HENDERY ⇾ Good days
●❯ ───── 「 🌐 」 ─────❮●
Hendery encarou a figura séria e pálida projetada na superfície do espelho chanfrado da cabine. Ele estava cansado e não sabia o que fazer. Seus únicos sentimentos eram solidão, desespero e talvez mais algum que pudesse explicar o porquê de ter gastado os últimos centavos que tinha na conta bancária numa aposta sem sentido na loteria. As chances eram patéticas, impossíveis, ele não podia ter cavado mais fundo a própria sepultura. E era por isso que encarava o espelho, porque o aluguel estava expirando e, a menos que quisesse parar na Ponte dos Desabrigados, ele teria de encontrar uma forma de conseguir dinheiro em pouco tempo.
Enxugou as mãos ao sair do banheiro, crente de que escutaria um noticiário na televisão informando a obrigatoriedade de se estender o prazo para pagamentos de aluguel. Era aleatório, tremendamente específico e, além do mais, também impossível. Mas manteve a esperança ao atravessar a lanchonete e encontrar seu prato ainda sobre a mesa do jeito que deixou ao sair. E assim que se sentou, olhou para fora por um instante, através do vidro lustroso, encarou o céu e viu uma mancha de um arco-íris estirada sobre a cidade. Viagem no tempo. Aquilo simbolizava uma viagem no tempo.
Há um século a humanidade havia descoberto a possibilidade de viajar temporalmente. A ciência não era a mesma do século XIX, tampouco da época digital. Não. Havia transpassado todo aquele sistema arcaico do antigo milênio. Agora a humanidade ocupava-se em consertar buracos e erros gravíssimos da espécie feitos há anos ou séculos atrás. Hendery, desde pequeno, assistia à parede-telão do seu apartamento como os filmes representavam todo aquele maquinário repleto de prismas e antenas. Aquela parafernalha tecnológica deixava manchas coloridas no céu, como se o arco-íris fosse um carimbo e sem querer caísse sobre o horizonte. A cada viagem, uma nova mancha. E parece que tinham descoberto tantas coisas ruins no presente, que agora o céu era colorido de tantas vezes que viajavam diariamente para consertá-las.
Pela pupila contraída, tímida pela luz, o céu colorido empenhava-se em refletir no rosto do jovem Hendery. Ele terminou a refeição com pressa, pois tempo era dinheiro. Lembrava-se de como apostara daquela vez: o ícone de uma casa, dois homens um ao lado do outro e, por fim, uma ampulheta. Há muito os números tinham sido abolidos como forma de aposta, eram limitados e facilitavam as chances de ter ganhadores. Então decidiu-se: ícones. Ícones seriam a nova forma de aposta. Eram inúmeros, incontáveis, qualquer coisa poderia ser um ícone. Uma televisão, um ventilador, um carro, um prédio, um sapato, um relógio, uma cadeira, um travesseiro, uma ponte, uma onda, o sol, uma mão, um bolo, uma montanha... Exatamente tudo poderia ser usado como ícone de aposta. Era simples: uma combinação com três ícones seria escolhida. Se fosse essa a sorteada, parabéns, o cidadão tinha o direito de pedir qualquer coisa ao governo. Qualquer coisa. Todo mundo queria qualquer coisa.
Eram tempos difíceis e sonhar era muito caro. Hendery queria uma nova casa, um novo par de sapatos, um novo emprego e, quem sabe, uma nova vida. Pensava em inscrever-se para jogos ou reality shows, pois as inúmeras competições poderiam lhe dar fama ou até mesmo lhe proporcionar uma bela quantia de dinheiro. Mas nada era assim tão fácil. E ele não tinha nada senão um cachorro para molhar a sua vida minguada de alegrias e celebrações. Por isso, deixou as botas de cano alto surradas na entrada do apartamento e deparou-se com o vira-lata marrom que pulava devido a sua chegada. Talvez aquele filhotinho que resgatara há meses de uma lixeira era, de fato, tudo que ele tinha naquele momento.
Provavelmente receberia seu salário na semana seguinte, poderia gastá-lo com o que precisava: aluguel, cachorro, comida e contas. Ele sentou no sofá encarando a parede-telão que estava sempre ligada, porque era impossível desligá-la: antes o barulho das risadas, trilha sonora e piadas alheias do que um silêncio mórbido que o fizesse desistir de tudo na vida. Haviam sido projetadas para nunca serem desligadas, apenas poderiam diminuir o volume. E assim Hendery o fez, já esticando o corpo sobre o canapé rasgado pelo tempo. Seu cachorrinho jogou-se num dos pés do móvel e ali ficou, como se já soubesse o que haveria em seguida.
As horas seguintes foram apenas um pequeno delírio, talvez um sonho. Pensou que era verdade, mas acordou suado e cansado. Um sonho intenso, daquele que faz questionar se estava mesmo dormindo durante aquele período. E assim que ergueu-se, tratou de preparar algo para comer e abrir a janela. Lá fora o mundo despencava pela chuva. Mas o mundo já havia, de fato, despencado há muito tempo atrás. Antes mesmo de Hendery nascer, bilionários, seguidos de milionários e assim por diante, zarparam da Terra. Foram todos para Marte, lá podiam viver. Haviam colônias humanas espalhadas pelo planeta, haviam descoberto tanto que notaram a possibilidade de uma certa sobrevivência por lá, criando uma nova política de estilo de vida. E a Terra, agora já feita de plásticos e ruínas, sem mato nem água doce, já não servia mais. Respirar era difícil. Comer era difícil. Beber era difícil. Se a vida era difícil, saíram desta vida. Havia planetas melhores por aí afora.
Os pobres continuaram por ali, operários, tentando sobreviver e resgatar o mínimo possível para se manterem vivos. O fato é que, sem as grandes corporações arrancando árvores para construir indústrias ou campos de futebol, deu um certo descanso ao pouco que sobrou de original daquele lugar. Mas era difícil. As ruas eram mórbidas e cinzentas, e de longe só podia-se ver montanhas sem gramíneas, lixos e restos de prédios. E, onde há pobre, também há ricos. Os ricos que ficaram por lá controlavam tudo. Haviam separado o governo, mas nada de grande na Terra podia acontecer sem a aprovação do governo de Marte. E, às vezes, Hendery sentia-se cansado de ver como a vida no planeta vermelho parecia tão futurista e bela, enquanto ele catava plásticos para tentar salvar o que sobrou daquele pedaço de terra e água. Mesmo assim, não sentia que podia pertencer ao arquétipo de herói.
Às oito da noite ele aumentou o volume do som da parede-telão, pois era hora do sorteio. Ele nunca tinha paciência para a loteria. Ou melhor, nunca prestava atenção. Olhou para o céu uma última vez, aquele colorido brilhante contrastando todo o ar asqueroso daquelas ruas. Ele tomou xarope para dor de cabeça e sentou, aguardando o sorteio. A moça sorria sem parar, girando uma manivela simbólica que faria o computador escolher, randômico, qual seria o primeiro ícone.
Quando a câmera jogou o foco no ícone escolhido, Hendery quase passou mal: uma ampulheta. Uma ampulheta! Havia sido seu último ícone escolhido. As mãos trêmulas agarraram a penugem escura do cachorrinho que não tinha um nome permanente, apenas era chamado de Plastic, pois foi encontrado enrolado numas embalagens. A tensão pairou, e o segundo apresentador gritava, com seu microfone estridente: atenção, atenção, irmãos e irmãs... Uma ampulheta! Uma ampulheta! Ícone de ampulheta!
O coração de Hendery batia acelerado. Mas ele estava decepcionado, pois havia escolhido este como último, não como primeiro. Mesmo assim, engoliu em seco. A cabeça ainda doía, não importava. Era agora ou nunca. O segundo ícone foi anunciado com mais animação que o anterior: dois homens ou figuras masculinas lado a lado. Hendery sentiu que iria passar mal, pois de repente levantou-se e tomou mais xarope. Quando sentou outra vez, escutava os gritos: olha só, olha lá! Esse ícone nunca antes tinha saído!
E, por fim, a moça girou uma última vez aquela manivela estúpida para sortear o que viria ser o motivo do colapso de Hendery. Não um literal, pois eram tantas emoções a serem assimiladas. Um ícone de uma casa! Uma casa! Hendery sentia-se extremamente feliz por ter acertado os ícones, embora tenha falhado com a ordem. Mesmo assim, havia algo, certo? Havia algo que ele pudesse ganhar, nem que fosse uma mísera quantidade de dinheiro para passar a semana com comida na barriga.
— Não importa a ordem! Não importa a ordem! — o apresentador gritava. — Será que depois de cinco anos temos um ganhador? Será que temos um ganhador? Ícones são difíceis de acertar, então será que temos um ganhador?
Aquela repetição tirava Hendery do sério. Mas ele estava tão feliz que nem ligou. Finalmente poderia ter o que queria. Finalmente poderia ter o seu tão sonhado desejo. Ele havia almejado aquilo há anos, por vezes chorando sozinho no escuro, relembrando de momentos há muito passados. Mas agora ele poderia ser feliz pelo menos uma vez naquela década, uma única vez. Poderia aguentar o trabalho, a dificuldade e o que viesse. Mas queria apenas uma coisa. Uma única coisa.
E foi essa única coisa que guiou-o pelo corredor do prédio do governo, pois estava lá nos seus melhores trapos para pegar o que era seu. Cumprimentou todos, sorridente como nunca estivera, e agradeceu os parabéns pela conquista. O moço do telão estava lá, com sua equipe cheia de câmeras e microfones. Cinco anos sem um ganhador naquela porcaria e olha só o show que faziam! Hendery não tinha tempo para criticar. Eles iriam pôr uma entrevista sua no ar, alterando a voz e embaçando a imagem para que ninguém o reconhecesse. Ninguém irá me reconhecer, ele pensou, só tenho um cachorro e às vezes nem tenho eu mesmo.
Sentado à mesa junto com os organizadores, ele disse:
— Quero uma viagem no tempo.
Um deles riu. Os viajantes no tempo muitas vezes eram pessoas instruídas, nascidas em berços melhores que um buraco qualquer de onde ele tenha vindo.
— Uma viagem no tempo é o meu desejo — repetiu, olhando os rostos de todos presentes na sala.
— Diga-me, senhor, para quando? — uma senhora fez o favor de questionar.
— Leve-me aos dias bons, aos dias de graça, quando ainda era difícil, mas tinha alegria... Leve-me a esses dias, por favor, e juro que iriam me salvar para sempre — suas mãos tremiam de nervosismo e desespero. Era demais aquilo? Era demais desejar tudo de volta? Desejar de volta o tempo que era feliz, tinha amigos e uma família?
— Não é permitido ficar por lá — um homem informou. — Nenhuma viagem no tempo tem propósito de permanência.
— Nem que seja um único dia... — sua voz falhou por uns instantes. — Por favor...
— Que dias são esses que você citou antes? — a senhora de antes tornou a perguntar.
— Dez anos atrás. Apenas dez anos — aquilo não faria nenhum mal.
Pediram que, por favor, ficasse um pouco fora da sala, talvez bebendo alguma coisa ou chupando alguma balinha com vitaminas. Ele não quis nada disso, apenas ficou sentado na poltrona branca, olhando a cidade morta pela vidraça. Ele quis chorar. Ele já tinha chorado demais. Às vezes o seu peito apertava em desespero, porque ele sentia que não havia nada mais triste do que aquilo. Apertou os dedos no tecido da capa da poltrona e chorou silenciosamente, com seus olhos ardendo de desespero. Todos os dias eram os mesmos, ele não sabia o que fazer. Porque... A vida era só isso, era? Acordar, correr para o trabalho, ovo frito no almoço, voltar para casa surrado de dor e esperar o dia seguinte chegar para a mesma coisa acontecer? Hendery estava exausto.
Ele havia perdido a si mesmo dez anos atrás. Talvez entre os lençóis da cama quente, ou se esqueceu em algum lugar que tenha se escondido para brincar de esconde-esconde com os seus antigos amigos. A real é que ele sentia falta de todo aquele frescor de outrora, sentia falta de tudo. E, além de tudo, sentia falta do seu irmão. Eles não eram tão próximos quanto Hendery agora gostaria que houvessem sido, mas eram irmãos. Era a única coisa que ele poderia ter na sua vida. Ele se detestava tanto... Hendery se culpava tanto... Chorava tanto... Queria ter chorado quando avisaram que acharam o corpo boiando na água poluída. Queria ter chorado por dias, semanas, meses. Mas ele não chorou. E só depois de dez anos, ele sentou um dia na escada, juntou os joelhos e jogou tudo para fora. Seus ombros tremiam até naquele momento.
— Senhor, pode voltar — avisaram por detrás da poltrona.
O rapaz enxugou o rosto e voltou à sala, sabendo que as pálpebras estavam avermelhadas e certamente iriam notar. Não ligou. Sentou na mesma cadeira de antes e esperou o que iriam dizer. E por exatas três horas, falaram e falaram. Falaram sobre a viagem no tempo, que não traz duplicidade à mesma época. Algumas regras, foram acrescentando, eram inflexíveis.
Se em determinado ano havia X quantidade de habitantes no planeta, não poderia surgir mais alguém além para aumentar esse número. Não, tudo tinha que permanecer o mesmo, para que não pudesse haver problemas com a linha do tempo. Então explicaram que viagens no tempo funcionavam por substituição: caso alguém já tivesse nascido num determinado tempo, sua atual consciência iria substituir a consciência do passado, tomando conta do corpo que tinha naquela época. Enquanto isso, manteriam seu eu do passado desacordado no seu corpo do futuro. Envolveu muitos termos que Hendery pouco conhecia, mas ele entendeu no fim das contas. Estava ansioso. Estava ansioso para virar criança outra vez.
Que se fizeram aquela máquina para tentar salvar a humanidade da estupidez, ele poderia salvar a si mesmo da tragédia que era aquela vida e dar um pouco de luz e emoção. Despediu-se de todos com um aperto de mão e voltou para casa, pois no dia seguinte ganharia seu prêmio, seu desejo seria realizado. Não queria fortuna, não queria fartura. Não faria sentido, tamanha era a infelicidade.
Dormiu ansioso e com fome. Acordou do mesmo jeito, porém um pouco otimista. Quando chegou à sede, tinha um olhar recheado de expectativas. Que seria que iria acontecer, afinal? Ele olhou o céu colorido, mas o chão era tão feio e pobre. Aquelas viagens não serviam de nada? Eles viajavam e viajavam e tentavam mudar, avisar, consertar... Mas o presente pouco mudava. Um dia, Hendery viu um pequeno matagal no caminho de volta para casa que não tinha observado no dia anterior. As pessoas comemoraram, pois significava mais ar puro. Tinham os que limpavam as imundices do mundo, tinham aqueles que plantavam florestas inteiras em busca de um pouco de ar. Mas todos comemoravam quando viam que algo do presente havia mudado devido a alguma viagem ao passado. Era um grande feito.
— Vista essas roupas e sente-se naquela cadeira — instruíram.
Hendery não podia acreditar que três ícones poderiam ter feito tanto pela sua vida quanto aquele momento. Trocou de roupa, vestiu um roupão de linho que lhe haviam entregue e caminhou lentamente até a máquina prismática com antenas. Era uma espécie de cápsula, e dentro dela havia uma poltrona que ele deveria sentar.
— Você pode acordar com náuseas — avisaram.
Hendery não ligou. Entrou naquela cápsula e sentou-se na cadeira. Engoliu em seco, escutando as últimas instruções antes de abrirem o teto falso do laboratório. Um jornalista que estava presente, anotando os acontecimentos, chegou a perguntá-lo quando ainda acomodava-se no assento.
— Mas, senhor, diante de uma infinidade de coisas para desejar... Por que uma viagem no tempo? — o repórter barbudo perguntou, inclinando-se para escutar melhor.
— Porque voltar no tempo e reviver os melhores dias da minha vida é o único desejo que eu tenho há anos — ele respondeu, após pensar por alguns segundos. — Viver um pouco daquilo outra vez. Só um pouco. Pra ver se me acho. Pra ver se mata essa vontade de tocar aquilo de novo, porque não consigo seguir em frente com toda essa pendência. Quero me consertar.
O diretor da viagem fechou sua cápsula, após lhe aplicar um sonífero. Aquilo o manteria em estado comatoso por algumas horas, pois assim o Hendery de doze anos não acordaria surtando num futuro esquisito e confuso. Além de, claro, não causar nenhum problema na linha do tempo, caso ele voltasse ao passado e comprometesse alguns acontecimentos. Mesmo assim, não havia o que temer. Caiu profundamente num sono pesado e um tanto sombrio.
Quando abriu os olhos outra vez, o sol rasgava sua pupila com um veemente brilho. Ele levantou-se abruptamente, mas ficou tonto, uma vontade de vomitar surgiu. Quando percebeu, sentiu que estava naquele mesmo graúdo e magricelo corpo de dez anos atrás. Ele olhou ao redor, notando cada detalhe do ambiente, o quarto claro e bagunçado. Os dias bons. Os dias bons estavam de volta.
Saiu da cama num pinote, agora correndo pelo apartamento. Pela janela, olhava o céu levemente colorido. Não estava tão intenso quanto no futuro, e ele ficou olhando para contemplar a beleza daquele cenário. Ainda que estivesse nublado e os chuviscos cortassem o ar, estava belo. Descalço e ansioso, ele desceu as escadas e encontrou seu irmão mais velho ensopado, cavando alguns buracos num canteiro morto em frente ao prédio.
— Gege! — Hendery, pequenino, saiu correndo para abraçá-lo. — Senti sua falta!
— Te coloquei para dormir não tem nem seis horas — o irmão mais velho cofiou os fios pretos do menor. — Está chovendo e você vai ficar doente, então é melhor entrar.
— O que está fazendo? — ele questionou, empurrando o rosto contra a camisa encharcada dele.
Havia sentido muita, muita falta do seu irmão. E só aquele momento foi o suficiente para fazê-lo chorar. E mais ainda, após ser envolvido pelos abraços do mais velho. Hendery não conseguia acreditar que era real, que estava abraçando seu irmão outra vez. Porque ele lembrava que havia ficado ocupado demais para não dar atenção ao irmão, uma vez que a televisão estava deveras interessante. E ele odiava aquela parede-telão, que na época não era uma parede inteira, mas parte dela, porque aquilo só o fazia ficar vidrado. Ele não queria mais aquilo. Estava tremendo.
— Você está chorando? — seu irmão questionou.
Hendery negou ao abanar a cabeça.
— Bem, é uma surpresa você estar aqui fora... — o outro acrescentou. — Mas é melhor entrar.
— Por que está cavando a terra? — Hendery questionou.
— Bem... Eu comecei a ter aulas. Parece que vou ser designado para replantar as árvores no próximo ano, então quero começar com a nossa casa — ele respondeu, largando o pequeno corpo de Hendery e agachando-se para retirar uns pedregulhos com as próprias mãos. — Quero que tenhamos um bom ar...
— Mas isso vai demorar para crescer — o menino cruzou os braços. — Não há nada que possa acelerar? Não gosto de esperar pelas coisas — e ele tentou imitar seu eu de antes, apenas para não parecer maduro demais ou alguém diferente. Não queria que as coisas ficassem estranhas.
— É, mas... É preciso — seu irmão ergueu-se outra vez para voltar a cavar. — Quando você estiver grande, talvez tenha algumas plantas por aqui. E quando estiver maior ainda, isso aqui tudo vai estar verde outra vez. Agora entre e vá se limpar, porque vamos sair para comer algo.
Sair para comer algo! Há quanto tempo Hendery não saía com alguém nem comia nada com alguma pessoa? Ele estava extasiado. Voltou correndo para casa, limpou-se com uma toalha umedecida que vendia nos mercados, porque banho d'água fazia mal ao corpo por conta da poluição e salinidade. Depois disso, encontrou seu irmão trocando de roupa. Encostou-se na porta, observando a distração do outro. Ele tinha um casaco amarrado na cintura, porque gostava do estilo daqueles cartazes gráficos de alguns séculos atrás.
E quando saíram, Hendery não foi egoísta em escolher um lugar da sua preferência. Deixou o irmão decidir. Comeram bem, ainda mais porque tinham um ao outro. E gostava de tocar o cabelo dele, abraçá-lo, sentir o cheiro, escutar a voz... Não podia esquecer nada daquilo. Estava prestes a desabar, a desandar, a ruir. Ele tinha medo de perdê-lo outra vez, não agora que estavam rindo juntos e observavam o céu ligeiramente colorido. Ele gostava de quão inteligente o parente era. Porque falava sobre inúmeras coisas, até mesmo as que o Hendery crescido nem sabia.
No caminho de volta, encontrou seus velhos amigos brincando. Sentia falta de todos eles. Com o tempo, iriam se afastar. Uns por conta de mudanças de morada; outros, por questões de empregos e ainda havia aqueles que simplesmente foram se afastando com o tempo ao ponto de nem se cumprimentarem quando se encontravam na rua. Hendery queria aquele dia de brincadeira com o seu irmão, também queria um dia de brincadeira com os seus velhos amigos. Queria brincar de sonhar, olhava para um e já sabia como seria a barba dele no futuro. Ou que o outro iria pegar de namoro com uma garota em poucos anos. Saber o que iria acontecer era bom, em partes. Porque quando ele se despediu do irmão para pilotar naves espaciais de brinquedo, ele viu o maior saindo de costas e desejou ser estúpido o suficiente para impedi-lo de morrer e mudar o curso da linha do tempo — ainda que tenha sido uma das primeiras regras do Diretor da Viagem: nada de mudar a linha do tempo.
Hendery sabia que algumas coisas deviam acontecer. Então correu com os meninos, de volta aos seus dias bons, para aprontarem em qualquer lugar pela última vez. Era a última vez. Saber que era a última vez era cruel, porque se quer aproveitar até o último minuto, chupar todo o resquício de felicidade para dentro da sua memória. E ele corria com aqueles joelhos alvos e curtos, tombava e caía, e a nave voava sobre eles, ele tentava agarrá-la no ar... O chão era lamacento e escuro, também não cheirava tão bem quanto gostaria. Mas era disso que sentia falta. De quando eles sentavam no meio-fio, vendo os carros flutuantes passarem rapidamente. E cantavam canções proibidas, escondidos dos superiores, porque eram jovens demais para perceber que aquele era o tempo bom e não era o que viria.
— Quando eu crescer, vou pilotar uma nave para Marte — um dos seus amigos dizia, e Hendery voltou-se para ele. As madeixas do cabelo estavam cheias de lama por conta das quedas. — E vou levar vocês junto. Vocês querem ir?
— Queremos! — gritaram todos.
Hendery sorriu triste, pois sabia que nada daquilo aconteceria. Aquele amigo, no máximo, deu a sorte de trabalhar com burocracia num escritório enfadonho. Sonhos eram uma droga. Hendery se sentia triste.
— Quando eu for grande — dizia o outro. — Vou fazer tudo que eu quero. Vou vestir os melhores trajes e vou aos melhores lugares... E todas as garotas vão querer ficar comigo, porque vou ser tão famoso aqui que irão dizer que mereço estar em Marte.
Hendery quis rir dessa vez. Porque ser jovem demais é achar que o futuro viria pra lhe abraçar, lhe dar liberdade e proporcionar os melhores anos da sua vida, que o que viria a seguir era lucro... Não era, não. Não era mesmo. Se assim fosse, Hendery teria pedido dinheiro ao invés de uma viagem estúpida para se lembrar de como era feliz num tempo tão simplório e pacato como aquele. Apenas um ano qualquer num buraco qualquer do mundo. Por que voltar?
Por isso, as risadas e as canções que voltavam a cantar, mas paravam quando alguém passava na rua. As corridas ao amontoado de plástico que algum órgão do governo deveria vir buscar no dia seguinte. As brigas para saber quem iria pegar os óculos de controle da nave de brinquedo que voava de verdade e eles fingiam que era mosca e pulavam, pulavam mais alto que podiam, para tentar alcançá-la e pegar. Era sobre os abraços que dava aos amigos, mesmo sabendo que, quando voltasse a dez anos à frente, não saberia nada sobre nenhum deles. Era sobre chegar em casa sujo de lama e seu irmão levá-lo ao rio para se limpar melhor. Porque a água limpa doce era escassa e já não sobraram muitas geleiras para derreter. O jeito era limpar-se no rio sujo.
— Ai! — Hendery gritou enquanto se lavava. — Tem algum ferimento no meu joelho... Está ardendo!
Estava ferido, provavelmente depois de alguma queda. E enquanto seu irmão enxugava seu corpo graúdo demais para a idade, Hendery encarou o horizonte, todas aquelas montanhas cinzentas engolidas pela neblina e a vibe extremamente nublada. Não valia a pena viver naquele planeta podre e doente. Remédios eram caros, eles não tinham dinheiro. Agora, sentado e olhando o rio, eles olhavam o mesmo horizonte. O mesmo horizonte. O seu irmão que, em breve, iria a uma excursão para ajudar a limpar o mar e o mar iria engolir tudo o ele que era. O mar e suas ondas violentas, tão cheio, irado. O mar já não queria ajuda. E ele iria tirar tudo que Hendery tinha de mais precioso.
E feliz da vida, também triste, encostou a cabeça no ombro largo do rapaz ao seu lado e chorou de felicidade e tristeza. Porque ele tinha medo de se sentir sozinho de novo. Tinha medo de sentar na escada e chorar como se não houvesse amanhã. Era assustador. Ele não queria que as coisas fossem assim.
Voltaram para casa pé ante pé, plantaram algumas sementes de plantas que Hendery não fazia a mínima ideia do que eram. Mas ele gostava, porque era algo que fazia com seu irmão. E ele encarava aquele menino alto e forte, arrastando a pá pela terra, sem saber que por dentro o mais novo urrava de agonia por ter demorado tanto para chorar pelo fato. Por sofrer pelo fato. Ele era garoto e nem entendia. Quando aquilo aconteceu, o falecimento, uns desconhecidos vinham lhe dizer. Ele não podia acreditar. E, à noite, escutou o choramingar da garota a qual seu irmão estava a enamorar na época. Ela chorava demais. Hendery não conseguia dormir. E aquela memória vai ficar sempre na sua cabeça, ele voltando no tempo ou não.
Quando sentaram-se ambos no sofá, Hendery já estava cansado. Ficaram comendo algumas besteiras enquanto assistiam à parede-telão que não ocupava a parede inteira. O programa era engraçado. Hendery não ria.
— Gege, sabia que eu te amo? — falou, repentinamente, ainda que não fosse muito bom com palavras. — Eu te amo muito. Muito obrigado por tudo. Obrigado por tudo que fez a mim, por ter simplesmente existido, por ter me permitido estar contigo todo esse tempo.
— Uh... Que conversa estranha... — o maior puxou seu pé para dar-lhe cócegas.
Hendery riu, pois aquilo era mais bonito que um simples "eu te amo" dito. Aconchegou-se no corpo alheio, quieto, lembrando das vezes que dormiu aos soluços por ter desejado ser ele e não o irmão. Era pra ser ele e não o irmão. Gostaria que tivesse sido ele. Implorava para que fosse ele. Tinha de ser ele, não o irmão. E eram esses pensamentos, esse desespero, que foi tomando conta da sua cabeça enquanto caía no sono. Ele não queria dormir, pois sabia o que aquilo significava. Ele não queria voltar para o futuro ou o presente ou o que fosse... Não! Hendery não podia simplesmente fechar os olhos, embora estivessem pesados e as pálpebras já se encontravam...
Assim que abriu os olhos, seu peito queria saltar do seu corpo, tamanha adrenalina. Aquilo já estava previsto, então trataram de tirar o Hendery adulto de fora da máquina feita de prismas e antenas. A viagem tinha acabado; seus delírios, iniciado. Eles avisaram que talvez ele voltasse um pouco eufórico demais, talvez desesperado. Mas não era esse o caso. Hendery tinha certeza que não estava se debatendo contra os funcionários porque estava louco, sofrendo por um efeito colateral. Hendery queria ter morrido no lugar do seu irmão. Preferia estar morto do que voltar àquilo novamente.
— Senhor, por favor... Calma, vamos usar alguns calmantes, calma... Não vai doer... Vê? Não dói, né? Calma, está tudo bem... — uma voz longínqua dizia em algum lugar dali.
Ele sentiu os músculos ficarem mais calmos, sentiu cair para os lados, fechar os olhos outra vez... Quando acordou, estava tudo em um silêncio mortal. Apenas disseram que deveria tomar um remédio a cada seis horas durante uma semana e que já podia voltar para a sua casa. Ele calçou suas botas folgadas e sujas, as mesmas roupas desbotadas, e partiu para longe daquele prédio horrível e frio.
No caminho para casa, ia pensando nas palavras do repórter: diante de uma infinidade de coisas para desejar, por que uma viagem no tempo? Por que, Hendery? Mas ele não sabia. O futuro era incerto e frio, como o vento que lhe estapeava a face naquela noite escura. Não sabia se viriam dias de chuva, músicas proibidas, naves de brinquedo e plantações a fazer. Mas ele sabia que, dentro dele, havia o pedaço quente do abraço do irmão, dos amigos, da terra que acomodou ao plantar. Porque no final de tudo, a vida tinha se tornado sobre aquilo: desejar a felicidade com tamanha veemência, que acaba por torná-la triste.
Ele deitou pra dormir naquela noite, abraçando seu cachorro como se estivesse abraçando seu irmão. Talvez aquele fosse mesmo o seu irmão. E talvez a felicidade estivesse chegando em breve. Respirou bem fundo antes de cair no sono. E desejou dormir bem, para ter fôlego para os próximos bons dias. E amanhã, talvez, ele veria as consequências do seu desejo em frente a sua casa: o desejo do seu irmão de que aquilo fosse apenas um mar de verde plantado pelos dois. Uma semente de esperança.
●❯ ───── 「 🌐 」 ─────❮●
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro