Capítulo XIII - Joguete de Clãs
Aviso de gatilhos: A primeira parte retrata abuso sexual (não explícito) e tentativa de suicídio. Caso não se sintam à vontade, pulem toda a primeira parte em Itálico, nas notas finais deixarei um breve resumo das partes importantes que ocorreram. No final também há um dialogo em que é mencionado sobre o assunto, então prossigam com cautela.
Se o bem e o mal pudessem falar um com o outro, o que eles diriam?
Eles são todos fingidores, os que vivem na luz, mas se escondem no escuro.
Ted Dekker
ELE NUNCA SABIA QUANDO ERA DIA, OU QUANDO ERA NOITE. Não sabia o dia, o mês. Poderia ter passado anos ali sem saber, imerso na névoa dos remédios. A única coisa indicativa de tempo eram as visitas de Nagato, mas quase todo tempo estava tão preso em si mesmo, que se encontrava insensível a qualquer coisa.
As vozes gritando naquele lugar, não sabia se eram dos vivos ou dos mortos. Já não os distinguia. Já não sabia o que era real e o que estava na sua cabeça. De repente percebera que havia realmente enlouquecido. Deixara de lutar quando o buscavam, quando lhe aplicavam as injeções. Não comia até que o mandassem, não dormia até estar dopado. Acordado, as imagens o assombravam, mas já não sabia o que era pesadelo ou visão ou real.
A sua sensibilidade havia crescido de forma descontrolada. Se tocava em alguém, aquelas imagens vinham em sua mente sem qualquer restrição, claras e reais, como se o véu que antes as separassem houvesse sido destroçado. Sua mente estava em frangalhos demais para o erguer novamente. Ele sabia como todos morreriam, com qual idade, de qual forma. Naruto morria com cada uma delas. Ele podia sentir o gosto de sangue em sua garganta, o vômito em sua boca, seus ossos se quebrando. O medo dos últimos momentos, de novo e de novo. Quanto mais recente, mais violenta, mais claro era. Sempre que acontecia gritava até precisar ser dopado.
Havia um homem, um médico de cabelos longos negros. Naruto não sabia seu nome, mas sabia como ele morreria assassinado por um garfo na jugular um dia, anos e anos à frente. Naruto via sua morte sempre que o tocava, sempre que o médico o tocava. Seus olhos eram como os de Nagato quando fitavam e ele surgia em seu quarto no meio da noite.
Naruto nunca resistia, mergulhado na cena em que ele morria de novo e de novo, bloqueando o que ocorria fora do seu corpo. Quando alguém finalmente percebeu as marcas em seu corpo, as visitas haviam se tornado frequentes. Naquele ponto os enfermeiros mal se aproximavam dele, sabendo suas reações com um mero tocar de mãos, se sentindo enervados por sua aura gelada e macabra. Nagato foi quem as viu, notou os rastros como apenas alguém que sabe exatamente o que aquilo significava poderia notar. O médico nunca mais apareceu.
Naruto se perguntava o quanto disso havia sido real.
Olhos azuis vidrados, Naruto observava, insensível, as sombras no seu quarto. Elas gritavam e tentavam tocá-lo em vão, tentando o machucar tanto quanto foram machucadas em seus últimos momentos. Naruto apenas assistia. Imerso, estava imerso. Mesmo agora com Nagato ali. Seus olhos sem vida fitavam o teto branco. Tudo era muito branco ali. Sua mente às vezes ficava em branco, e ele agraciava isso.
Ouvia os gemidos, apenas piscava por reflexo, ignorando outras respostas reflexas do seu corpo. Era sempre doloroso, mas apenas tinha a memória disso, como se o presente não existisse. Nem o corpo estranho dentro de si, ou os sons que o homem emitia, e as tentativas de fazê-lo gostar daquilo.
Um pensamento passageiro passou em sua mente, se perguntando a razão disso de forma ausente. A regra sempre fora para ele não gostar, certo? Por isso tinha que ser doloroso e humilhante. O sumiço do médico que o machucava também o intrigou brevemente. Afinal, não foram uma ou duas vezes que o tio entregara a chave de seu quarto para convidados bêbados durante aquelas festas? Não fora isso, que no fim das contas, o levara a estar naquele lugar?
Apenas um pensamento passageiro. Só queria dormir, por isso sua mente tornou a vagar no nada, se tornar nada. Algo que não é real não poderia o machucar.
Acordou de forma abrupta do episódio de dissociação por um abraço.
Nagato estava o abraçando, e isso nunca havia acontecido antes.
Logo não poderia ser real.
A ilusão removeu o cabelo suado de sua face febril e beijou sua testa, chamando por um nome que parecia quase familiar, se não distante.
— Kushina. Kushina. Kushina.
A ilusão de Nagato com o rosto enfiado em seu cabelo, repetindo aquele nome.
— Por que me deixou naquele lugar, Kushina? Por que deixou eles fazerem aquilo comigo? Por que não me levou com você? Por que não voltou por mim?
Ainda o sentia, como sentia a substância viscosa que escorria de suas pernas misturada a seu sangue. Aquilo doía demais para não ser real, mas não fazia muito sentido para que fosse.
—Por que eu... por que eu não consigo parar... Eu te odeio tanto...odeio odeio odeio...
Naruto se entregou a deriva, ignorando a charada.
Seria naquele momento que ele sairia, e então uma enfermeira entraria, o limparia, lhe daria um banho e os remédios. Se fosse a morena, ela lhe olharia com pena, se fosse a loira, ela apenas faria seu trabalho. Um deles tentou lhe ajudar uma vez, no outro dia ele não retornou mais. Ninguém mais tentou depois disso.
Sentiu, vagamente, quando era removido da cama. Contra a sua vontade voltou ao foco, confuso com a mudanças da rotina. A ilusão (não podia ser ele realmente, não fazia sentido que fosse) o ergueu e levou ele mesmo ao banheiro, o sentou no sanitário. Naruto permanecia imóvel como um boneco de trapo, ouvindo os sons, fitando o vazio. Logo ele voltou e lhe colocou na banheira de água quente, lhe tocando de um jeito que não estava acostumado, não sem a violência e malicia com qual o real Nagato sempre o tocava.
Ele o enxugou com calma e o vestiu. O sentou na cama ainda suja e se pôs a sua frente de joelhos, e era tudo tão estranho que cogitou ainda estar dormindo. Seus olhos vazios foram para os lençóis brancos, para a mancha grande de sangue que formava uma poça ali, seu sangue que jazia, agourento. O homem olhava para o mesmo ponto.
Sentiu as mãos em seu rosto, o fazendo olhar para o rosto que odiava e temia mais que tudo. Continuava imóvel, semimorto, cansado e sonolento pelos remédios, pela violência infligida mentalmente e fisicamente nas últimas horas.
Sua mente enevoada ficou um pouco alerta ao notar que não havia o nojo comum ali no rosto do outro. Ele parecia tão vazio quanto o seu devia parecer. Os polegares passearam por suas bochechas, fitando os olhos azuis vidrados. Passeando o olhar pelo corpo magro nas roupas frouxas, vendo no pescoço algumas injurias que há pouco infligira. Os polegares foram para suas pálpebras, as obrigando a fechá-las, mas antes disso ele vira, e não sabia se fora ilusão, nunca soubera, ou se Nagato realmente chorava de fato naquele instante.
Sentiu de novo um beijo na testa, e daquela vez, não houve xingamentos, apenas o silêncio quando ele saíra. Só depois de muito tempo, voltou a abrir os olhos, voltando a fitar seu sangue nos lençóis.
Estranhamente, com toda a situação fora do normal, que não parecia realmente ter sido uma ilusão, se sentia mais alerta do que em muito tempo.
Logo viriam o buscar.
Se ergueu, sentindo uma dor aguda que quase o fez cair.
Com esforço, seguiu até o banheiro. Sentia uma umidade característica na calça branca de pano fino. Sabia que ainda sangrava, sempre sangrava por algum tempo.
Chegou ao banheiro, daquela vez, aberto. Sempre trancavam tudo, mas aquele dia não fora comum, afinal.
Fitou-se no espelho. Os cabelos loiros molhados caiam por seu rosto pequeno. Os olhos azuis estavam apagados, com fundas olheiras abaixo. O rosto parecia de um fantasma, parecia morto.
Queria estar morto.
Duas presenças surgiram atrás dele, no espelho. Sombras se tornando mais nítidas e reais. Uma era ruiva com um ar triste. Outra era parecida com ele. Sabia que os conhecia, de algum lugar, mas sua mente enevoada apagara seus nomes e o que significavam. Assim como o garoto de olhos azuis que às vezes surgia em sua mente, como uma lembrança. Naruto queria o chamar, mas não recordava seu nome, por mais que tentasse.
"Por que não me levou com você? Por que não voltou por mim?"
Essa frase, ouvida momentos antes, se repetiu em sua mente, de novo e de novo.
Socou o espelho, duas vezes até ele quebrar, machucando seu punho pequeno. A imagem atrás de si se quebrou, mas eles ainda estavam ali, sentia-os.
"Não faça isso."
Era a voz feminina, doce, triste. Familiar.
"Há outro jeito. Meu bebê, por favor. Não faça isso..."
Negou devagar, mesmo com o desespero na voz da mulher.
Pegou um caco maior e se sentou no chão frio e sujo de sangue. Ficou olhando para o reflexo no pedaço partido em sua mão. Tão partido como ele.
"Eu sei que é difícil, mas você não vai terminar assim, eu sei."
Era a voz do homem, com uma certeza estranha. Novamente negou com a cabeça.
"Não é assim que as coisas vão terminar para você. Não repita meu erro."
O homem falou de forma apelativa e cheia de dor.
Ergueu a cabeça e olhou para o casal, principalmente para a mulher. Balbuciou um 'desculpe' baixo. Ela sempre vinha cantar para ele de noite. Reconhecia a voz doce.
"Menma precisa de você."
Não sabia quem era Menma, mas o nome fez com que parasse por segundos.
"Por que não me levou com você? Por que não voltou por mim?"
"Ele vai vir te buscar, ele não te abandonou, Naruto. Aguente só um pouco mais, meu bebê. Só mais um pouco."
Balançou a cabeça. As sombras nas paredes aumentavam, o ar ao redor mais frio.
"Naruto!"
Cortou devagar o pulso. O sangue jorrou no chão. Quase sem forças, fez o mesmo tratamento para o outro. Sua mente escurecia aos poucos e se deitou ali.
Acima da sua cabeça, ouvindo os gritos dos dois o chamando em desespero, ele viu outra imagem se formando, mudando de forma. Era conhecida, como uma velha amiga. Familiar, mas não tinha certeza de como ou quem era.
A figura o fitou, olhos mudando de cor, uma expressão indefinível em seu rosto.
"Ainda não, pequeno Namikaze."
Naruto apagou no próprio sangue, esperando não acordar mais.
Então ele acordou.
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Naruto deixou que o silêncio caísse na sala, encarando o piso de madeira, absorvendo as palavras de Itachi que martelavam em seus ouvidos. Não o havia interrompido em nenhum momento durante toda a explicação sobre Kyuubi e tão pouco falara após ela.
Itachi se incomodava em não conseguir ler o garoto naquele momento. Nada do desespero comum as outras vítimas, as milhares de perguntas gritadas, o medo. Ele apenas se mantinha impassível. Se pegou tentando fitar os olhos azuis, tentar ver algo lá que denunciasse o que realmente estava sentindo com a situação.
— Ninguém sobreviveu, ele matou todos. — Naruto falou por fim, olhos azuis distantes. — Eu... recordo desse caso agora, desse nome. Vagamente, nas notícias. Ninguém sobreviveu.
— Você vai sobreviver. — Itachi falou com firmeza. — Acredite em mim, Naruto. Eu prometo que vou proteger você.
Aquele maldito não vai ter o que bem quer dessa vez.
Naruto levantou a cabeça e para sua surpresa tinha um sorriso melancólico nos lábios. Os olhos azuis fitaram Itachi de uma maneira diferente por segundos.
— Seu irmão disse o mesmo para mim. — Sussurrou. — E o meu irmão. E meus pais. Todo mundo que me promete isso acaba morrendo. — Ele se deixou encostar as costas no sofá onde antes estivera encurvado, e jogou a cabeça para trás fitando o teto. Itachi fitou o perfil, mas antes que pudesse falar algo o garoto virou a cabeça e o fitou com aqueles olhos inocentes e sérios. — Itachi, se você ficar perto de mim, você vai morrer.
Tentou ver se ele estava fazendo uma piada, mas os olhos azuis pareciam sérios demais.
— Ele não vai tentar nada contra mim, Naruto. — Falou suavemente. — E mesmo que ele tente...
— Eu não falo disso. — Ele o interrompeu e não falou mais nada. Itachi queria saber o que ele pensava naquele momento, mas que tudo.
Naruto silenciou por longos segundos até voltar a falar com um tom estranhamente sereno.
— Eu nunca soube como Sasuke... Karin me tirou de Konoha no dia seguinte. Nós... não fomos ao enterro. Eu não lembro de muita coisa, eu apenas... — Ele não precisava terminar, Itachi o entendia, até demais. Ele também havia ficado à deriva. Ele também não lembrava de nada daquele período. — Eu fiquei com medo demais de tentar saber depois e descobrir que... que de alguma forma eu...
Ele deixou as palavras morrem, a expressão ainda tão distante. Itachi ficava surpreso com a sinceridade dele, era mais do que poderia imaginar que ele diria. Se perguntava se Naruto havia pensado que a morte de Sasuke havia sido sua culpa, de alguma forma. Com o histórico dele, não era difícil de concluir que pensaria isso.
Itachi se perguntava o que ele pensaria ao saber que a culpa havia sido de Itachi. Ele havia jogado os olhos de um monstro em seu irmão por associação e se negado a atender seus chamados de socorro.
—Foi ele quem o matou. — Naruto murmurou. — Então ele merece morrer.
A sentença simples assustou um pouco Itachi. De certa forma. ouvir aquele garoto de olhos infantis dizendo aquilo era estranho.
E novamente ele pensou que nada sabia sobre Naruto. Nada.
— Tudo bem, Uchiha. — Sua voz estava vazia, calma. — Apenas me diga o que eu devo fazer. Mas... — Naruto se ergueu devagar e fitou o outro que retribuiu o olhar, escondendo os sentimentos confusos que o assolavam. — Tenho uma condição.
— Sua vida está em risco, Naruto. — Falou, fitando a face do garoto que abrira um sorriso de canto que Itachi achava insano demais para o momento. — Você não pode impor condições.
— Não só posso como vou. — Naruto o fitava sem desviar os azuis, se aproximando. Surpreso Itachi viu ele apoiar suas mãos em seus joelhos que ainda se encontrava sentado no sofá, se inclinando e ficando a centímetros do seu rosto.
Itachi podia sentir a respiração do outro, o aroma de café impregnado em seu hálito. Não conseguia desviar dos olhos azuis, compreender ou parar o garoto. Quem era aquele Naruto? O Naruto que conhecia, mesmo que a pouco, não se aproximaria de si, se retesaria a toques. Estaria ainda sentado longe dele no sofá.
Quando ele voltou a falar, a voz estava séria. Ele não parecia ter malicia no que fazia, o que deixava Itachi ainda mais confuso, sentindo algo dentro de si borbulhar, não bastasse toda a loucura daquele momento.
— E ela é que não seremos amigos, próximos ou nada tipo. — Naruto falou. — Em nenhum momento, de nenhuma forma. — As palavras o pegaram de surpresa, mas não parecia uma piada. — Eu não quero ser seu amigo, Itachi. Não sou Sasuke também, não sou seu irmãozinho. E nem serei seu amante.
A última frase o pegou de surpresa. Ainda mais ao perceber que a revolta imediata com o mero pensamento não veio, o que o deixou mais perturbado.
Toda aquela conversa estava fora do controle.
— A nossa relação de paciente e terapeuta também foi para o espaço, acho que podemos concordar. Você será o policial, e eu a pessoa que você quer manter viva, ou que vai usar para pegar esse sujeito.
Itachi se distraiu pensando sobre como a relação paciente-terapeuta realmente não funcionaria mais, quando a última parte o pegou com um baque. Seus olhos se estreitaram em ofensa.
— Do que você...
— Não terminei. — O dedo foi de encontro ao lábio de Itachi, que continuava sem reação, o fitando ainda mais incrédulo com a ação. — Eu sei que é assim, você é um Uchiha, Itachi. Você quer me usar como isca, pegar esse cara é sua meta de vida, e você faria tudo, passaria por cima de tudo por isso. Não o julgo. E eu também quero destruir esse cara, por Sasuke. Então essa será a condição. Eu não quero nada de você além disso. Carinho, compreensão, não preciso disso.
Itachi tornou sua face impassível, escondendo o que realmente achava de toda essa situação. Seus olhos se tornaram frios, algo que fez Naruto se esforçar para se manter no lugar onde estava. Se esforçar para não tremer com o que fazia.
Não podia ter Itachi próximo de si, ou ninguém. Nunca mais.
— Que assim seja então, Naruto Namikaze.
Naruto assentiu e se empertigou, saindo de perto dele e dando um passo para trás.
— Então diga o que tenho que fazer.
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Naruto parecia um boneco lhe obedecendo. Itachi odiava isso, mas também manteve suas opiniões para si. Não entendia o que acontecera na sala, não entendia nada do que o garoto fazia, mas iria respeitar o que ele queria.
Apenas quando chegavam na delegacia ele viu algo nos olhos azuis. Era desprezo, e raiva. Parou o carro e ficou parado em frente ao prédio imponente.
— Se queremos que isso dê certo, terá que me contar sobre o porquê falou aquilo sobre a polícia de Konoha. — O garoto riu sem humor e se preparou para abrir a porta, mas o impediu a travando, ouvindo um rosnando e encontrando os olhos azuis o fitando raivosos. — Não estou perguntando isso à toa. Eu tenho que saber se quero impedir que em sete dias receba seus restos na minha caixa de correio.
Naruto o olhou desconfiado. E então abriu novamente o sorriso que Itachi tanto odiava.
— Eles nunca me serviram, por assim dizer... mas não se preocupe Uchiha, logo que chegar lá dentro eles vão lhe contar a merda que fizeram.
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O garoto parecia tranquilo do outro lado do espelho. O rosto vazio enquanto respondia às perguntas com um nível de sarcasmo tão inacreditável que Itachi tinha certeza de que Sasuke havia feito um aprendiz dele.
Para completar, o contato visual intenso no rosto sério confundia os interrogadores. Itachi nem mesmo tinha certeza se eles estavam percebendo o sarcasmo.
— Não está adiantando muito, não é. — O homem de cabelos grisalhos falou ao seu lado e Itachi suspirou.
— Ou talvez ele esteja falando tudo, apenas com a acidez usual.
E isso não dizia muito no quanto estava se tornando familiar com a peste que já sabia disso?
Kakashi o olhou de forma estranha.
— É você que sempre dúvida das testemunhas. E você tem que admitir que essa situação é estranha. Ele recebeu a carta e ficou calado. Tinha uma cabeça na geladeira dele. Ele disse que lutou com alguém, mas as câmeras não captaram ninguém no corredor e ele mora no quarto andar. Ele tem um histórico contra ele, ainda por cima.
— O que aconteceu? — Itachi perguntou, não escondendo a curiosidade.
— Eu havia acabado de ser transferido para cá, então não sei bem os detalhes. Ibiki pode lhe explicar melhor. O que sei é que houve um acidente na casa do tio do garoto, ele devia ter onze anos. — O homem fez aspas no acidente. — Foi uma grande confusão, mas a conclusão final foi que durante uma festa na casa do tio, dois homens entraram no quarto da criança. Estavam bêbados, algo aconteceu lá dentro, e eles acabaram mortos. Um teve um trauma craniano por um taco de baseball, o outro caiu da janela e morreu na hora. Deu uma grande repercussão na época. Você não lembra?
— Não realmente. Eu trabalhava no caso da Kyuubi, não tinha muito tempo.
Kakashi assentiu em entendimento, já sabendo como o Uchiha era quando ficava focado em algo.
— Na época, Ibiki não era delegado, ele assumiu no meio da bagunça. O antigo delegado culpou inteiramente o garoto: ele tinha problemas psicológicos, se tornara violento e matara os homens. Mas havia várias questões, como o que dois homens adultos, sem nenhum parentesco com o garoto, faziam no quarto de uma criança no meio da noite?
Itachi olhava para Naruto através do vidro. Imaginava um Naruto de onze anos: bem menor, magro e fraco. Sentiu um arrepio só de pensar.
E ao lembrar o olhar vazio que vira nele ao falar sobre o quanto era sujo.
—Abuso. — falou ecoando o pensamento do outro. — Eles estavam lá para abusar dele.
—Foi o que alguns ecoaram, mas a família dos dois homens era poderosa. Eles eram homens de família, queriam abafar o assunto. — Kakashi colocou ênfase no 'homens de família', deixando claro o seu desgosto pela alcunha. — Quando Ibiki puxou arquivos, viu que o menino por diversas vezes viera a delegacia pedindo ajuda, mas não mais do que Menma Uzumaki, o irmão mais velho. Menma havia saído de casa logo ao engravidar a prima. Os dois saíram de lá, de acordo com ele, temendo pela segurança do bebê que Nagato, o pai da garota, havia tentado fazê-la abortar. Imediatamente Menma veio a delegacia e acusou o tio por maus-tratos e abuso sexual da filha e prostituição deles dois. Ele queria tirar o irmão imediatamente da casa do tio.
Itachi fechou os olhos, a situação se desenhando em sua mente, lembrando do garoto que havia visto naquela lembrança, da criança sorridente que parecia louca pelo irmãozinho. Itachi conseguia entender o desespero dele, ter que salvar o bebê e a garota, tentar voltar pelo irmão. A culpa por tê-lo deixado.
— Infelizmente, o antigo delegado era amigo da família e as acusações foram ignoradas e jogadas para debaixo do tapete. Os dois passaram a ser ameaçados pelo clã e cercados por todos os lados. Com oito anos, o irmão mais novo fugiu pela primeira e não última vez e veio para a delegacia pedindo ajuda. Eles o mandaram de volta para Nagato. Ele sempre acabava enviado de volta para casa.
"A polícia de Konoha não é a exatamente um lugar onde eu poderia pedir ajuda, Itachi. Um antro de corruptos, comprados, abanando a caudinha para as famílias ricas de Konoha. Cada vez que eu precisei de ajuda, tudo o que recebi de lá foi um chute e uma passagem de volta para o inferno. "
— Quando a situação estourou, o antigo delegado abriu. Ele não conseguiria esconder o que havia feito, que havia enviado uma criança que pediu ajuda de volta a um pedófilo, repetidas vezes. Ibiki se viu em uma sinuca de bico. Para qualquer lado que tentasse se mover ele causaria um maremoto.
Itachi odiava isso em Konoha. Por muitas vezes se perguntou como, apesar de tudo, o distrito Uchiha poderia ser o lugar com mais ordem do lugar. Konoha, com seus clãs e sua política, era um campo minado. Sasuke havia caminhado nesse campo minado com maestria invejável, pisando nos calos de muita gente, mas sempre fora do alcance.
— Por um lado, era claro as intenções dos homens ao entrarem no quarto do garoto, o que transformava o assassinato em legitima defesa. Por outro, um menino magro, fraco e machucado matar dois homens, mesmo que em um surto, era muito estranho. Se ele acusasse os homens de tentativa de estupro, iria contra as famílias Fuuma e Inuzuka, clãs poderosos em Konoha. Se acusasse o menino de assassinato, atingiria os Uzumaki, e teria a carreira destruída. E para piorar, o antigo delegado havia deixado o caso uma bagunça.
O homem parou por um instante, e então suspirou.
— O que aconteceu?
— Eles fizeram um acordo. As famílias. Não falariam nada do estupro e transformariam o assassinato em um acidente. O garoto tinha problemas psicológicos. O pai se suicidara na sua frente. Um amiguinho havia morrido afogado quando tinha 8 anos. A mãe morrera em um assalto, que possivelmente ele havia visto. A mente do menino, segundo todos, era pifada. Então alegaram as mortes a um surto, o que faria tudo apenas uma triste tragédia. Ele foi internado em Suna na mesma semana.
Quando o homem terminou Itachi respirou fundo, tentando acalmar a fúria e indignação que lhe corroía por dentro com toda a história. Quando finalmente conseguiu falar, suas palavras eram baixas, com fúria velada.
— Venderam o garoto. Como moeda de troca.
Kakashi assentiu, olhos acinzentados fitando o garoto do outro lado do vidro com a expressão triste e cansada. Vendo-o assim, ali na frente deles, imaginando tudo o que ele, o irmão e a prima haviam passado, tornava a história ainda pior.
— Há muita coisa sobre os clãs de Konoha que você não tem ideia, Itachi. Faz com que seu tio pareça um santo homem amém.
Pelo menos Madara tinha uma ordem de proteção as crianças, nenhuma delas poderia ser tocada no distrito.
— Isso é algo perigoso de se sair falando assim, Hatake.
Ambos se viraram, encontrando o olhar frio de um ruivo baixinho, ao lado de um loiro com cara de maníaco.
Sasori e Deidara trabalhavam na delegacia a mais tempo que Itachi. Eles não eram exatamente amigos, mas também não era inimigos. Isso era mais do que Itachi poderia dizer da maior parte da população da força policial da cidade.
Pelo menos aqueles dois faziam o trabalho deles, por mais excêntricos que fossem, o que fazia com que preferisse trabalhar com eles do que os demais.
— O clã Uzumaki monopoliza muito de Konoha, incluindo aqui dentro. — Sasori comentou de modo casual, se pondo ao lado dos outros dois, olhando através do vidro.
— Sasori ficou curioso sobre o garoto Uzumaki, hn.
Quando o homem loiro falou isso com divertimento, Sasori lhe lançou um olhar mortal, que foi ignorado.
— Mas essa é uma ovelha desgarrada. — Sasori continuou.
— Você trabalhava aqui na época? — Itachi deduziu e o outro confirmou com um aceno.
— Ele cresceu, mas o reconheceria em qualquer lugar do mundo.
Deidara falou com a mão no vidro, analisando a figura miúda atrás dele de forma curiosa. Naruto estava brincando com uma xícara vazia de café e ignorando os homens lhe fazendo perguntas.
— Não estávamos nesse departamento, mas o inquérito do 'incidente' passou por mim depois que a bagunça foi controlada. E vou dizer o que eu acho, hn.
Sasori suspirou como se dissesse um "lá vem".
— Foderam com a cabeça desse menino. Ele bem pode ter matado toda essa gente.
Kakashi suspirou, o que era quase um revirar de olhos para ele.
— Quando o primeiro crime aconteceu, ele tinha 2 anos, Deidara.
— E quem pode garantir que existiu apenas um Kyuubi, Hatake?
— A hipótese de um imitador foi descartada há anos. — Itachi falou finalmente. — As letras das cartas são da mesma pessoa, isso já foi provado.
— Isso não quer dizer nada. — Deidara apontou para o Uchiha com uma cara feia. — Não descarte minha hipótese!
— Se ele fosse um assassino, acho que seria mais plausível ele matar pessoas do clã dele, afinal, foram as pessoas do clã que desgraçaram com a vida dele.
—Estamos falando de um garoto de dezoito anos, nanico e com asma. — Kakashi interpôs. — Parece que um vento forte vai derrubar ele.
— Aparências enganam. Se eu fosse esse garoto, e se tudo que ele falou na época foi verdade, eu me vingaria. Eu não o culparia de matar os culpados.
— E sobre o perigo de comentar essas coisas aqui? — Itachi falou de forma casual, os olhos no garoto ainda.
Não que ele discordasse de Deidara.
— Ainda mais se levar em consideração que o tio do garoto vem buscá-lo hn.
Isso o fez paralisar e virar rápido.
— O que disse?
Deidara olhou alarmado ao ouvir a agressividade no tom de voz de Itachi.
— Ei, não atire no mensageiro, Uchiha. Não conseguiram contatar mais ninguém, e mesmo emancipado ele precisa de supervisão enquanto a investigação está aberta, ainda mais pelos problemas psiquiátricos. Ele não devia nem morar sozinho devido ao processo anterior.
— Ibiki puxou também outro envolvimento dele em algo estranho. — Sasori completou. — Anos atrás policiais foram em cena por alguém ter entregue uma foto de um crime para uma criança no parque. Nunca descobriram onde a foto foi tirada, até agora. A criança era ele, a pessoa que chamou a polícia, foi seu irmão, Itachi. Ibiki quer falar com você sobre isso.
Itachi franziu o cenho, tentando entender as implicações da situação. Se fosse o que ele estava pensando... balançou a cabeça.
Jogou a teoria para o canto da sua mente, se preocupando com algo mais urgente.
Nagato Uzumaki não iria encostar em Naruto. Ele havia prometido que o protegeria e por Deus, ele faria isso.
— As acusações contra o tio dele... — Kakashi questionou, também alarmado. Ele sempre teve um fraco por ajudar crianças e agora Itachi percebia que o homem estava mais afetado com a situação do que havia pensado inicialmente.
— Ibiki foi contra isso, Hatake. — Sasori o interrompeu. — Mas infelizmente ele não comanda tudo sozinho aqui dentro. O tio dele está vindo. E vai levá-lo, a menos que alguém interfira. — Sasori olhou para Itachi com intensidade. — Alguém tão poderoso quanto um Uzumaki. Que possa bater de frente com eles.
Itachi não precisou de mais nenhuma dica. Voltou a face impassível e puxou o celular sob o olhar dos outros. Apertou o número que o direcionaria para a chamada conhecida.
Logo a voz divertida do outro lado atendeu.
— Me ligando, Itachi? Suponho que não apenas para perguntar sobre meu dia...
— Preciso de seus serviços.
A voz do outro lado ficou séria.
— Então deve ser algo grave. Você só pediu minha ajuda uma vez, querido sobrinho.
Notas finais
Em Suna, Naruto se vê caindo na insanidade após o trauma que sofre, incluindo os abusos de Nagato e o descaso das pessoas do lugar. Com seus 'dons' mais desenvolvidos, ele agora consegue não apenas ver, mas sentir a morte das pessoas e ter contato com os fantasmas do lugar. Após um desses abusos, em que Nagato age estranhamente, Naruto sai de um episódio dissociativo e tenta suicídio. Ele vê os fantasmas de Kushina e Minato, que tentam o impedir, mas ele não os reconhece mais e não lembra mais de Menma. Quando ele está morrendo ele se depara com uma figura estranha que lhe é estranhamente familiar, ao qual diz que aquela ainda não é sua hora.
Agora! Sobre Nagato. Ele é um personagem muito difícil de escrever aqui, como foi da primeira vez. Ele foi uma vítima de abuso sexual a vida inteira também e é uma pessoa profundamente doente. Isso não perdoa o que ele fez com Karin, Menma e Naruto, de nenhuma forma, porém se explica o ciclo pelo qual ele passou. Ninguém nunca o salvou e ele foi consumido. Inclusive, ele esteve no exato lugar de Naruto uma vez, quando Kushina foi embora e o deixou. A diferença é que Menma voltou por Naruto, Kushina não conseguiu olhar para trás, fugindo do trauma e do horror da sua família. Mais sobre isso será falado à frente. Só saibam que não estou justificando o que ele fez, mas explicando como aconteceu.
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