Capítulo 23: É natal
As semanas seguintes transcorreram calmas e sem nenhum evento de grande importância, a rotina finalmente tomou conta das minhas horas e quando eu percebi, havia se passado um mês dês da última vez que eu vira Álvaro Coimbra. O que eu posso dizer? Eu estava lidando bem com nosso término de um namoro nunca existente, tirando as horas em que eu passava chorando antes de dormir e quando tudo me fazia lembrar do seu rosto extremamente sexy. Maldito rosto sexy, pensei.
Devo admitir que não estava sendo fácil, por diversos motivos. Primeiro graças a minta mente pervertida que projetava a imagem do corpo nu de Álvaro em todos os meus sonhos.
Segundo, porque eu finalmente senti a exaustão, tanto física quanto psicológica, do meu trabalho no cafezal; de segunda a segunda, sem tempo de descanso. Saudade dos direitos trabalhistas. Eu me pegava sonhando com aquela palavra não muito dita por aqui, chamada feriado, enquanto arremessava com brutalidade os grãos de café no saco de batatas.
Terceiro, mas não menos importante, eu precisava de um gilete ou de uma simples cera para me depilar. Amaldiçoei-me todos os dias por nunca ter tido a curiosidade em descobrir como eram feitas aquelas ceras, eu poderia estar abrindo uma fábrica de ceras neste momento mágico da minha vida, mas não. Eu nunca pensara que um dia a minha descendência dos macacos fosse ficar tão evidente no meu corpo e aquilo me incomodava consideravelmente. A única vantagem é que todas as escravas por aqui eram tão cabeludas quanto eu e pouco se importavam com este fato.
Mas nem tudo era um mar de espinhos, algumas coisas boas aconteceram neste último mês. A mais importante é que eu não me metera em mais nenhuma confusão, o que era bom, já que os feitores não se interessavam mais em ficar me vigiando vinte e quatro horas por dia e eu poderia planejar outra fuga com tranquilidade.
Outra coisa boa foi a minha aproximação com Dante, ainda mais intensa que nos meus primeiros dias aqui. Éramos confidentes um do outro e grande amigos, para azar de Lurdinha, que vivia me fuzilando com seu olhar assustador.
Além desta amizade eu ganhei mais três, de Joana, Carla e Lah, que mostraram-se importantes parceiras do crime, sempre enriquecendo meu almoço com comidas nobres e raramente vistas como um peito de frango, pão morno, bolo de cenoura e ás vezes eu tinha a sorte de ganhar um pedaço da sobremesa. Se eu soubesse das vantagens em ser amiga das cozinheiras, teria me aproximado delas mais cedo.
A fazenda, no geral, também mostrava-se bastante tranquila, pelo menos eu não soubera de nenhum castigo aplicado em algum escravo, todos estavam com medo depois da morte de Diego. Dante dissera certa vez que era sempre assim, os escravos passavam a obedecer fielmente seus senhores, aceitando a condição de minoridade que lhe eram postas, mas depois de algumas semanas a revolta e indignação retornava sem aviso prévio.
Hoje o dia estava maravilhosamente agradável, eu recolhia os grãos sem reclamar, quando Dante apareceu de repente, agarrando minha cintura por trás.
– Boa tarde senhorita Ambrose– ele exclamou, mostrando seus infinitos dentes brancos– Sabe que dia é hoje?
– Dia de recolher grãos sem reclamar– afirmei, dando continuidade aos meus pensamentos.
– Não! Hoje será a ceia do natal.
– Natal?!– encarei Dante assustada, deixando meu saco de batatas cair no chão.
– Sim, por que a surpresa?– ele perguntou sem entender.
– Não pode ser natal, em que mês estamos?
– Dezembro...– ele disse, ainda confuso– Pelo que eu saiba o natal só é comemorado em Dezembro. Hoje é dia vinte e quatro, os senhores farão uma ceia na Casa Grande e seus serviçais assalariados estarão quase todos com a família. Ou seja...
As palavras de Dante desapareceram no ar, sua boca mexia mas eu não mais o escutava. Eu estava perplexa. Dezembro. Eu chegara neste século no final de Julho, portanto já se passaram cinco meses. Cinco longos meses longe de casa, longe dos meus pais e amigos, e parecia que meu retorno encontrava-se cada vez mais distante.
– Olívia!– Dante chamou, sacudindo meus ombros– Você está prestando atenção?
– Sim, claro– eu disse, saindo do meu devaneio.
– Então, o que você acha?
– Acho o que? Sim, eu gosto do natal.
– Você claramente não estava prestando atenção.
Olhei para o vazio, longe de Dante. Dezembro, um mês tão família, em que eu sempre viajava e passava um natal recheado de comida e carinho ao lado dos meus pais. A lembrança do nosso último natal estava tão distante, parecia uma poeira no ar.
– Desisto de conversar contigo– Dante gesticulou impaciente.
– Desculpa, desculpa– pedi– estava pensando em outras coisas...
– Espero que não seja naquele branco estúpido– ele disse com brutalidade.
– Não, não é nada disso– exclamei, sem gostar da maneira como ele se dirigia a Álvaro.
– Assim eu espero. Como eu ia dizendo, hoje será um dia com pouca vigilância, então se você quiser chamar as meninas, podemos dar um pulo no rio e comemorar.
Ou fugir, pensei.
– É uma boa ideia, vou falar com elas– sorri– Agora preciso terminar aqui, para passar na contagem dos grão ao final do dia.
– Certo, nos encontramos mais tarde então. Eu também tenho muito o que organizar para o natal da família Macedo.
Ele depositou um beijo na minha bochecha e saiu vagarosamente.
Passei o restante do dia com a cabeça nas nuvens, absorta nos mais diversos pensamentos, desde como eu sentia saudade de estar com Álvaro ou minha família até planejamentos sobre minha fuga. Apesar do número reduzido dos capachos do Barão Macedo, ele supostamente não deixaria a fazenda na retaguarda. O que fazer, Olívia? Indaguei-me.
Diego possuía toda uma estratégia que para mim estava meticulosamente elaborada, sem defeitos. Mesmo assim, fomos pegos e ele brutalmente assassinado. Fugir sozinha e sem um plano era algo completamente arriscado, que me levava às duas únicas saídas: voltar no meu tempo sã e salva ou morrer pendura no tronco do pelourinho. Eu estava disposta a arriscar a minha vida?
Perguntas e mais perguntas surgiam sem qualquer indício de serem respondidas. Quando reparei, já era tarde e eu precisava informar as meninas do nosso natal no rio. Infelizmente, quando as encontrei, Lah, Carla e Joana me deram respostas negativas ao meu pedido, pois teriam que participar da ceia do Barão Macedo. Lah e Carla trabalham na cozinha e Joana foi requisitada para ser uma suposta garçonete, pois este ano o número de convidados foi ampliado. Eu já sabia o motivo de não ter sido chamada, o Barão Macedo não suportaria olhar na cara de uma fugitiva encrenqueira e ele queria evitar problemas no evento do ano.
A noite estava linda, atrativa às festividades. Ao caminhar na direção da senzala, preocupei-me com o natal no rio, pois com a ausência das meninas, sobraria apenas eu e Dante e aquilo não me agradava em nada pois eu sabia que os olhares furtivos de Dante indicavam muito mais que um sentimento de amizade. Eu sempre procurei não demonstrar que estava ciente da real intenção de seus sentimentos, mas ele sempre parecia extremamente esperançoso.
Deitada na minha cama de palha, esperei a contagem dos escravos, realizada pelo feitor, antes de sair sem ser reparada da senzala. Camuflada na noite, caminhei tranquilamente até o riacho, encontrando Dante nadando na água cristalina. Soltei um suspiro de alívio quando quatro escravos emergiram na água, três homens e uma mulher de rostos familiares, cujo nome eu não me recordava. Eu sempre fui péssima em guardar os nomes das pessoas.
Abri um sorriso quando Dante me viu, feliz por não estarmos sozinhos.
– Entra, Olívia!– gritou ele.
Perguntei-me se ele estava vestido ou nu e senti meu rosto ruborizar com o pensamento indecente.
– Não é arriscado?– perguntei– Se o feitor aparecer...
– Ele já deve ter reparado que estamos aqui, mas pouco lhe importa. Deve estar se martirizando por passar um natal tão infeliz.
– Vamos chamá-lo para nossa confraternização então– comentei, rindo.
Todos os cinco riram da minha frase.
Eu estava com o vestido que usara hoje, pensei que aquela seria uma boa oportunidade para lavá-lo. Prendi meu cabelo no alto e entrei na água, estremecendo com a temperatura.
– Cruzes!– soltei um gritinho agudo.
– Venha, eu te ajudo– Dante aproximou-se, segurando com carinho a minha cintura e caminhando para o fundo, meus seios encontravam-se na base dos seus olhos, o que me deixou ligeiramente envergonhada, já que a blusa molhada deixava uma transparência constrangedora. Sem falar dos meus mamilos salientes!
– Dante– chamei– Ninguém nunca tentou uma fuga no natal?
Ele me soltou, encarando o fundo dos meus olhos e franzindo o cenho.
– Não gosto deste assunto, Olívia– falou entredentes.
– Eu sei que não. Não é meu objetivo te deixar com raiva, eu só estava pensando nisto...
– Em fugir?
– Não... Sim... Não assim...
Olhei para o grupo que se aproximava da gente, tentando disfarçar minha confusão momentânea.
– Você pensou que talvez esta seria uma ótima oportunidade para fugir– ele disse– Mas é uma tremenda besteira, para onde você iria? Ninguém te daria um emprego e provavelmente seria achada e vendida para outra fazenda, como aconteceu.
– Tem razão– menti, já que eu tinha meus próprios motivos para fugir.
– Deixe esse assunto de lado e vamos nos divertir. Se tentar alguma coisa, eu iriei te impedir desta vez, que fique avisado.
– Sim, pai– joguei água nele, rindo.
Ele riu em seguida, segurando minha cabeça e enfiando na água.
– Ei, vocês dois!– chamou uma voz rouca.
Olhei para o negro de cabeça raspada e com uma cicatriz marcante na testa. Não pude deixar de lembrar do Harry Potter ao observá-lo.
– Vocês viram a Cora?– ele perguntou, com uma ruga de preocupação entre os olhos– Ela disse que ia pegar umas frutas que trouxera, mas ainda não apareceu.
Eu e Dante trocamos olhares ansiosos.
– Eu acabei de chegar, pensei que somente vocês estavam aqui– eu disse– Já olharam na margem? Ela pode estar procurando as frutas...
– Eu acabei de olhar lá– afirmou uma voz feminina um tanto encantadora– Sem sinal dela.
– Vamos sair daqui, alguma coisa deve ter acontecido– nadei até a margem, sem me importar com a transparência da minha roupa.
Dante subiu ao meu lado.
– Eu vou por ali– apontei a minha frente– Espalhem-se.
Caminhei contra a correnteza, a vontade de fugir pairando no ar, mas agora não era o momento. Cora poderia estar correndo perigo e precisava de ajuda, mesmo que eu não a conhecesse, eu sentia como se todos os escravos daquela fazenda fossem uma grande família, todos possuíam a obrigação de se ajudar.
–SOCORRO!– o grito atingiu minhas orelhas. Corri na direção do som.
Bastou alguns passos para eu me deparar com a cena horripilante a minha frente. Um homem branco muito bem trajado estava deitado sobre uma negra, pressionando com força os braços finos da jovem enquanto fazia movimentos bruscos para arrancar-lhe as roupas.
–Você!– esbravejei– Larga ela!
Inicialmente ele estava assustado com minha presença ali, mas alguns segundos depois uma risada nojenta saiu de sua boca.
– Mais uma para se juntar a essa putinha aqui– ele riu, mostrando seus dentes amarelos sob a luz do luar– Venha cá negrinha, comemorar o natal conosco.
E eu fui, não para comemorar natal algum. Peguei uma pedra sorrateiramente no caminho e antes que ele percebesse minha fúria, lancei o objeto contra seu corpo. O homem soltou um grito alto e estridente, mas foi suficiente apenas para ele segurar meu braço com uma das mãos e jogar-me no chão.
–Negra abusada!– gritou ele, cuspindo suas palavras no meu rosto– Vai se juntar a minha festa querendo ou não.
Ele enfiou sua língua asquerosa na minha boca, fazendo movimentos no que ele acreditava ser um beijo. O gosto de cerveja barata misturava-se ao de carne de porco, dando-me ânsia de vômito.
– Saia de cima dela– Cora gritou, puxando o cabelo do homem branco e consequentemente liberando-me de suas garras.
Nós duas saímos correndo enquanto ele se recuperava das agressões, mas demos míseros passos antes de sermos lançadas no chão novamente. De maneira bastante eficiente, fomos imobilizadas e eu senti o rosto arder com os tapas que ele me aplicava.
–Negras estúpidas!– ele gritou– Vocês acham que são capazes de alguma coisa? Contarei ao Barão Macedo que não estou sendo bem recebido nesta fazenda e ele lhes aplicará um castigo muito pior que qualquer coisa que alguma de vocês já imaginaram. Mas... não contarei nada se ficarem bem caladinhas e abrirem essas pernas logo.
Ele passou a mão pelas minhas coxas, parando a poucos centímetros de me tocar mais intimamente. Desespero é uma boa palavra para exprimir o que eu sentia naquele momento.
– Me solta– grunhi.
– Abra as pernas negra maldita!– ele cuspiu na minha bochecha, empurrando minhas pernas com o joelho– ABRA!
Cora chorava silenciosamente ao meu lado, sem saber o que fazer. Ambas estávamos perdidas.
– Eu... nunca... abriria minhas pernas... para um homem asqueroso... como você– vociferei.
– O que disse?!– ele gritou, segurando meu seio direito com forca e torcendo-o como se fosse de borracha– O que disse, negra?!
– Larga ela, por favor– chorou Cora.
– Cale a boca, escrava– o homem esbofeteou o rosto de Cora, ela pendeu para o outro lado, desacordada.
Ai meu Deus. Fechei os olhos, na esperança de conseguir sair pelo menos viva dali. Alguém me ajuda. Alguém me ajuda, por favor. Não sei se comecei a rezar naquele momento, já que não era acostumada a isso, só sei que comecei a implorar ajuda de forma silenciosa e desesperadora para todos os seres que habitavam aquele universo.
Ouvi algumas batidas frenéticas, alguns gritos e um chute na base do meu pé. Fechei os olhos com mais força, pedindo aos céus e a quem quisesse ouvir que Cora estivesse viva.
O silêncio pairou no ar, o que foi estranho perante os acontecimentos recentes. Será que estavam todos mortos? Será que o homem fugiu e nos deixou?
– Olívia, você está bem?
Tomei coragem para abrir os olhos e o que eu vi foi algo completamente inesperado. Um par de belos olhos azuis me encaravam com compaixão.
– Álvaro!– exclamei, estupefata– Álvaro, Álvaro, Álvaro. Ai meu Deus, obrigada.
Encarei o céu com os olhos marejados e voltei a olhar para aquele rosto tão familiar. Ele me abraçou com cuidado para não tocar nos meus ferimentos, beijando meus lábios como se nada tivesse nos separado.
–Olívia.
–Álvaro... eu... como você chegou aqui?
– A ceia...
– Ah, Álvaro...– choraminguei, sem saber o que dizer.
Saí do meu estupor e procurei por Cora, que estava atirada no chão a poucos centímetros do meu próprio corpo. Aproximei-me do seu peito, tentando escutar seu coração. Quando senti as batidas contra minha orelha chorei como uma criança, tamanha era minha felicidade.
–Olívia, vamos embora– Álvaro sussurrou no meu ouvido– Consegue andar?
Sai de cima de Cora e afirmei com a cabeça, minha visão embaçada com as lágrimas.
– Eu carrego ela– ele segurou meu ombro– Você vai na minha frente.
– Onde está o... o..?– Não consegui reunir forças para terminar a frase, mas Álvaro demonstrava entendimento.
– Não importa agora, você precisa sair daqui– ele falou, sério– Agora.
– E Dante e os demais?
– Eu não sei, Olívia!– ele afirmou– Sua amiga está sangrando na cabeça, ela precisa de um médico. Agora!
– Sim, sim– levantei-me apressadamente diante daquelas palavras, ajeitando meu vestido sujo e molhado– Eu vou na frente.
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