— Lamento — o entoar da voz de Alexander, embora não o visse, me trouxe relativo alívio. — Eu ficarei aqui, Diva.
— O quê?
— Não há jeito, preciso permanecer aqui para recordar.
— Mas... — esquadrinhei o local avidamente. — Como... Não sei o que fazer sem você. Nem sei como controlar minha aura — indiquei o frasco no meu pescoço que magicamente se soltou e caiu em um baque mudo no chão encarpetado.
— Isso é temporário, você precisa da sua aura se quiser chegar a ilha.
— Eu não sei como!
— Siga minhas instruções.
Sem muitas alternativas a disposição, fui para onde ele me guiou, me deparando com um escritório. Puxei uma caixa escondida em um dos armários e a abri, pegando o livro encadernado com capa de couro gasto de acordo com a rígida orientação de Alexander que praticamente me movia sob controle.
— Pegue esse livro, é importante. — um portal se abriu na minha frente do mais absoluto nada. — Esse livro vai te ajudar por agora. Leia e absorva o conhecimento escrito... É algo que você nasceu sabendo, é uma parte fundamental do que você é.
— Eu pensei que faríamos isso juntos. — sussurrei, abraçando o livro.
Foi tão de repente, não deu nem pra processar o ocorrido. Querendo ou não, me apeguei a ele, quase como um irmão mais velho super descolado e inteligente, e ter que tomar o resto da jornada sem ele me deixou um tanto quanto desnorteada.
— Vou ficar um tempo aqui, mas não significa que não a verei de novo. Quando nos reencontrarmos farei um papel melhor no seu desenvolvimento, eu prometo.
A imagem de Alexander se projetou diáfana, sorrindo calorosamente.
— É bom que consiga mesmo! — balbuciei desejando não soar chorosa enquanto agia como uma garota segura e desencanada, me prontificando a adentrar o portal. — Nos veremos em breve, Alexander!
Alexander riu.
— Até breve, Diva.
Fechei os olhos e os abri, visualizando as expressões de Eryna e Maya irem de confusão a curiosidade. Dante veio até mim para se certificar se estava bem, sem muito o que dizer, o abracei.
— Agora é por sua conta, Dante. — brinquei com o rosto molhado de lágrimas.
×××
Depois de ter molhado a camisa de Dante com minhas lamentações e explicado o que houve no intervalo entre a entrada e a saída do portal, evitando informações sem fundamento sobre um garoto semelhante a Ace numa fotografia com Alexander, mencionei, especialmente, o lance do livro que Eryna não conseguiu abrir.
— Ele disse que me ajudaria a chegar na ilha — resfoleguei para reaver forças após despejar tudo que entendi da situação.
— Só precisa abri-lo — Maya comentou forçando o fecho do livro para arrancá-lo em sua falha tentativa.
— Talvez seja melhor Diva ter as honras.
Maya assentiu e me entregou que, absurdamente, se destrancou sem nenhum esforço da minha parte.
“Absorver o conhecimento”
Escrito em um idioma estrangeiro e que, por algum motivo, podia traduzir, li uma espécie de encantamento — não exatamente um, é mais uma “receita” de como deveria realizar as ações: a única maneira de entrar na ilha é pelo teletransporte afinal — uma das habilidades que não estava familiarizada. Peguei nas mãos de Dante e me concentrei, usando como apoio o que Alexander sempre me dizia "controle e foco".
Uma luz nos envolveu e nos engoliu por completo.
E em um passe de mágica, estávamos no meio do oceano... Espera... Oceano?
Começamos a cair em queda livre. O pior era que se eu chegar a cair, morreria afogada já que não sabia nadar — isso se a queda por si só não me matar. Deve ser isso que Eryna quis dizer com "A morte me rondava".
Ser desastrada e distraída é mortal.
Dante riu e mudou de forma e pegou-me antes que caísse na água. Vê-lo despojado no Devil Trigger atiçou um sentimento abismal de segurança e também... Um instinto primordial de deslocamento.
Chacoalhei a cabeça para afugentar os temores e me centrei no que tínhamos que confirmar, levando em conta o objetivo de Ace, ele não mediria esforços para obter a espada e a última coisa que precisamos pra nos preocupar é um maluco enraivecido que perpetua o caos.
— Acho que é aquela ali — apontei para o borrão distante no horizonte. — Ainda teremos uma viagem até que mediana pra chegar lá.
— Aperte os cintos, madame. — Dante escarneceu, me apertando com delicadeza. — Pode ter algumas turbulências, então se assegure de estar bem protegida.
Enterrei o rosto em seu pescoço, respirando fundo com o ressoar elegante das asas dele o sustentando nos céus. Espremida e apavorada, me levei pelo calor que irradiava dele e, gradualmente, superei uma parcela do medo, não totalmente, mas o suficiente pra não passar a vergonha de chorar de horror.
O centro trespassou meu corpo mesclado a uma sensação de navegar a deriva, mas com o amparo de Dante para me colocar na linha. Seguimos o resto da viagem voando, até que sobrevoamos a ilha — o que, em aspecto, era diferente do que imaginei. Pousamos numa parte deserta, para não ter riscos de servos vistos. Com todo cuidado, Dante me pôs no chão e voltou ao normal.
Então essa era a tal Isla De Lunier.
A primeira vista, Isla de Lunier era ladeada por pinheiros e outros tipos de árvores. Havia vários aromas despertando meu olfato: terra, flores silvestres e maresia. Adentrando mais a fundo, a cidade em si parecia bastante pacífica e organizada com altas casas simples que pareciam ter vindo da era vitoriana estilizada com o famoso estilo steampunk mais limpo.
O chão composto de pedras gastas e planas, as fendas nasciam pequenas plantinhas. Lembrava até vagamente Fortuna. Reparei que as ruas estavam enfeitadas, como se fosse ter algum festival. O sol estava alto no céu azul claro e limpo, envolvido por anel amarelo-alaranjado.
Andamos pela praça com cautela tentando não chamar tanta atenção — principalmente com um homem com uma cor de cabelo tão peculiar e vestido com roupas vermelhas. Todas as pessoas nos olhavam de uma maneira estranha. Não era de um jeito pejorativo, ainda assim, desagradável de qualquer forma.
— Tem algo errado por aqui... Muito errado.
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