Capítulo X - Corvos
Aviso: Abuso infantil , descrição de injúrias, abuso sexual (mencionado e implícito, segunda parte em itálico)
Não há na natureza paixão mais diabolicamente impaciente como a daquele que, tremendo à beira dum precipício, pensa dessa forma em nele se lançar.
Edgar Allan Poe
ESTAVA CAMINHANDO PELA PRAIA ONDE HAVIA PASSADO PARTE DA INFÂNCIA. Com as mãos nos bolsos do casaco, ele observava a brisa balançando os cabelos de Menma ao longe, fios avermelhados voando ao redor de um rosto que não havia envelhecida um dia sequer desde a última vez que havia o visto.
Sasuke caminhava ao seu lado, em uma proximidade confortante, como se ele nunca houvesse ido embora. Desviou os olhos de onde seu irmão acenava perto da enseada, observando confuso que havia mais pessoas com ele, imagens se retorcendo e pouco distintivas daquela distância. Uma das sombras acenou para Naruto, cabelos longos flutuando com a brisa de uma forma que lhe era familiar, mas que não conseguia concluir em uma identidade.
Acenou de volta, e voltou a colocar as mãos no bolso do casaco para encarar o homem ao seu lado, que havia parado de caminhar, se recostando na murada de pedras próximas ao calçadão. O rosto de Sasuke não havia mudado também, em nada, e Naruto se viu avidamente o observando. Ele havia o chamado, todos os dias, mas ele nunca havia aparecido.
Naruto temia desviar os olhos e nunca mais o ver.
Os grasnados altos o fizeram desviar de forma relutante sua atenção para a praia. Alguns corvos caminhavam pela areia no lugar das usuais gaivotas que lembrava, voando por cima do teto dos albergues e indo em direção ao porto. Menma estava caminhando até eles, as sombras o seguindo, mais distintivas a cada passo. Ele podia notar que todos eram homens e que no total havia sete deles.
— Você acredita que as pessoas são boas, mas propensas a fazer o mal, ou más e propensas a fazer o bem, Naruto?
A questão abrupta de Sasuke não era uma surpresa, ele sempre havia o feito questionar tudo. Voltou o olhar a ele novamente e notou que ele observava o mar de forma intensa. Sasuke sempre havia sido sua biblioteca ambulante, a pessoa a quem poderia perguntar qualquer coisa e ter alguma resposta conclusiva. Ele nunca havia perdido a paciência com suas milhões de perguntas também, por mais que elas fossem estranhas.
Ele nunca havia se irritado em responder as perguntas de uma criança tão quebrada que precisava questionar ações normais a qualquer ser humano, e sempre saia do seu caminho para lhe explicar o que Naruto estava sentindo quando ele mesmo não conseguia entender. Menma e Karin tentavam, mas eles mesmo não conseguiam funcionar boa parte do tempo, apenas agiam por puro instinto.
Os três Uzumaki viviam constantemente no olho de um redemoinho, sendo tragados em um turbilhão se sentimentos que na maioria das vezes nem conseguiam nomear. Menma e Karin haviam conseguido se apoiar um no outro, se ancorar, enquanto Naruto permaneceu à deriva, fora do alcance.
Sasuke o ajudava a finalmente parar e respirar. O ancorar no mundo real. O tornar real de novo.
— Eu acredito no mal porque eu o vi. E eu acredito que ele é que move todas as pessoas.
— Mas você já viu o bem também.
Sasuke brincou com uma pequena pedra entre os dedos, voltando a caminhar pela encosta. Naruto o seguiu, olhando os próprios pés mergulhados na areia úmida.
— Todos fazem o bem esperando algo em troca, mesmo que sem consciência disso.
— Somos o bem e o mal, e somos o homem entre o bem e o mal. — Sasuke recitou de forma ausente. — Naruto, eu sempre acreditei que o que leva alguém bom a fazer o mal é o medo.
Naruto ergueu o rosto para seus olhos, intrigado.
— Então você acredita que todas as pessoas são boas? — Rebateu, cético. Não era algo que esperava ouvir de Sasuke. — Nagato não me parecia uma pessoa muito boa.
— Nagato é um produto da sua criação. Isso não inválida ele ser um monstro, e não significa que um monstro não pode nascer um monstro. Todos podemos fazer o bem e o mal, mas nem por isso somos apenas bons ou apenas maus. Somos o anjo, o demônio e o homem em um só. Eu não fujo disso, ou Nagato, ou você. Essa sempre foi a luta da humanidade, mas o que determina qual vai dominar o espaço é você mesmo.
Naruto parou de caminhar, o olhando de forma ansiosa. Sasuke parou alguns passos à frente.
— Por que está me falando tudo isso?
— Porque você vai assistir essa luta, esse ensaio, da pior forma possível.
Naruto fechou os olhos confuso e sentiu uma mão gelada em sua testa. Não havia percebido quando Sasuke havia chegado tão perto.
— Muita dor está por vir. — A voz do outro soou baixa — Sozinho, você não vai conseguir. Vocês precisam um do outro.
Ergueu a cabeça abruptamente, um som surpreso saindo dos seus lábios ao notar que os corvos agora infestavam a praia, os grasnados altos, olhos escuros o fitando em um mar escuro na areia. Naruto recuou, batendo em Sasuke.
—Não vamos deixar ele te machucar.
A voz saiu em um tom arrastado, sufocado, perto do seu ouvido. Naruto virou a cabeça para Sasuke e notou o ferimento no peito dele, por onde escorria sangue. O líquido escuro escorria pelo canto da boca dele, de onde saia o som engasgado, tossindo enquanto mais sangue escorria entre suas mãos, caindo na areia.
— Sasuke! —Ergueu as mãos, tentando estancar o sangue, um soluço saindo do seu peito quando as pernas dele cederam, levando os dois de joelhos na areia. — Não, não, não me deixa, Sasuke! Me diga o que fazer! Sasuke! Sasuke!
— Só você pode o ajudar agora, otouto.
Menma estava ao seu lado, a marca do tiro na testa, sangue sujando as suas roupas. Atrás dele estava Neji com sua boca costurada, um homem albino com as órbitas vazias, outras sombras crescendo, ganhando formas torturadas.
Naruto não conseguia se mover, o sangue de Sasuke em suas mãos, tentando tapar um buraco em seu peito.
— Só você pode ajudar a todos nós. — Menma caiu de joelhos ao seu lado, a voz baixa e urgente.— Você tem que lembrar, Otouto. É o único jeito. Lembrar do bem e do mal que o anjo caído mostrou há tanto tempo atrás.
Naruto queria perguntar quem era ele, e quem era esse anjo caído, mas sua voz não saiu. Algo estava o sufocando, subindo por seu esôfago. Tossiu, as mãos tocando sua garganta, sentindo algo se mover ali.
— Ele está vindo por você de novo, você tem que lembrar.
Tossiu mais forte, um som agonizante em busca de ar. O bico saiu primeiro, depois a cabeça, enquanto um corvo começava a sair de sua garganta, grasnado e o rasgando por dentro.
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Foi o barulho abrupto que o acordou: Um grito abafado e engasgado que fez os pelos da nuca se arrepiarem, o fazendo ficar de pé de imediato, saltando da cama com anos de experiência em situações repentinas.
Itachi apareceu no quarto com a arma em punho e encontrou os lençóis emaranhados no chão. A luz do abajur estava acessa como deixara, iluminado os livros infantis que tomavam toda a parede direita do quarto. Aquele havia sido o quarto de Sasuke quando ainda quando moravam naquela casa, e ele não mexera em quase nada desde então. Raramente alguém entrava ali, mas não havia outro lugar para colocar seu hóspede forçado.
Procurou o garoto, espreitando a presença de algum perigo que havia causado aquele grito de terror, mas não havia nada. Ouviu o som de vômito no banheiro, seguido por uma respiração difícil. Entrou ainda com a arma e ligou a luz do lugar, encontrando o garoto debruçado sob a privada, voltando a vomitar.
Suspirou e colocou a arma na prateleira de cima, longe da vista do garoto. Se debruçou por trás dele, removendo os cabelos cobertos de suor da sua testa. A pele dele estava queimando, mas não era apenas isso: Reconhecia aquele som chiado muito bem, a pele repuxando entre as costelas a cada respiração. Asma, o garoto era asmático.
Toda a chuva gelada de mais cedo provavelmente havia desencadeado a crise, e Itachi o dar um anti-inflamatório não esteroide não deveria ter ajudado.
Era o que me faltava.
— Você tem um inalador? — Perguntou em um sussurro calmante. O garoto negou, ainda sem conseguir falar. O afastou da privada suavemente quando viu que não sairia mais nada, sentando-se no chão ao lado dele. — Okay, vai ficar tudo bem.
Itachi o recostou contra a parede, o inclinando ligeiramente para frente, como fazia com Sasuke nos momentos de crise, que foram muitos durante infância e adolescência. A roupa do pijama era larga nele, então não havia constrição ali. A clínica mais próxima era do outro lado do distrito, mas tinha certeza de que conseguiria o levar lá na metade do tempo.
Estava pegando o celular quando percebeu que não seria preciso, a respiração dele estava mais compassada, a crise passando enquanto o acalmava.
Itachi tocou no cabelo suado, sentindo seu peito se acalmar à medida que o garoto respirava melhor. Ele se sentia incomodado por ter sido pego desprevenido, anos atrás isso não teria acontecido. Itachi se ergueu rapidamente, vasculhando o gabinete do banheiro até achar um dos termômetros que tinha pela casa. Mais do que depressa o colocou debaixo do braço do garoto, que parecia dócil e quase não responsivo, o que era um sinal preocupante considerando o que já havia percebido do quanto ele odiava que o tocassem.
— Por quê? — A voz do outro saiu em um sussurro, o fazendo voltar a atenção a conversa. Itachi o olhou calado, esperando o teor da questão. — Por que ele está sempre perto de você?
Sua mão paralisou na testa quente e o fitou confuso. O rosto do garoto estava corado pela febre, os cabelos ensopados de suor, a boca entre aberta a cada respiração arfante entre as crises de tosse. Os olhos, desfocados, foi que denunciaram que ele provavelmente estava delirando.
O som interrompeu o que falaria e removeu o termômetro, xingando baixo ao ver o número que apareceu.
Itachi o ergueu depressa, o erguendo nos braços em direção ao chuveiro. Mesmo que aquilo pudesse fazer retornar outro ataque de asma, ele tinha que abaixar a febre imediatamente ou logo ele iria convulsionar.
— Eu sempre soube que tinha alguém, desde o dia... que me viu tocar...Ele sempre estava ao seu lado, mas eu nunca vi quem era...É como Neji, ele agora fica perto de Hinata o tempo todo... o tempo...todo... — A enxurrada de palavras continuou perto do seu ouvido, em sussurros delirantes.
A menção do nome Neji intrigou Itachi, ele conhecia aquele nome, era o mesmo nome nos autos do garoto que fora morto há alguns dias. Seria o mesmo? E do que ele falava?
Itachi praticamente chutou a porta do box, ligando o chuveiro gelado nos os dois. O garoto esperneou, quase caindo, tentando sair em pânico.
Itachi o colocou de pé, passando os braços ao redor dele e o segurando no lugar e sustentando o peso do seu pé machucado para que não piorasse a lesão. Os movimentos não pararam, sons de desespero, as mãos tentando se libertar da imobilização, se tornando cada vez mais difícil de o segurar com a água o tornando escorregadio.
Itachi permaneceu paciente e imóvel, mesmo que seus lábios estivessem se tornando azulados com a água fria.
E de repente ele parou. Tão subitamente que pensou que ele pudesse ter apagado.
— Eu não passo de um monstrinho sujo... — A voz saiu em um murmúrio sem vida e Itachi tentou ver seu rosto, alarmado. Os olhos azuis estavam desfocados por baixo do cabelo loiro ensopado. Em segundos percebeu que ele estava dissociando. — Que gosta de provocar.
Foi tudo muito rápido. A porta se abriu de uma vez e ele virou o rosto segundos antes da pancada o pegar ainda sob o chuveiro. A mão agarrou sua nuca e sua testa foi de encontro ao box de vidro com violência.
— Você se acha muito esperto, não é? — O homem sibilou enquanto caia atordoado, o corpo castigado pela água.
Olhos azuis se arregalaram alarmados, uma a mão pálida segurando o sangue que saia do corte feito pela pancada na testa. Rapidamente tentou passar pela mente alguma coisa que teria feito, mas nada lhe veio que pudesse ter gerado a violência repentina. Ele havia se comportado, tinha certeza.
Há alguns anos ele aprendera a guardar suas previsões para si, a queimar seus desenhos sempre que os fazia, a ignorar o que via. Ele não precisa de mais um motivo para que seu tio o machucasse.
Tudo o que precisava era tentar manter sua sanidade, se desligar de tudo.
Embora estivesse cada dia ficando mais difícil.
Nagato continuava o encarando enfurecido enquanto o sangue descia por sua testa, não estava conseguindo o estancar. Ele se aproximou depressa, jogando-o de volta contra o box, molhando a ambos e apertando seu pescoço apenas o suficiente para não o sufocar.
— Eu sei que o que andou falando com o professorzinho sobre nosso jogo. — O sussurro o fez se retesar e o sentiu sorrir perto de sua bochecha com sua confirmação não intencionar. — Ou acha que não sei o que aquele vermezinho andou falando para a polícia? Achava mesmo que eu não ia saber, Naruto?
Tossiu quando finalmente foi largado, deslizando para o chão. Por mais que estivesse entrando em pânico, tentou não demostrar terror algum e piorar ainda mais a situação.
— Acha que ele vai conseguir te tirar daqui realmente? Que era só chorar para um professorzinho de merda e que iam tirar você daqui e você iria para os braços do vagabundo do seu irmão e a vadia da minha filha? Então vocês três seriam uma família feliz, você como o mascotinho inútil já que a vadiazinha perdeu o estorvinho que estava esperando? — O homem falou com uma estranha calma enquanto se agachava de frente ao garoto nu a seus pés.
Manteve os olhos firmes, em silêncio, escondendo todo o terror que estava percorrendo seu corpo.
— Tenho que te lembrar que terei você comigo enquanto eu quiser que você esteja aqui. E eu posso fazer o que eu quiser com você, quando eu quiser, e ninguém vai te ajudar. Até que eu me canse de você.
Nagato o observara por quase um minuto em silêncio, buscando alguma reação. O cabelo loiro ensopado estava grudado em seu rosto, sangue fluindo do corte em sua testa, mas ele permanecia imóvel, nem mesmo parecia respirar. Os olhos azuis eram frios e distantes, longe de toda a doçura e inocência que lembrava que ele tivera logo quando chegara naquela casa.
Porém a expressão o traia em segundos, os olhos faiscando em puro ódio. E isso o fazia muito parecido com Minato quando o viu pela última vez, quando ele levara Kushina embora.
E como ele odiava isso.
Nagato via Minato no monstrinho todos os dias, por mais que ele tentasse fingir que não, se posar como uma vítima. O menino era um lixo igual o pai fora. Ardiloso, sempre tentando prejudicá-lo por trás de toda aquela aparência de fragilidade. Ele já havia fugido de casa pelo menos três vezes, e ironicamente a polícia sempre o trazia de volta, esperneando e chutando.
Nagato tinha que ser mais cuidadoso, ele não era como Karin, que aceitava tudo em silêncio, até o dia que havia se rebelado e fugido. O monstrinho era manipulador, uma hora ele podia convencê-los, como ele fizera com o professorzinho. Sua sorte é que foi avisado a tempo. Tinha amigos na polícia, e eles o chamaram para que explicasse a situação. Tudo foi visto como um mal entendido, mostrou os relatórios médicos de como o sobrinho era perturbado e saiu como um benfeitor por cuidar de uma criança problemática que nem mesmo era sua responsabilidade.
— Você não presta. – Sibilou, rindo e encarando o olhar de desafio com humor. — Deve ter seduzido o professorzinho, e agora ele foi demitido, e estou tentado a mandar fazer um servicinho para sumir com ele. — Olhos azuis se arregalaram, finalmente quebrando a expressão fria. — Outro que você mata, Naruto.
— Não! — Ele finalmente se pronunciou. — A culpa não foi dele! — o menino tentou se levantar, mas o empurrou de volta e ele gemeu quando a cabeça bateu novamente no box, fechando os olhos com a dor.
— Shhh. — Nagato falou com a voz mansa, como se falasse algo de importante a uma criancinha. Saboreando a vitória quando viu que ele estava a ponto de chorar. — Pensa que não percebo que fica provocando, até mesmo agora? Depois diz que a culpa é minha. — Agarrou a mão no cabelo molhado, o erguendo do chão e o jogando contra a parede com violência, o perdendo ali. — Você fica os atraindo, seduzindo com essa cara de animalzinho indefeso, quando não passa de um vermezinho com bonitos olhos azuis. Que ama me servir de puta.
Tentou segurar o queixo dele, mas escapou de uma mordida, o corpo se esperneando no seu agarre, tentando se afastar em vão. Nagato o jogou de novo contra a parede e ouviu um soluço, o corpo finalmente paralisando, percebendo que não adiantava lutar.
— Tudo isso é culpa sua... Você não passa de um monstrinho sujo, e sei que gosta disso, de provocar. Hum... Não é? Gosta que eu sei... Vai receber o que gosta então...
— Tudo isso é culpa minha... — A voz saiu distante, em um sussurro. — Não passo de um monstrinho sujo...Que gosta de servir puta...
Itachi estava paralisado, os olhos arregalados ao começar a entender o significado das palavras.
— Quem lhe disse isso?
Sua voz saiu em uma calma que não sentia no momento, sentindo seu coração se partir a cada palavra.
— A culpa é minha... a culpa é minha...
— Não é, não é sua culpa. — Itachi falou suavemente, desligando o chuveiro.
O colocou no colo enquanto o outro permanecia paralisado e submisso, sem qualquer reação quando o sentou na bancada do banheiro e o sustentou com as mãos nos ombros, o firmando para que ficassem cara a cara.
Ele precisava remover suas roupas molhadas, mas agora entendia o terror dele de mais cedo, teria que ser cuidadoso.
De repente todo o perfil de Naruto se ligava como um quebra-cabeças em sua mente. As roupas frouxas, a aversão total a aparência em esconder-se nelas, a aversão ao contato com pessoas, o fato de não falar com nenhum dos psiquiatras homens da clínica antes dele, só com Tsunade.
Seu pânico no banheiro mais cedo.
Os cortes no pulso...
— Eu sou um monstrinho...
— Olhe para mim, Naruto. — falou firme e calmo. — Você não é um monstrinho, quem falou isso está errado. E não vou machucar você. Ninguém vai machucar você aqui.
O garoto levantou minimamente o olhar, o rosto ainda avermelhado pelo estado febril. Sua expressão era totalmente diferente da que Itachi havia conhecido até aquele momento. Não havia a agressividade, ou ironia, apenas tristeza e cansaço, os olhos azuis distantes, tentando entrar em foco. Imaginava como devia ser difícil ele manter tudo aquilo para si.
— Eu preciso remover essas roupas molhadas e te trocar. Pode confiar em mim, eu prometo que vou te ajudar. — falou suavemente. — Não vou te fazer mal.
Por quase um minuto nada aconteceu, até que os ombros dele relaxaram debaixo das suas mãos. Itachi não sabia se aquilo havia sido uma permissão, ele parecia muito fora de si, mas aceitou o que podia, naquela situação não poderia esperar. Ficou surpreso quando repentinamente ele pendeu a cabeça em seu ombro, tremendo ainda, em busca de algum calor inconscientemente, mesmo que ambos estivessem ensopados.
Ao menos ele não estava tentando fugir ou esmurrá-lo. Ele estava confiando um pouco ao menos em Itachi. Itachi esperou para se mover, removendo a camisa dele com cautela e a jogando na pia, o enrolando em uma toalha enquanto fazia o mesmo com a parte debaixo do pijama, o enrolando em outra toalha. Durante todo o processo ele não se moveu, mesmo quando o colocou novamente nos braços e o levou para a cama, o sentando lá com cuidado enquanto pegava mais uma muda de roupas e o ajudava a se vestir.
Todo o processo era quase familiar, não a primeira vez que fazia algo assim por alguém, mas com certeza era a primeira vez que era alguém fora da família.
Quando terminava de abotoar a blusa do pijama, a cabeça dele novamente pendeu em seu ombro. Itachi paralisou no lugar, onde estava ajoelhado na frente da cama. Ele pensou que o garoto havia apagado, mas a voz suave, um pouco trêmula pelo frio se fez ouvir, o hálito quente perto do seu ouvido.
— Eu devia saber, era o cheiro dele em você.
— Cheiro de quem, Naruto? — Perguntou calmamente, uma mão indo até as costas tão pequenas, a outra afastando as cobertas para o deitar. Teria que ficar de vigília ali pela noite.
Itachi nunca poderia imaginar que estaria fazendo algo assim para um quase desconhecido, mas havia simplesmente algo naquele garoto que alertava todos os seus instintos, desde a primeira vez que havia o visto.
Itachi não conseguia apenas não ajudar, ou o ignorar. Principalmente agora.
— Sasuke... Era ele, o tempo todo... Perto de você. Mesmo agora... Ele está aqui com você...
As palavras o fizeram paralisar. Que tipo de brincadeira era aquela?
— Naruto?
Notou o corpo imóvel em seus braços e suspirou.
Ele havia apagado.
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Havia trocado de roupa quando finalmente pode se sentar na poltrona do quarto, observando o loiro problemático dormindo profundamente na cama que um dia havia sido de Sasuke. A febre havia passado totalmente. Seu peito ainda chiava, por isso iria ficar de vigília pela noite. Havia ligado para a farmácia 24 horas no distrito e abastecido o seu armário.
Ao olhar os remédios, suspirou, se perguntando o que diabos estava fazendo.
Estava se envolvendo demais.
O garoto era seu paciente e já havia lhe dado praticamente dois banhos e o colocado para dormir em uma noite só. E se o caso era o que pensava, tinha que avisar a Tsunade. O garoto podia ainda estar sendo abusado. Ela lhe dissera que o padrinho dele lhe pedira para cuidar dele. Com quem ele vivia? E seja quem fosse, como não dera falta dele? E ainda tinha a questão de como ele fora parar naquela estrada.
Aquele garoto com certeza era um grande problema, como se não bastassem os seus. Afinal, não voltara a Konoha para isso, aqueles atendimentos eram apenas para que Tsunade o ajudasse depois. Não significavam nada.
Por que diabos então aquele garoto estava lhe tomando tanto a atenção?
Claro, agora que sabia que ele provavelmente conhecera Sasuke as coisas mudavam. Ele tinha dezoito anos, segundo sua ficha. Se Sasuke morrera há cinco anos, ele tinha no máximo treze quando o conheceu. Se é se aquilo não passava de alguma armação. Todos sabiam que a forma mais rápida de chamar a atenção de Itachi era com Sasuke. Talvez o mesmo maldito que matara seu irmão havia enviado aquele garoto e agora o colocava em mais um jogo psicológico vicioso. Tudo era possível.
E ainda assim, de algum modo... Aquilo não se encaixava.
Olhou o garoto com cuidado. Os cabelos que tentara secar com a toalha sem acordá-lo caiam sobre seu rosto, o perfil pueril que já observara, que o fazia estranhamente parecido com Sasuke apesar das diferenças gritantes. O peito subindo e descendo coberto pela colcha, de vez em quando assaltado por uma tosse. E o tamanho, principalmente o tamanho e aqueles olhos agora fechados, o faziam parecer inocente e indefeso. E então havia as tatuagens que vira cobrindo toda a suas costas e as explosões de humor que o tornavam uma contradição quanto a isso e Itachi apenas se sentia mais confuso.
Ele parecia instável, tenso como uma corda a ponto de arrebentar. Ou uma bomba relógio. E Itachi se sentia cada vez mais impelido a descobrir como impedir isso. Ele queria, no entanto, entender mais que tudo a razão da sensação contraditória que sentia ao redor dele, pois apesar de se preocupar com aquele pequeno estranho, algo nele o repelia, o fazia se sentir nervoso e intimidado.
Com medo.
Itachi estava com medo daquele garoto, e isso não fazia nenhum sentido.
Com esses pensamentos em mente acabou cochilando na poltrona e acordou com o barulho de seu celular tocando.
Ao atender ouviu a voz de Kurenai, como todos os dias. E só então se deu conta de que horas eram e que naquela noite, pela primeira vez que entrara em Konoha, não tivera nenhum pesadelo.
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Itachi acordou com um cheiro bom vindo da cozinha e muitas vozes pela casa. Primeiro pensou que estava em algum sonho, até que focou em uma das vozes, reconhecendo o tom meio escandaloso demais para um Uchiha.
— Não existe hora certa para comer fettuccine!
Obito?
— Falem baixo idiotas, vão acordar o outro.
— Prefiro ramen. — Uma voz rebateu mal-humorada.
Itachi abriu mais os olhos prevendo problemas. Obito, Shisui e... Naruto Namikaze?
Três problemas na sua casa, e, o que diabos estavam fazendo?
Levantou-se, seu pescoço doendo pela posição na poltrona. Procurou o celular e viu que eram quase oito da manhã. A cama ao lado estava bagunçada ainda, um lençol pelo chão e o pijama que o garoto usara seu estava lá, pelo menos esse dobrado de forma cuidadosa.
Itachi odiava bagunça e uma veia saltou na sua testa ao ouvir o barulho de algo quebrando no cômodo que pensava ser a cozinha. Ouviu uma risada de Obito, um xingamento de Naruto e um resmungo de Shisui.
Que ótimo.
Saiu pelo corredor, tomado por um cheiro bom e conhecido. Obito sempre foi o melhor deles em resgatar a raiz culinária italiana da família.
Seguiu pelo faro, vestido com um moletom negro e uma blusa cinza que fora dormir, os cabelos soltos um tanto bagunçados pelo sono e uma preparação mental para não matar ninguém quando ouviu mais o som de algo se quebrando novamente.
Apesar de ser um bom cozinheiro, e ter criado Kurenai quando os pais dela morreram, Obito nunca foi a pessoa mais cuidadosa. Bem o contrário, o homem era um desastre.
— Vocês são um desastre. — A voz de Shisui tomou o corredor, mais divertida do que deveria se ele queria realmente estar dando um sermão. — Querem pôr a mesa jogando os pratos, Itachi vai comer o fígado de vocês.
—Você é chato Shisui, parece um senhor de idade. Está parecendo o Itachi.
— E você tem mais de 40, se comporte como tal. — Viu que o outro tentava soar sério, mas algo o fez rir. — Ei! Pare de comer isso cru, loirinho!
Ouviu a risada de Obito somada e um resmungo.
Itachi estava cada vez mais intrigado com a cena surreal, ainda mais quando chegou ao batente da porta e viu sua cozinha com farinha pelo chão, cacos de pratos que Obito estava abaixado recolhendo, Shisui recostado na pia com um avental, tentando lavar uma pilha de panelas.
E Naruto, sentado de frente à mesa, com o pé machucado levantado em outra cadeira, enquanto comia macarrão cru e olhava os outros dois com cara de poucos amigos.
O primeiro que o percebeu foi Obito, que sorriu para ele, ainda agachado.
— Bom dia, bela adormecida. Estamos preparando o café.
Itachi tentou manter a sua face impessoal, tentando descobrir como aquilo estava acontecendo para saber como lidar com a situação bizarra, mas pela cara de Shisui ele falhou.
Shisui riu de imediato da sua expressão, o conhecendo o suficiente para saber o que ele pensava no momento, enquanto se virava e removia as luvas de lavar pratos.
— Viemos dar uma olhada em você. Madara estava preocupado por você sumir das vistas dele. Quando entramos encontramos o loirinho vestido em suas roupas e tentando chegar à porta pulando em um pé só, achamos que você não ia gostar se ele fugisse, seja quem ele for.
— Ele tem um golpe de esquerda bom. — Obito resmungou e só então Itachi notou que ele estava com o queixo machucado.
— Ele é arisco. — Shisui provocou, olhando para o garoto com um grande sorriso e uma colher voou em direção a ele, segundos antes de ele se defender com uma tampa de panela. — Mas no fim ficamos bons e velhos amigos.
— Em seus sonhos, pervertido do caralho. — O garoto resmungou com a cara feia — Deixa meu pé melhorar que ele vai direto para seu traseiro seu filho da... — O resto saiu em um resmungo, porque Obito tapou sua boca rapidamente.
— Esse baixinho tem a boca mais suja do que os becos do distrito Uchiha. Nem eu falo tanto palavrão.
— Como vocês tem a chave da MINHA casa? — Itachi perguntou falsamente calmo, assimilando a história enquanto notava que Naruto de fato usava uma roupa sua, e que elas o faziam parecer um palito enrolado em um saco de batatas. A camisa negra parecia quase um vestido, e a calça estava enrolada nos pés várias vezes. Ele parecia uma criança usando as roupas do pai, e Itachi teria rido do fato se não fosse toda a situação bizarra de seus dois primos assassinos e traficantes estarem em sua cozinha fazendo pasta Italiana enquanto o dito garoto problema os olhava de forma ameaçadora, soltando palavrões por trás da palma de Obito.
— Sério que achou que Madara não tinha uma cópia da chave da sua casa? — Shisui perguntou com um revirar de olhos e Itachi virou a cara entrando de vez na cozinha vendo o estrago nela. Suspirou. Sobraria para ele arrumar tudo depois.
O garoto desviou o olhar dele e continuou comendo macarrão cru até Obito lhe dá um tabefe na nuca e tomar a panela da sua mão. Itachi não sabia se ele lembrava do que havia acontecido na madrugada, afinal ele estava com delírios febris. Tinha que ir com calma nas perguntas agora, e mais do que nunca, queria saber quem ele era. A mente de Itachi era investigativa e curiosa e agora que havia começado não ia parar.
Shisui enxugou as mãos e suspirou: — Agora vamos explicando como esse baixinho veio parar na sua casa, Itachi.
— Você vai ver quem o baixinho quando eu acabar com sua raça. —Apesar da ameaça, ele não pareceu ameaçador, ainda mais vestido daquele jeito e com um bico emburrado enquanto tentava se livrar de Obito que apertava suas bochechas. Itachi riu e os outros Uchihas o olharam surpreso. Itachi NUNCA ria, há anos. Ele fez uma cara de "que foi?" e os outros deram de ombros.
— Eu também quero saber. — Respondeu com sinceridade. — Encontrei ele na estrada rolando um barranco no meio da tempestade, o que me lembra de perguntar. Como você foi parar lá, Naruto?
O lgaroto estapeou a mão de Obito e Itachi notou que ele tinha um pouco daquele receio no olhar pelo homem estar perto demais.
Itachi suspirou e puxou Obito pela camisa por trás para longe do garoto. O homem o olhou curioso, mas Itachi apenas negou com a cabeça com um olhar que não dava margem a objeções. Os outros dois trocaram um olhar curioso com as atitudes dele, mas não perguntaram. Apenas se recostaram a pia observando enquanto Itachi se sentava em cima da mesa olhando para o garoto, que olhava para o chão aborrecido.
— Então? — Itachi perguntou calmamente e o garoto finalmente o olhou, já recomposto.
— Minha moto quebrou.
— Você tem idade para pilotar? — Obito perguntou curioso.
— Tenho dezoito anos, imbecil. — O loirinho sibilou, ofendido.
— Sério? Pensei que tinha uns 14, já ia acusar Itachi de pedofilia. Se bem que 18 também...
— Calado. — Itachi o cortou e fez um gesto de zíper na boca. — E depois?
O garoto pareceu incomodado com as perguntas: — Não vejo em que isso possa ser da sua conta, Corvo psibláblá.
— Eu salvei sua vida e você me deve.
— Típico Uchiha.
Obito sussurrou e Shisui deu um tabefe em sua nuca o fazendo ficar em silêncio, fascinado com a interação na sua frente. Tinha algo de diferente em Itachi e Shisui queria saber o que era.
— Não pedi que fizesse isso.
— Mas me deve ainda assim, podia ter te deixado lá.
Só que você nunca faria isso, Itachi.
— Então se joga de frente a um carro e eu te salvo, ficamos quites.
O loirinho falava isso tão sério que Shisui não tinha certeza se ele estava brincando ou não.
— Ou posso te deixar onde te encontrei ontem. — Itachi respondeu com a mesma cara séria.
— Pensei que fosse meu psiquiatra, esse não é o tipo de coisa que se fala para um paciente.
E isso fica mais divertido. Shisui olhou fascinado de um para outro.
— E nem dar banhos e colocar para dormir. Então tudo bem, não é uma relação normal de paciente e médico mesmo.
O garoto finalmente perdeu a compostura, ficando vermelho.
Obito riu resmungando "Eu sabia!" enquanto Shisui apenas olhava abismado para o primo.
Naruto encarou Itachi de forma traída.
— Posso te constranger muito mais se não me contar. —Itachi deu de ombros e o loirinho ficou vermelho de novo, dessa vez de raiva.
Ele abriu a boca, mas sua expressão mudou de forma abrupta, as sobrancelhas franzidas enquanto olhava para algum ponto atrás de Itachi. Em segundos a expressão dele mudou novamente, passando de surpresa para incredulidade e Shisui apenas não tinha ideia do que estava acontecendo.
— Só pode estar brincando... — O garoto sussurrou, os olhos azuis desviando para as mãos.
— Não estou.
— Não estou falando com você, psibláblá. — O garoto rebateu e logo depois ficou pálido ao ver que todos o olhavam intrigados. — Ah, merda.
Ele desviou o olhar de volta para o ponto atrás de Itachi, parecendo aborrecido com algo. Itachi anotava mentalmente esse comportamento, cada vez mais intrigado.
— Tudo bem! Merda! Minha moto quebrou, alguém mexeu nela e ela pifou. Então um filho da puta correu atrás de mim, entrei na mata que margeava a estrada e cai naquele barranco, acordei aqui.
Para quem hesitava em falar ele falou tudo em um fôlego só.
— Quem perseguiu você? — Itachi continuou, sem se importar com os outros que olhavam de um para o outro como um jogo de tênis.
— E eu vou saber?
— Nenhuma suspeita?
O garoto o olhou agora, e Itachi notou que ele lutava em lhe contar algo, parecendo mais assustado do que queria demonstrar com o que havia acontecido.
Olhos azuis o encaravam como uma criança, contato visual fixo, testando sua confiança. Não soube quanto tempo eles passaram assim, se encarando. O garoto finalmente parecia que ia falar o que tinha em mente, que estava confiando em Itachi, quando a mão de Shisui, que eles não viram que estava os chamando, tocou no ombro tenso do garoto.
Tudo aconteceu muito rápido.
No mesmo momento o garoto se retesou, agarrando a mão de Shisui para a tirar dali, apenas para empalidecer bruscamente, seus olhos se arregalando, sua respiração acelerando ao ritmo de uma hiperventilação.
— Parem, não quero ver isso. — A voz saiu em um gemido sem ar, as mãos pequenas indo aos ouvidos, agarrando os próprios cabelos com violência.
— Namikaze? — Itachi chamou surpreso. — Naruto! Pare, está se machucando!
As unhas curtas que largaram os cabelos estavam na mesa, enquanto ele tentava escrever ou desenhar algo na madeira, se ferindo. Itachi as puxou dali, encontrando uma resistência absurda. Ele parecia ter uma força incrível durante o surto, levando ambos ao chão com as cadeiras por cima deles ao tentar se livrar do toque de Itachi.
— Pare! Naruto! Pare agora! — Falou com autoridade, a voz firme e calma.
Para sua surpresa o garoto parou de se mexer e o olhou. Os olhos azuis estavam desfocados e cheios de lágrimas. Itachi tinha o imobilizado, segurando suas mãos acima da sua cabeça enquanto estava sentado em sua cintura, tendo cuidado para ele não machucar ainda mais a perna já injuriada durante aquele surto.
Naruto desviou os olhos de Itachi, estranhamente dócil. Sua cabeça virou e encontrou os olhos de Shisui, que estava parado no mesmo lugar, confuso e apreensivo com a situação, o rosto culpado sem saber o que havia feito para causar a reação no garoto.
— Você vai morrer. — A voz rouca e ofegante era direcionada a ele, Shisui. — Por ela, vai morrer por ela...Por Kurenai...
Itachi arregalou os olhos, assim como todos os demais. O adolescente gemeu, tentando mover os pulsos presos e encarou Itachi, olhos fechados com força, lágrimas escorrendo pelo rosto e expressão dolorida.
— Do que diabos você... – Começou, mas parou quando notou que o corpo estava amolecido abaixo do seu.
Itachi saiu de cima do outro devagar, sentando-se no chão ao lado do corpo desacordado. Todos estavam em silêncio mórbido. Ele o pegou nos braços e o levou com cuidado para o sofá, indo pegar o kit de primeiros socorros para cuidar dos dedos feridos.
Shisui segurou seu braço antes que pudesse sair da sala, o rosto pálido. Obito estava logo atrás dele, a face estranhamente séria olhando para o garoto no sofá.
— Quem é ele, Itachi? — o primo perguntou, hesitante.
Itachi sacudiu a mão que segurava seu braço e Shisui o soltou.
— É o que quero saber também.
E ele ia descobrir, agora mais do que nunca.
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