
II.| Segredos
Zénite e Nadir aguardavam impacientemente por Cefeida numa pequena e recolhida sala. A rata, que parecia que vivia com a cabeça noutro sítio qualquer do Multiverso menos no planeta iluminado pelo cometa, era extremamente ocupada e facilmente se esquecia dos seus compromissos.
O jovem de cabelo azul-cobalto ia folheando a papelada. O cão, com as patas dianteiras apoiadas na mesa, observava atento as páginas dos livros. E a roedora nunca mais chegava.
- Deve estar ocupada com os seus mil e um estudos e investigações. Nem deve vir. - Lamentou-se o rapaz. - E nós que decifremos Física Teórica sozinhos!
- Esperamos mais um pouco? Talvez ela venha. - Sugeriu o canídeo, esperançoso.
Quase que automaticamente, um pequeno ser acastanhado surgiu, empurrando a portinhola mais pequena recortada na porta. Muito apressadamente, atravessou a divisão e, ágil, trepou a perna da mesa. De pé, e já em cima do tampo, mirou de alto a baixo o humano e o Border Collie.
- Suponho que os vossos nomes sejam Zénite e Nadir. O Azimute falou-me de vocês. Já vos tinha visto algumas vezes nos corredores, mas como ando sempre atarefada nunca falei convosco. Qual de vocês é qual?
- Eu sou o Nadir. Ele é o Zénite.
- Prazer! É verdade que o Multiverso existe e vocês viajam entre Universos? Eu sabia! Os meus cálculos apontavam para a existência de constantes que não se verificam no nosso mundo. Mas como é que trocam para a outra dimensão? Provavelmente através de algum tipo de matéria que compõe os dois cosmos e esteja associada ao caos espacial, causando distorções na totalidade do espaço-tempo. E como é que conseguem sobreviver à mudança de Universo, não entrando os vossos átomos em desintegração? As duas dimensões devem ser semelhantes em termos de matéria e de energia, apenas com variações nas leis que determinam os fenómenos. - Cefeida falava sem parar, fazendo perguntas e respondendo a si mesma.
- Trouxemos alguns livros de Física de lá. - Informou o cão. - Talvez ajudem a compreender o funcionamento do outro Universo e sejam úteis em encontrar uma solução para trazer os desaparecidos de volta.
- Interessante. - Disse a rata, tocando os papéis com os seus bigodes. - Eles têm um sistema de escrita fonético, bastante diferente do nosso. Nunca tinha visto uma linguagem deste tipo.
- Eu sei ler algumas coisas. Posso tentar ajudar. - Ofereceu-se o jovem.
- Sim, é claro que pode ajudar! Vire a página. - Ordenou Cefeida, para espanto do humano que se apressou em voltar a folha.
Zénite passou um bom bocado a mudar páginas para que a rata analisasse. Achava aquela situação ridícula: um agente que fora, acidentalmente, parar a outro Universo, sem que lhe passasse pela cabeça a existência de algo mais para além do seu planeta numa dança cósmica com um cometa e mais uns quantos corpos celestes desabitados, e que conseguira voltar vivo ao seu lar, tinha agora como missão virar as folhas de livros gastos e velhos para que uma roedora, que ainda por cima o fizera esperar largos minutos, lesse.
- Penso que já estou a entender a lógica da escrita deles. Curioso! A gravidade no outro mundo é maior do que a nossa! Assim, os seus habitantes podem sofrer fraturas com simples quedas.
- Mas que grande conclusão! - Exclamou o rapaz, irónico. - Isso já eu sabia, e descobri-o da pior maneira. Estatelei-me no chão ao descer de um prédio que foi num instante. Levaram-me para um hospital e passei umas boas semanas todo partido e alguns dias em delírio.
- Como são os tratamentos médicos de lá? - Interrogou a estudiosa, não se apercebendo do tom sarcástico do outro. - São mais avançados que os nossos? Eles têm algum tipo de procedimento que ainda não tenhamos desenvolvido?
- Não sei, eu estava em agonia! - Protestou Zénite, sem paciência para os comboios de perguntas com que a rata o bombardeava.
- Que pena! Também parece que a água deles tem uma densidade menor do que a nossa. Aqui diz que a água é um fluído newtoniano. O que quererá dizer? - Questionou-se Cefeida, prosseguindo a leitura ávida dos papéis. - Eles não conseguem correr sobre a água! Afundam. Que surpreendente!
- O Afélio quase que se afogou. - Limitou-se a dizer o jovem.
O agente estava espantado com a velocidade do pensamento da rata, mas nada de novo e útil era acrescentado. Que lhe interessava que a roedora escrevinhasse longas demonstrações físicas para tirar ilações a que ele já tinha chegado empiricamente?
- Parece que sabe mais do que o próprio Afélio, mas não nos está a ajudar em nada. - Sussurrou Zénite ao seu irmão. - Não é com uma teoria revolucionária cheia de contas sem aplicabilidade na realidade que vamos trazer os nossos pais para casa. Não me admira nada que o nome dela seja Cefeida: uma estrela gigante muito brilhante, com pulsações que se traduzem na sua mudança constante de interesses de estudo.
- Tem paciência. - Pediu Nadir. - Ela é excelente no raciocínio.
O humano encolheu os ombros e soltou um suspiro profundo.
- Matéria Negra. Eis a chave para as viagens entre Universos. Porque é que não disseram? - Quis saber Cefeida, furiosa com a omissão de informação.
- Porque não nos deixou dizer! - Explodiu o ocupante de cabelo azul-cobalto. - Fala, fala, fala, e não se cala! É um grande defeito seu, digo-lhe já! Saber calar e ouvir os outros são grandes virtudes.
A rata engoliu em seco. Nunca ninguém tivera o descaramento de lhe dizer tal coisa. Mas agradecia. Desconhecia que o seu falar sem parar cortava a possibilidade de se expressar aos outros. Prometeu a si mesma, naquele exato momento, controlar-se, com vista a combater esse terrível defeito.
- A Matéria Negra tem de ser manipulada com bastante cuidado. É extremamente perigosa, pelos meus cálculos. E não se encontra na parte observável do Multiverso. Algo me intriga: como conseguiram esta substância num mundo tão diferente do seu? Seria preciso uma grande quantidade de equipamento sofisticado. Além disso, pelo que sei, não tem qualquer formação em Astrofísica...
O coração de Zénite acelerou subitamente a sua cadência. Nadir estava inquieto e abanava nervosamente a cauda baixa. Aquele era um segredo apenas partilhado pelos irmãos.
Cefeida aguardava ansiosamente uma resposta. Se o humano não tivesse mandado a rata falar menos, talvez se esquivasse à incómoda pergunta. Foi arrependimento imediato.
- Afélio chamava "Negrum" ao que os nossos vizinhos da outra dimensão conhecem como Matéria Negra. - O jovem tentava desviar a conversa.
- Como conseguiram a Matéria Negra? - Repetiu a rata.
- Tivemos a ajuda de alguém. - Acabou por admitir o canídeo.
- Alguém do outro Universo?
- Sim, uma cientista. - Esclareceu o irmão do Collie.
- Que imprudência! Divulgar a nossa existência para uma dimensão que desconhecemos completamente! As consequências podem ser gravíssimas. Somos sempre os "invasores", que quebraram as barreiras do Multiverso! Têm noção da vossa ação? Têm noção? - A roedora ficara fula, e admoestava os outros dois agentes.
- Não havia outra opção, Cefeida. Tínhamos de encontrar Matéria Negra para voltar para este Universo. - Argumentou Nadir.
- Voltar para casa e trazer uma guerra contra seres de uma outra dimensão? Foi uma atitude extremamente irresponsável, incauta, insensata, descuidada!
- Não há guerra absolutamente nenhuma entre Universos! Não seja exagerada! Não andámos com um cartaz no meio da rua a dizer a toda a gente "somos de outro mundo"! Uma única pessoa sabe da nossa existência. Qual é o drama? - Descontrolou-se Zénite.
- O mal está feito. - Queixou a rata. - Que hei-de fazer?
- Arranjar uma forma de transportarmos todos os desaparecidos.
- Tenho uma ideia de como fazê-lo. De acordo com as minhas deduções matemáticas...
Mas o rapaz não quis ouvir o resto da explicação. Se Cefeida tinha uma solução, era a única coisa que interessava. Tirou do bolso um recipiente de um material resistentíssimo de cor acinzentada com alguma transparência. Era possível observar um fumo escuro animado que tentava de tudo para sair da caixa. Parecia que o vapor tinha vida própria, tal era a forma desesperada com que se contorcia para abrir a tampa. Zénite agarrou cuidadosamente no animal de pelo castanho. De joelhos, encostou a palma da sua mão à almofada da pata de Nadir, que se sentara. Libertou o aflitivo fumo, que os envolveu. Os dois irmãos fecharam os olhos e, num suspiro, deixaram-se preencher pelo Negrum, que rodopiava nervosamente ao redor da rata boquiaberta.
- É uma amiga. - Disse o jovem de cabelos azuis com traços arroxeados, mesclados com o negro da substância que mais parecia uma criatura fantasmagórica.
A Matéria Negra sossegou. Num segundo, puxou os três seres vivos de respiração suspensa para um buraco inexistente tão fundo que era infinito.
(1429 palavras)
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