Capítulo 41
T h o m á z
Bato o pé freneticamente no chão, enquanto fico sentado olhando para um ponto fixo na minha frente. Eu parecia um maluco ensandecido. Ou estava a ponto de me transformar em um se continuasse naquela espera por mais um minuto. Já era madrugada, eu chutava ser quase duas e meia da manhã, e eu estava na delegacia. Mas que merda. Eu não conseguia apagar a raiva que acendeu em mim quando me arrastaram para cá por um motivo tão imbecil e por causa de uma briga com um filho da puta. O problema não foi a briga, esse era o menor dos meus problemas. A grande questão era que eu estava no mesmo lugar em que um galpão clandestino se localizava. E isso automaticamente me leva a ser um suspeito do que acontecia a poucos metros de mim. Pelo menos foi isso que o delegado me explicou. Agora eu só falaria mais alguma coisa na presença de um advogado, que no caso era a minha mãe. Eu fecho os olhos com força, pensando novamente no sentimento de culpa. O motivo por eu estar em Woodland era o aniversário da minha mãe, que era hoje, levando em conta por ser madrugada. Eu me odiava por isso, e mais ainda por fazer ela vir até aqui tentar me livrar não como um cliente, mas como o próprio filho. Todo o problema se estendia pela denúncia ter sido anônima, mas que o delegado suspeitava ser de algum morador que passava pela rua. Outra pergunta que os policiais se faziam era como moradores nunca denunciaram o galpão, sendo que a noite era bem movimentado. Talvez pensassem ser um bar ou um pub.
Mas eu sabia bem o porquê. E esse era um dos motivos por eu ter me enfiado nas lutas clandestinas com Bryan. 30% do lucro das lutas eram doados para uma ONG próxima. As doações eram feitas de forma anônima, e como era um bom dinheiro, nenhum representante da instituição reclamou ou questionou. O galpão se encontrava próximo de casas e prédios, sendo as residências muito próximas uma das outras. Leilões aconteciam nessa ONG pelos próprios moradores do bairro nobre, então constantemente recebiam visitantes de classe alta. Em um determinado ano, um dos representantes frequentou o galpão e reconheceu Dick, que era a pessoa que levava o dinheiro. Como todo o lucro era dinheiro em espécie, eles não tinham conta em banco. Querendo ou não, o dinheiro era fruto de algo sujo, não legal. E foi então que a notícia se espalhou. O dinheiro arrecadado e que aparecia misteriosamente na ONG, era diretamente ligado ao lugar movimentado que ficava no beco da rua. Para a surpresa e alívio dos caras do galpão, ninguém dedurou e nem denunciou, já que era lucro para todo mundo.
Eu nunca fui ligado e nem participava dessas negociações. Eu só fui saber disso por Bryan, em uma conversa rápida e isso é tudo o que eu sei. Agora a denúncia tinha sido feita pela minha briga, e não pelo galpão, ofuscando então o meu problema com Rato, que aqui era chamado pelo nome: Jonas Burck. Nós fomos colocados em áreas diferentes da delegacia por motivos óbvios. Quando o barulho de saltos se aproximou de onde eu estava, me recompus e levantei a cabeça. O olhar da minha mãe estava em mim, e eu esperava encontrar um olhar de raiva, decepção, mágoa. Mas a única coisa que eu vi foi alívio, o que me deixou momentaneamente atordoado.
- Thomáz! – Ela se aproximou mais e eu me levantei. No segundo seguinte seus braços me envolveram em um abraço apertado. Eu ainda não estava acreditando na reação dela. – Você está bem? Eu tive que telefonar para alguns contatos antes de vir para cá. Acordar alguém essa hora e dizer que precisa de documentos o mais rápido possível não é uma tarefa fácil.
Eu estava ciente que minha expressão estava a mais incrédula possível. Ela me avaliou e voltou a falar:
- O que foi? Eles forçaram você a falar alguma coisa?
Engolindo uma saliva que eu não sabia que eu tinha, encontrei minha voz.
- É... Bom, eu fiz o que você me ensinou desde sempre: se estiver em uma delegacia e encrencado, não diga nada sem estar na presença de um advogado, ou tudo o que você disser se voltará contra você em algum momento.
Ela sorriu, parecendo... orgulhosa?
- Isso mesmo! – Disse ela.
- Mãe. – Me aproximo mais um pouco, falando em voz baixa. – Como você pode parecer tão calma sendo que eu estou aqui, preso, no dia do seu aniversário?
Ela esboçou um sorriso de quem sabe das coisas e chegou mais perto de mim.
- Você nunca fez nada que não despertasse orgulho em mim, filho. Bom, só quando você quebrou o meu vaso de casamento, mas fora isso, nada. E você não se lembra do que eu disse há algumas horas? A sua felicidade vem na frente da minha. Eu já peguei toda a ocorrência e sei o motivo da denúncia. Mas agora não temos tempo para discutir sobre isso. O quanto melhor levarmos isso para um juiz e resolvermos o caso, melhor.
Olho rapidamente para ela.
- Levar isso para um juiz? É necessário?
- Bom, vamos agir na sua defesa, o que não vai ser tão difícil por ser uma briga entre dois rapazes na rua. Aos olhos da justiça isso não é considerado crime, mas você será interrogado como testemunha ou possivelmente como cúmplice dos atos ilegais que ocorriam no galpão naquele mesmo horário.
- Mas eu nem estava dentro do galpão, como posso ser cúmplice?
- Pelo documento que eu li rapidamente e que o delegado me entregou, seu nome constava nos registros de recebimento de pagamento, mas para a nossa sorte, seu nome foi constado na folha pela última vez, há dois anos. Então é como se seu vínculo com o local clandestino não fosse algo vitalício.
Penso no que a minha mãe acabou de dizer, absorvendo as informações. Então não é tão grave quanto eu pensava.
- E também tem mais uma coisa – continuou ela. – Os registros da tal ONG que recebia dinheiro deles, comprovam que os representantes da instituição estavam cientes dos pagantes. Então recai mais ainda para eles, já que são uma Organização Não Governamental, ou seja, são mantidos com doações, sendo a maior parte de seu lucro, um dinheiro ilegal.
- Porra...
- Thomáz!
- Desculpa. Bom, o que eu tenho que fazer agora?
- Pela gravidade que o caso acabou se tornando, será levado para o Tribunal o mais rápido possível.
- E o que eles podem perguntar para mim?
- Bom, coisas como o que você estava fazendo no local e naquele horário, o motivo da briga, o que você esteve fazendo no tempo em que seu nome não constava mais nos registros, o porquê... Coisas do tipo. E você só precisa falar a verdade. Nada de omitir alguma informação, porque ela pode ser essencial na sua inocência.
Concordo com a cabeça.
- Tudo bem, eu posso fazer isso.
...
Eu estava em uma cela provisória na delegacia há dois dias, o que era desnecessário na minha visão, já que eu não era um criminoso. O tempo estimado era que eu ficasse aqui no mínimo 5 dias até ser aprovada a audiência pelo juiz do caso. Mas eu tinha acabado de receber a notícia de que a audiência ocorreria hoje, e que seria daqui a duas horas. Eu andava de um lado para o outro, pensando em todas as respostas que eu daria para o juiz, advogado, promotor, o que fosse. Eu tinha tido uma conversa ontem com a minha mãe sobre alguns caminhos que o caso poderia tomar, e o que eu teria que fazer. As instruções foram para eu falar apenas quando me fosse solicitado, ter certeza nas minhas respostas e tentar não gaguejar ou mostrar dúvida nas respostas. E o essencial: dizer a verdade.
Uma hora e meia depois, eu estava treinando mais uma vez, tentando não ficar pensando demais no que poderia acontecer caso tudo desse errado e eu fosse acusado de alguma coisa que não tinha feito. Mas eu confiava na minha mãe de olhos fechados, e mais ainda na sua defesa, o que me tranquilizava mais. Um policial me escoltou para fora da cela individual. Passamos pela cela de Rato, que também estava sendo solto para ir para a audiência. Trocamos um olhar fulminante pelos dois segundos que nos encaramos. Eu só esperava que o karma acontecesse com ele pelo que fez e pelo o que disse para mim e que acabou nos colocando nessa situação. Eu sabia reconhecer que a culpa não recaía apenas nele. Eu poderia muito bem ter ignorado seus insultos e ir para casa, mas eu escolhi lhe dar uma surra, o que acabou resultando nesse problema. Minha mãe estava na frente da delegacia, me esperando, e me olhou com um sorriso no rosto assim que parei na sua frente.
- Como está? – indagou ela.
- Acho que bem, na medida do possível para quem passou dois dias dentro de uma cela e comendo comida fria. Eu não ligo pra comida, mas porra, que colchão duro.
- Thomáz... – Me repreendeu.
- Foi mal pela palavra, mas porr... – Respirei fundo, tentando me controlar.
Ela riu.
- Você parece um garoto ainda quando tento te repreender. – Ela fez uma pausa, e abriu um sorriso que eu não soube identificar. – Pronto para ficar de frente para um juiz?
Franzi o cenho para a sua pergunta, mas concordei com a cabeça, tentando passar uma confiança que eu não tinha.
- E você conhece o juiz, pelo menos? Sabe se ele costuma matar uma pessoa com o olhar, ou tem uma cara emburrada e não transmite nenhuma dica se eu vou me ferrar ou não?
Ela apoiou a mão no meu ombro e começamos a andar na direção do carro.
- Sim, eu conheço, e eu tenho certeza que o olhar dele pode ser capaz de matar você na hora que você o vir.
- Não está ajudando.
- Melhor deixar suas palavras para a hora certa. Não vai querer perder a fala quando encontrar com o juiz, vai?
- Não, eu não vou.
Depois que entramos no carro e o motorista deu partida, minha mãe me atualizou das últimas informações. Não tinha mudado muita coisa, mas fizeram uma busca no histórico dos envolvidos. Perguntei, agora para a minha advogada, sobre Bryan, e se ela sabia de algo, e sua resposta foi que ele tinha chances de ter alguma pena, mas não seria algo muito grandioso, visto que ele estava envolvido, mas sua participação nos negócios era quase mínima, mesmo sendo ele a pagar os caras que brigavam no galpão. O problema recaiu no chefe dele, que eu não conhecia.
Saímos do carro e subimos as escadas que levavam até o Tribunal.
- Preparado? – Perguntou agora uma advogada formalmente para o seu cliente.
Assenti, respirando fundo.
- Sim.
Passamos pelas altas portas de madeira e adentramos o lugar. Havia algumas pessoas dispersadas nos bancos, para assistir ao julgamento. Fui informado também que a audiência seria em partes. Hoje seria com as testemunhas, para em seguida ser os acusados principais. Eles já haviam recolhido informações em interrogatórios com o dono do local, o representante da ONG e mais outras pessoas envolvidas. Me sentei na cadeira atrás de uma mesa de madeira e minha mãe sentou na cadeira ao meu lado. Estávamos do lado direito, e Rato e o advogado dele, no esquerdo. Fiquei observando os policias se posicionando no canto. Um homem com uma espécie de túnica preta apareceu e se sentou do lado direito do palco que continha três assentos à nossa frente.
Perguntei para a minha mãe qual era a posição dele e ela me disse que era o Promotor. Em seguida, uma mulher se sentou na ponta esquerda. Vi um olhar de relance da minha mãe, mas ignorei.
A porta foi aberta novamente, mas eu não conseguia ver quem poderia ser. Eu relaxei na cadeira, esperando. Vi uma mão feminina apertando as mãos dos policias, algo que eu não vi os outros dois que entraram, fazer. E então a pessoa subiu no palco. E eu perdi o ar totalmente. Eu não sabia onde foi parar o meu oxigênio. Ou ele estava preso em algum lugar no peito, ou tinha fugido de mim. Eu poderia imaginar mil formas de isso ser possível, mas nenhuma se comparava com o que eu estava vendo bem na minha frente. Imediatamente eu me ergui na cadeira. Primeiramente, não era um juiz, e sim uma juíza. Ela cumprimentou os outros dois ao seu lado, e se sentou, analisando papéis à sua frente. Em nenhum momento olhou para o Tribunal. Meu coração estava tão acelerado que eu suspeitava que ele poderia saltar do meu peito a qualquer momento. Eu comecei a analisar ela inteira, e tinha a leve impressão de que minha boca estava aberta nesse momento. Seus cabelos continuavam compridos, mas agora mais arrumados do que os bagunçados de dois anos atrás. Eles caiam em ondas, arrumados, dando espaço para o seu rosto. O mesmo que eu não conseguiria esquecer nem se eu quisesse. Não consegui ver mais do que o seu rosto, porque ela estava sentada, e com o traje apropriado. Eu ainda não conseguia acreditar. Ver aquilo se passar bem na frente dos meus olhos era como passar muito tempo sem ver algo que você via constantemente, e que de repente estava ali, bem na sua frente.
Senti a mão da minha mãe na minha, mas não olhei para ela.
- Ela ainda não sabe que você é uma das testemunhas. – Ouvi sua voz sussurrando.
Como se instantaneamente, a expressão suavizada da juíza sumiu, e seu cenho se contorceu. Eu poderia jurar que meu coração saltaria pela minha boca a qualquer momento quando ela levantou o olhar do papel e sondou a sala, procurando algo. Eu sabia bem o que era quando seu olhar passou por Rato, e então se dirigiu para a direita.
Eu poderia nomear esse momento de muitas formas antes de vivencia-lo. Poderia dizer que fiquei sem ar, que o meu coração resolveu pular de dentro de mim de uma vez. Ou poderia dizer que tudo na minha vida, de repente, voltou a fazer sentido novamente. Mas nenhuma delas poderia nomear o momento em que meus olhos se encontraram com os dela. A palavra que descrevia esse exato instante não estava em dicionários. Era algo nosso, algo inédito. Mas eu poderia dizer que o mundo parou e o ar ficou mais pesado no instante em que a vi ali. Seu olhar não se desviou do meu nem por um segundo. Eu tinha medo de mover um músculo sequer e quebrar aquele contato que se baseava em apenas um olhar. Eu tinha medo de me mover e ela escapar de mim como eu já tinha deixado antes. Eu tinha medo de aquilo não ser real. E principalmente: eu tinha medo do que aconteceria no minuto em que nossa conexão acabasse e a gravidade voltasse a funcionar.
Nada poderia me preparar para o momento em que o meu olhar e o dela se fixaram pela primeira vez depois de uma eternidade. Nada, nem o meu coração. Aos poucos eu senti o meu coração batendo em ritmos mais controlados. E a sensação que já estava se apagando da minha memória voltou com tudo. Ela era a pessoa que poderia fazer o meu coração parar, mas também era a que fazia as batidas se acalmarem. Ela roubava cada suspiro meu, mas também os dava para mim.
Ela se levantou lentamente da cadeira. O Tribunal estava em silêncio. Todos respeitavam a juíza, a única que tinha o poder dentro daquele lugar. Seu olhar se manteve no meu, mas eu vi quando seu cenho se contraiu, e também vi quando seus lábios se moveram. Era como se todos os átomos tivessem resolvido parar de se moverem, deixando espaço para a sua voz chegar até mim. Era baixo, mas eu poderia ouvir como se tivesse sido sussurrado no meu ouvido.
- Thomáz.
E então eu sussurrei de volta:
- Giennah.
Encontrei essa foto e até tinha colocado no story do Instagram, mas vou colocar aqui porque ela é perfeita demais pra sumir e ter ficado lá só por 24 horas. Presentinho de Natal ;)
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