CHENLE ⇾ Casa dos Lírios
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Mesmo que todos chamem o que aconteceu de milagre, eu chamo de maldição. Nessas horas, me pego imaginando que seria melhor ter morrido. Se não bastasse a minha vida ter virado um filme de terror, sempre que deito a cabeça no travesseiro meu corpo se lembra daquela tarde cinza. O ar úmido me arrancava espirros daqueles, e já estava arrependido de ter saído só para comprar ramyeon. Tudo aconteceu tão rápido que, se me perguntassem, a única coisa de que tenho certeza era ter sentido cheiro de terra molhada. Minha bicicleta foi destruída, já meu corpo ficou dormente instantaneamente. Vi a luz do poste piscando sobre mim. Realmente achei que fosse meu fim. E então ela apareceu. O que quer que seja. Veio rastejando detrás das árvores na trilha. Se debruçou em mim e, se abaixando ainda mais, sussurrou em meu ouvido:
— Você me viu. — E repetiu: — Você me viu, você me viu, você me viu...
E sua voz ecoou dentro de mim até que eu perdesse minha consciência.
Aprendi da pior forma que, às vezes, é melhor manter certas coisas em segredo. Das primeiras vezes que questionei a identidade daquela menina, recebi olhares de pena em troca, como se meu cérebro estivesse debilitado ou sei lá o quê. Até me obrigaram a fazer exames de ressonância magnética, sessões com psiquiatra e tomar remédios que nem sei pronunciar o nome. Acredite, eu também queria que aquela figura fosse fruto da minha imaginação. Eu realmente queria. Mas ela me visitou outra vez. E outra, e mais outra... Sempre à espreita nas sombras, seja dia ou noite.
Agora o olhar que me lançam grita: LUNÁTICO.
Eu só queria minha vida de volta.
Minhas olheiras estão ficando fundas. Abaixei-me para enxaguar o rosto. Alcancei a toalha. Ao me endireitar novamente, em frente a espelheira, senti um bafo gélido tocar minha nuca. Todos os pelos do meu corpo se puseram em pé e um arrepio dolorido tomou minha espinha.
Me virei por impulso.
Não havia ninguém, ainda que eu sentisse sua presença. No instante em que me voltei a espelheira, lá estava:
VOCÊ ME VIU
Escrito a dedo no espelho embaçado. Quis fugir dali, porém, meus pés se prenderam no chão como concreto. Minha voz não saía e meu coração faltava pular pela boca. Lentamente algo se aproximou por trás. Embora fosse um borrão, vi sua silhueta pelo espelho. Esticou os braços, estava prestes a me tocar. O medo que sentia naquele momento era tamanho que meus joelhos tremiam.
Minhas cicatrizes do acidente começaram a doer.
— Me deixe em paz! — Consegui gritar.
As luzes piscaram e, junto a um forte vento que estapeou minhas bochechas, o sussurro fantasmagórico cessou repentinamente. Retomei o ar ao cair para trás, me chocando com a parede.
Acho que ela foi embora.
— Chenle, você está bem? — exclamou do corredor.
— S-sim!
— O que aconteceu?
— Eu escorreguei.
— Meu Deus, você se machucou?
— A porta amorteceu a queda.
— Precisa de ajuda para se levantar?
— Não mãe, estou bem...
— Certo... Não demore, o jantar está esfriando.
Apoiei ambas as mãos no chão e, com esforço, consegui ficar em pé novamente.
— Merda... — Sentei-me na beirada da banheira, apertando minha coxa.
Ergui a perna da calça de moletom. Até quando isso pretende doer? Toquei levemente a cicatriz que se estendia do meu joelho até a panturrilha. Sentia leves fisgadas à medida que o meu dedo percorria a pele sensível. Faz alguns dias que o inchaço foi embora, nem está tão feio como antes — talvez eu tenha me acostumado a olhar para ela —, no entanto, qualquer movimento que exija mais do músculo, ainda que seja só um pouco, a dor vem incomodar.
Apoiei-me nas muletas.
— E lá vamos nós, outra vez...
Ultimamente a comida já não tem o mesmo gosto. Não é culpa do meu pai, ele continua sendo um cozinheiro habilidoso. Teve a época em que culpei os remédios, contudo, agora tenho certeza que o problema sou eu. Comer não me dá mais prazer. Como se livrar da fadiga quando é sua alma que está cansada? Queria poder saber a resposta também.
— Pobrezinha... Espero que esteja bem. — Minha mãe comentou, encarando a televisão.
— Seria até melhor se ela realmente tivesse fugido de casa. — Meu pai me serviu e se juntou a nós na mesa.
— Obrigado. — Sorri levemente.
A menina da casa dos lírios. Era dela que meus pais estavam falando. Tudo que passava na televisão eram notícias sobre seu desaparecimento. Segundo a investigação da polícia, as chances de ela ter fugido de casa foram descartadas. Tudo que restou foram pistas que levavam diretamente à trilha perto do lago. Mais nada. Infelizmente, esse lugar virou febre entre os metidos a detetive por causa disso. É incômodo até ir comprar pão agora. Eles te enchem de perguntas, alguns pedem para gravar sua cara e pôr em vídeos. Podemos ser uma cidade pequena no interior, mas isso não significa que conhecemos todo mundo que mora aqui.
Me dá agonia ver os pais dela implorando por ajuda.
— Espero que a encontrem logo. — Minha mãe passou a juntar os pratos.
— Vocês acham que ela está viva? — Questionei, antes de tomar meus remédios.
Me olharam apreensivos.
— Prefiro acreditar que sim. — Meu pai concluiu.
— Eu acho que ela morreu.
Minha mãe me estapeou o braço sem muita força.
— Não diga essas coisas!
— Por quê? Só disse o que eu acho...
— Também nos disseram que você não voltaria para nós e veja só — meu pai falou. — Milagres podem acontecer.
Não refutei, embora não goste dessa coisa de ter voltado à vida milagrosamente, que eles sempre me fazem lembrar. Sou grato por minha família ter sido poupada do sofrimento, mas o que isso me trouxe? Um par de muletas e uma assombração.
Encontraram a pulseira dela perto do lago faz alguns dias. Isso me deu uma boa noção do que pode ter acontecido. As buscas no lago comprovam que não sou o único que pensa assim. Contudo, desejo que ela esteja bem também. Eu realmente desejo. Sempre que penso nela, meu peito dói.
Encarei as horas no relógio na parede. Huiqing já deve estar me esperando lá fora. Apertei minhas muletas para levantar.
— Tem certeza de que é uma boa ideia?
— Posso ter meus próprios pensamentos a respeito, mas isso não significa que eu não queira ajudar a encontrá-la.
Ficaram quietos por um instante. Minha mãe buscou meu cachecol.
— Não fique até tarde com os grupos de busca na trilha, entendeu? — Envolveu a vestimenta em meu pescoço. — Não se separe deles. E se escurecer muito...
— Vou tomar cuidado. Eu prometo.
Inverno. Que péssima época para desaparecer. Parece até que o universo está conspirando contra a garota. Se o destino for como dizem, será que esse era o dela? Ou funciona de outra forma? Espantei esses questionamentos quando enxerguei Huiqing me esperando no ponto de ônibus.
— E ele realmente veio! — Ela sorriu.
— Demorei tanto assim?
— Quase congelei minha bunda nesse banco.
Conheci Huiqing no hospital, ela é uma estagiária de enfermagem. Apesar de estar de folga no dia em que sofri o acidente, ela foi a primeira pessoa que vi quando acordei do coma. Era quem me fazia companhia quando meus pais não estavam no hospital e me visitava durante a fisioterapia. Desde então, viramos amigos.
— Huiqing, por que você quer tanto assim encontrar a garota da casa dos lírios? — Perguntei ao descermos do ônibus.
Me encarou, parecendo curiosa.
— Casa dos lírios?
— Eu perguntei primeiro.
— Hm... Eu não te contei? — Continuou andando. — Ela era estagiária no hospital.
Minha saliva ficou amarga de repente.
— Ah...
— Não se preocupe, não me ressenti quando me disse o que pensava sobre o caso.
— Sinto muito...
— Agora, minha pergunta, por que chamou aquele lugar de casa dos lírios?
— Quando era criança, eu e meus amigos gostávamos de andar de bicicleta na trilha e jogar pedras no rio. Um dia seguimos mais a fundo o caminho e encontramos uma casa. Havia uma mulher plantando vários lírios no jardim. Nunca tínhamos a visto antes, por isso começamos a chamar aquele lugar de casa dos lírios.
— Casa dos lírios... — Huiqing sorriu. — Ela ficaria feliz com esse nome.
— Quem?
Ela ignorou minha pergunta. Não dei muita bola, visto que já estávamos na trilha, então achei melhor me concentrar para não tropeçar. Caminhamos por alguns minutos, conversando pouco para não perder o foco.
— Veja. — Huiqing apontou. — O que é aquilo?
Havia algo entre as pedras na margem do rio. Senti o clima mudar à medida em que nós nos aproximávamos daquele objeto. O frio também estava aumentando. A sensação de perigo voltou.
Ah, não...
Nos primeiros dias em que viemos aqui, nada disso aconteceu. Era como se aquela coisa não me encontrasse aqui. Então, por quê? Por que agora? Não quero que a única pessoa que me trata como alguém normal me veja nessa situação, fugindo de algo que não está aqui.
Me abaixei devagar com Huiqing logo atrás.
— É um tênis...? — Estiquei a mão para tocá-lo, mas tive uma péssima sensação. — Huiqing, é melhor avisarmos a polícia sobre isso... — Olhei para trás.
Ela havia sumido.
— Huiqing? — Me levantei, com certa dificuldade.
A neblina estava cobrindo o caminho e as árvores. Meu coração acelerou. O silêncio era tamanho que conseguia ouvir minha própria respiração. Algo se moveu entre os arbustos. Pareceu lento de início. Então os galhos secos que se quebravam me deram uma boa noção de que, o que quer que estivesse escondido, começou a correr. Minha cabeça tentava seguir o som dos passos, entretanto, era como se a cada hora ele viesse de uma direção diferente.
O medo anestesiou minhas pernas, impedindo que eu me movesse.
— Não, de novo não... — Engoli em seco. — Huiqing! — Meus olhos percorriam a trilha. — Cadê você?!
Ela voltou. Posso senti-la se aproximando. Me olhando.
— O que você quer de mim?!
Tudo se aquietou num segundo. Me calei por impulso. Atrás de mim. Estou sentindo. Ela está bem atrás de mim.
— Chenle. — Huiqing sussurrou.
Me virei quase aliviado, até vê-la encharcada. Sua pele se via num tom arroxeado, como se estivesse morta. Os bolsos cheios de pedras. Calçava apenas um tênis do par.
Caí para trás, aflito.
— Você me viu... — Ela passou a se aproximar devagar.
— Não! Fica longe de mim! — Tentei rastejar com os cotovelos o mais longe que pude.
— VOCÊ ME VIU!
Agarrou meus ombros, virando-me para ela, e me chocou contra o chão. Seus olhos negros se conectaram aos meus e eu gritei instintivamente.
Puxei o ar com força, como se estivesse me afogando. Ao olhar em volta já era noite e eu estava no jardim de casa. Mas aquela não era a minha casa.
Eu me lembro desse lugar...
O jardim de lírios estava em sua plena glória. Contudo, uma mulher destruía suas folhas com uma tesoura e os arrancava com raiva.
Essa não é a mãe da garota desaparecida?
— Não toque no jardim da minha mãe! — A voz saiu de dentro de mim.
O que é isso, estou no corpo de outra pessoa?
— Você vai aprender a me respeitar Huiqing, seja por bem ou por mal!
Meu peito está doendo. Sinto as lágrimas escorrendo. Porém, essas não são minhas memórias.
— Fazer meu pai doar todas as coisas da minha mãe já não foi o suficiente para você?! — Agarrou o braço da mulher a puxando para trás. — Chega!
Com o braço a mulher empurrou Huiqing com força. Logo, a bochecha começou a arder.
Sangue?
Seu rosto havia sido cortado pela tesoura.
— Huiqing... — Arregalou os olhos. — Eu não...!
— Você é louca!
Correu para a trilha. A madrasta vinha bem atrás.
— Huiqing, espere!
Tentou segurá-la, o que as fez perder o equilíbrio, e rolaram morro abaixo. Senti Huiqing se chocando contra as pedras. A dor contribuía para que sua vista se tornasse turva. A mulher agora a encarava apavorada. Tossiu. A boca se preencheu com gosto de ferro.
Através de seus próprios olhos eu vi. A tesoura estava cravada no abdômen de Huiqing.
— Desculpe! — Suas mãos tremiam e, desesperada, ela retirou o objeto afiado. — Me desculpe...!
Gemeu de dor, piscando rapidamente. Estava engasgando com seu próprio sangue.
— O que eu faço...? — Olhou em volta com as mãos na cabeça. — O que eu faço...?
Está escurecendo, e simultaneamente o corpo de Huiqing perdia as forças. Percorreu os olhos pelos cantos, até ouvir o barulho de um carro na estrada mais ao lado. Avistou alguém seguindo caminho de bicicleta.
— ...corro... Socorro... — Seus olhos se conectaram com os do ciclista.
Espera... Aquele sou eu?
Vi a madrasta se levantar com a tesoura e correr na direção da estrada. Pelo susto, virei o guidão rapidamente me esquecendo do que vinha logo atrás. Fui atingido pelo carro. Já a mulher, se escondeu atrás da árvore próxima ao corpo da enteada.
Esses foram seus últimos suspiros, Huiqing?
O gosto amargo desse sangue que não é meu estava me deixando enjoado. Cuidadosamente, sua madrasta a arrastou pelas pernas.
Então é isso...? Esse é o fim?
Eram os pensamentos de Huiqing nesse momento. Ela está me mostrando tudo. A mulher colocou pedras em seus bolsos. Bem afastada da trilha e da casa dos lírios, ela a trouxe para dentro do rio. A empurrou fundo. Mais um pouco... E mais um pouco... "Eu ainda estou viva," Huiqing tentou falar. Mas já era tarde. Afundou nas profundezas daquele rio frio e escuro.
Abri os olhos com a sensação de que havia caído de um precipício. Minha respiração ofegante fazia meus pulmões doerem. Olhei em volta. A neblina havia desaparecido e aquela mulher também.
Estava de volta em meu corpo. Lágrimas escorriam dos meus olhos, uma tristeza profunda me preenchia.
Me sentei com as mãos trêmulas. Escondi meu rosto nos braços apoiados em meus joelhos enquanto soluçava. Ainda estava sentindo a dor dela.
— Chenle.
Era Huiqing. Seu semblante voltou ao normal. Parecia viva novamente.
— Foi você quem me trouxe de volta da morte, não foi...? — Perguntei a fitando. — Não era para eu ter sobrevivido ao atropelamento.
Ela emanava uma luz quente.
— No hospital... Por isso todos me olhavam daquele jeito. Eu conversava com algo que nenhum deles conseguia enxergar... Você sempre esteve... Morta.
Sequei minhas bochechas engolindo o choro.
— Você precisava de mim... Me salvou porque sabia que sua madrasta iria mentir.
— Mas você se esqueceu do que viu. — Huiqing finalmente falou.
Agora eu entendo.
— Então quer que eu faça minha parte — murmurei. — Tudo bem... Vai ficar tudo bem, Huiqing. Você não está mais sozinha.
Ela se ajoelhou na minha frente. Delicadamente me envolveu em um abraço. A angústia se dissipou do meu coração e a dor se foi em conjunto enquanto aquela luz me tocava.
— Obrigada.
E se desfez em pequenos fragmentos brilhantes, como se fossem vagalumes, até sumir por completo. No entanto, eu ainda sentia seu calor.
A pancada na cabeça me fez esquecer, mas eu me lembro agora. Ela me fez lembrar. Huiqing sabia que eu havia visto o que aconteceu e, em troca do favor, salvou minha vida.
Prometi cumprir minha parte, e assim o fiz.
O corpo de Huiqing finalmente foi resgatado daquela escuridão. Vi seu pai ter o coração despedaçado, porém senti a presença dela ao lado dele a todo instante. Espero que seja o suficiente para dar forças para ele seguir em frente.
A madrasta foi presa após confessar suas mentiras. Dar como perdida uma garota que nunca se perdeu. Será que se arrependeu? Ou se sente mal por ter sido pega? Acho que essa é uma questão da qual prefiro não saber a resposta.
Minha vida nunca mais será a mesma. Entretanto, não sou mais perseguido ou aterrorizado. Huiqing nunca quis me machucar, ou me assustar. Embora de início tenha sido assustador as vezes em que se materializou na minha frente, finalmente compreendi. Era ela quem se encontrava ferida e assustada.
Apesar de tudo, nunca me esquecerei da esperança que me deu quando tudo o que eu mais queria era desistir. Sempre que eu me sentia sozinho e desolado — no quarto do hospital, em casa, na rua —, era ela quem aparecia. Embora fosse um fantasma, seu coração não estava morto.
Obrigado por ter me confortado durante todo esse tempo, Huiqing. Se a reencarnação for real, desejo que você tenha uma vida longa e feliz. Mas se isso for pedir muito, tudo bem. Apenas volte como um lírio.
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